Enquanto o Banco Global de Sementes de Svalbard, no Ártico, guarda mais de 1 milhão de amostras em câmaras a -18°C , pequenos agricultores preservam suas sementes em garrafas PET, sendo uma parte sem refrigeração. Essa contradição revela um paradoxo da modernidade: nossa dependência de sistemas tecnológicos complexos para conservar o que povos tradicionais mantêm há séculos através de relações vivas com a terra. A crise climática e a ameaça de colapsos energéticos expõem a vulnerabilidade dos bancos de germoplasma — e convidam a repensar uma economia política baseada não no congelamento da vida, mas em sua disseminação cultural.
A Ilusão da segurança dos bancos de semente
Os bancos de sementes ex situ (fora de seu habitat natural) são celebrados como “arcas de Noé” contra catástrofes. A Embrapa, por exemplo, mantém 120 mil amostras a -20°C. No entanto, esses sistemas dependem de energia constante: na Venezuela, blecautes já colocaram coleções inteiras em risco. Além disso, 36% das plantas ameaçadas — como castanheiras e mangueiras — não sobrevivem ao armazenamento frio, exigindo cultivo contínuo em campos.
O caso dos Krahô (povo indígena que vivem no nordeste do Tocantins, na Terra Indígena Kraolândia) é emblemático. Na década de 1990, eles recuperaram sementes de milho sagrado da Embrapa, que haviam perdido devido à imposição da monocultura do arroz nos anos 1950. Com apenas seis sementes por cacique, multiplicaram-nas em roças, restaurando não apenas a biodiversidade, mas um sistema de conhecimento.
A Revolução Verde e a alienação das sementes
A erosão genética não é acidental. A Revolução Verde dos anos 1950-60 substituiu variedades tradicionais por sementes “melhoradas”, dependentes de agroquímicos e patentes corporativas. Hoje, testes no semiárido brasileiro mostram que 33% do milho tradicional está contaminado por transgênicos, enquanto 70% dos parentes silvestres de cultivos globais sequer estão representados em bancos.
As sementes são como “commodities” em freezers, uma prática que ignora sua natureza ecológica. A verdadeira inovação está em devolver o controle aos pequenos agricultores — como fazem os bancos comunitários do semiárido, onde famílias depositam e resgatam sementes como em uma poupança viva.
Por uma economia política da germinação
Movimentos indígenas oferecem alternativas radicais. O Cherokee Nation Seed Bank distribuiu 9.500 pacotes de sementes tradicionais em 2023 — esgotados em horas. Já o projeto Sementes do Semiárido estruturou 970 bancos locais, combinando ciência e saberes ancestrais. Essas iniciativas preservam plantas e culturas.
A reconexão com a natureza exige mais que tecnologia; demanda uma virada política agroecológica. Como sugere o ODS 2 da ONU, a segurança alimentar depende de “práticas agrícolas resilientes” e “acesso equitativo à terra”. No Brasil, isso significa apoiar agroflorestas, reforma agrária, sementes crioulas e — sobretudo — os povos que as mantêm vivas.