“No Rio Marauiá, aqui embaixo, tá tendo muita virose que é forte e até hoje tá apresentando também coisa de covid-19. Eu estou muito preocupado, porque já foram três óbitos das pessoas, três comunidades”, relatou Francisco Pukimapiwëteri Yanomami em julho deste ano, num dos diversos depoimentos que compõem o relatório lançado em novembro pelo Instituto Socioambiental (ISA). “Xawara: rastros da Covid-19 na Terra Indígena Yanomami e a omissão do Estado” reúne dezenas de testemunhos de alguns dos 30 mil indígenas que vivem no território Yanomami, que cobre uma área de 9,6 milhões de hectares nos estados de Roraima e Amazonas.
O relatório reflete a crescente irritação entre os Yanomami por se sentirem abandonados pelas autoridades brasileiras e pelo governo Bolsonaro. Dizem que estão sendo obrigados a lidar sozinhos com um coquetel assustador de problemas interligados, como invasão de terras por garimpeiros, poluição dos rios, fome e maior vulnerabilidade à covid-19 e outras doenças, inclusive entre as crianças. A xawara — palavra Yanomami para os vapores produzidos por uma doença trazida por forasteiros brancos — é apenas a mais recente manifestação, bastante grave, da catástrofe que eles enfrentam.
Os Yanomami vêm tendo contato com epidemias desde o século 16, quando os portugueses chegaram trazendo sarampo, varíola, gripe e tuberculose. No livro A Queda do Céu, o líder Davi Kopenawa descreve a chegada de uma epidemia de gripe em 1959 trazida pelo contato com não-indígenas: “Somente a gente de Yoyo roopë conseguiu escapar dessa epidemia, liderada por meu padrasto. […] Meu padrasto logo começou a incentivar as pessoas de nossa casa a fugir. […] Contudo, no dia seguinte, alguns hesitaram em partir. Para acabar com a indecisão deles, meu padrasto ateou fogo à nossa casa. Era um grande homem, muito valoroso mesmo! Foi assim que deixamos a região de Marakana, às pressas. […] Se não tivéssemos fugido, a maioria de nós também teria morrido por causa dessa epidemia.”
Outras epidemias surgiram durante a primeira corrida do ouro, nos anos 1980, quando 40 mil garimpeiros invadiram o território Yanomami — na época não reconhecido formalmente pelo governo federal como terra indígena. A criação do vasto território Yanomami em 1992 ajudou a população indígena a se recuperar, porém restam poucos anciãos em diversas comunidades, já que muitos deles morreram durante as epidemias anteriores.
Graças a este histórico, os Yanomami foram rápidos em compreender o risco que a covid-19 representava. No início de março de 2020, Maurício Ye’kwana, um dos líderes Ye’kwana, discursou no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra: “Nosso território está sendo invadido por mais de 20 mil garimpeiros que trazem doenças como a malária, bebidas alcoólicas, drogas e violência para as comunidades, e também poluem nossos rios com mercúrio. Em junho de 2020, dois Yanomami foram assassinados por garimpeiros. Durante a pandemia, eles [os garimpeiros] trouxeram a covid-19, infectando as comunidades que vivem próximas das minas. Nós, os líderes, pedimos ao governo brasileiro que cumprisse sua obrigação de remover os mineiros ilegais, mas não houve uma resposta adequada ao problema”.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) e a Polícia Federal realizaram operações para acabar com a mineração ilegal no território, porém, de acordo com o relatório do ISA, uma vez que a Polícia Federal sai, os garimpeiros logo retomam as atividades. O relatório “Xawara” ainda cita dados do Sistema de Alerta de Desmatamento, dirigido pelo Imazon, que mostra que o TI Yanomami esteve entre as dez áreas mais pressionadas pelo desmatamento na Amazônia brasileira entre agosto de 2019 e julho de 2020.
Os Yanomami também estão furiosos com a falta de cuidados de saúde adequados. Ainda mais porque, de acordo com o relatório, há um histórico recente de iniciativas bem sucedidas de atenção básica na região: “O projeto pioneiro Saúde Yanomami promoveu uma assistência sanitária exemplar. Foi desenvolvido entre 1996 e 1999 pela CCPY (Comissão Pró-Yanomami) e entre 1999 e 2004 pela Urihi Saúde Yanomami e tornou-se modelo para as diretrizes de saúde indígena. A competência do trabalho realizado pelas duas organizações levou à erradicação da malária na TIY, até a época em que estiveram atuando na região.”
Quando a assistência médica foi assumida e centralizada pelo governo federal na virada do século 21, este sistema autônomo administrado por ONGs foi desmantelado. Estudos constantes têm mostrado que a saúde Yanomami se deteriorou particularmente em vilarejos próximos a áreas invadidas pelos garimpeiros. A malária tornou-se endêmica, enfraquecendo a população antes da chegada da covid-19, como afirma o relatório: “Nossas crianças estão tremendo por causa da malária e não param de crescer os casos de coronavírus”.
Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz para a Saúde Pública (Fiocruz) em parceria com a Unicef em 2018-2019, constatou que 80% das crianças indígenas na área do território Yanomami examinada apresentavam baixa estatura para a idade, metade tinha peso abaixo do normal e sete em cada dez eram anêmicas. Isto aumentou a vulnerabilidade das crianças à covid-19.
Em vez de responderem à deterioração da situação, autoridades agiram com descaso. Entre janeiro e setembro de 2020, a autoridade oficial de saúde Yanomami, conhecida como Dsei-Y (Distrito Sanitário Especial Indígena – Yanomami), “não empenhou nenhum valor para equipamentos e material permanente”, conforme aponta o relatório, apoiando-se em dados do Portal da Transparência. Não teria se preparado, portanto, para o avanço da pandemia.
Alguns indígenas, inclusive, acusam os funcionários da Dsei-Y de corrupção. Um Yanomami de Kayanau, área amplamente invadida pelos garimpeiros, é citado no relatório: “Aquele funcionário da saúde fica distribuindo esses remédios para os garimpeiros e agora estamos sofrendo muito! Ele esconde os remédios da gente, porque quer conseguir ouro [com os garimpeiros].”
Na ausência de uma ação governamental efetiva, os Yanomami e os Ye’kwana orientaram as pessoas a pararem de se mover entre as comunidades e a se isolarem na floresta, para diminuir o contágio por covid-19. Rituais de cura e remédios tradicionais também foram usados como estratégia a fim de reduzir a mortalidade.
Ainda assim, a doença causada pelo coronavírus está se expandindo em todo o território. De acordo com o relatório, o número de infecções cresceu 250% nos últimos três meses, ultrapassando a marca de mil casos confirmados entre os Yanomami e os Ye’kwana. No final de novembro, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) havia registrado nove mortes por covid-19, enquanto o monitoramento da Rede Pró-Yanomami Ye’kwana acusava 23 mortes entre confirmadas e suspeitas — algumas delas são de crianças menores de 1 ano.
Contatado pela Mongabay, o Ministério da Saúde — responsável pelos cuidados primários de saúde em territórios indígenas — negou a acusação de negligência e disse ter aumentado o tempo de permanência das equipes de saúde em áreas indígenas, além de contratar equipes especiais de resposta rápida para evitar a disseminação do coronavírus. Afirma também estar trabalhado em conjunto com o Ministério da Defesa para realizar ações complementares em áreas de difícil acesso.
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