Lideranças indígenas e ONGs pedem justiça para esses e outros assassinatos ocorridos anteriormente
Por Karla Mendes, da Mongabay | Dois indígenas Guajajara foram mortos no Maranhão no dia 3 de setembro e um adolescente Guajajara de 14 anos foi baleado e hospitalizado, de acordo com líderes indígenas e grupos de direitos humanos.
No dia seguinte, um indígena Pataxó de 14 anos também foi assassinado a tiros e um adolescente Pataxó de 16 anos foi baleado e ferido enquanto tentavam retomar a área ocupada por uma fazenda que teria sido estabelecida ilegalmente na Terra Indígena Comexatibá, na Bahia.
No dia 11, mais um indígena Guajajara foi assassinato no Maranhão. Nos últimos 20 anos, mais de 50 indígenas Guajajara foram mortos no estado, sem que nenhum suspeito tenha sido julgado, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Lideranças indígenas clamam por justiça diante de uma onda de assassinatos, supostamente ligados a disputas de terras, que resultaram em quatro pessoas mortas e duas feridas no espaço de apenas 10 dias, num quadro alarmante de violência contra os povos originários em todo o país.
Janildo Oliveira Guajajara foi morto a tiros em uma suposta emboscada no município de Amarante, no Maranhão, na madrugada de 3 de setembro. Os criminosos também atiraram e feriram um adolescente Guajajara de 14 anos, que acompanhava Janildo, segundo líderes indígenas e grupos de direitos humanos. Quase ao mesmo tempo, Jael Carlos Miranda Guajajara, 34, foi morto após ser atropelado por um veículo no município vizinho de Arame.
No dia seguinte, pistoleiros atiraram contra um grupo de indígenas Pataxó que tentavam retomar algumas área na Terra Indígena (TI) Comexatibá, na Bahia, segundo ativistas. Gustavo Silva da Conceição, um adolescente Pataxó de 14 anos, foi morto no incidente, enquanto outro Pataxó de 16 anos foi ferido no braço por tiros, afirmam as lideranças indígenas.
Uma semana depois, o indígena Antônio Cafeteiro Silva Guajajara foi assassinado a tiros, também no município de Arame, no Maranhão, de acordo com Lucimar Carvalho, advogada do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Ela disse à Mongabay que a Polícia Civil de Amarante e Arame estão apurando as ocorrências, fazendo diligências e colhendo depoimentos das testemunhas sobre os crimes.
“Eu conversei com o delegado [de Arame] e ele está nas diligências, inclusive pedindo reforço para a Polícia Civil de São Luís, para a superintendência, para apoiar nas investigações porque foram duas mortes seguidas na região de Arame, sem qualquer esclarecimento”, disse Carvalho em uma mensagem de áudio. “A pressão pública é muito importante para que haja apuração desses assassinatos que estão ocorrendo [de modo] muito corriqueiro, sem que haja uma punição de tudo isso… Temos que exigir investigação e punição dos culpados”.
A Polícia Civil do Maranhão informou, por meio de nota por e-mail, que está apurando os crimes, em parceria com a Polícia Federal, e que “detalhes sobre as investigações não serão concedidas” para “não atrapalhar o trabalho policial”. O Ministério Público Federal (MPF) disse à Mongabay que também está investigando os assassinatos a partir de uma carta envidada pelo CIMI.
Ativistas afirmam, porém, que é muito provável que os incidentes estejam ligados a conflitos de terra. Desde 2018, Janildo Guajajara fazia parte dos Guardiões da Floresta, um grupo de 120 Guajajara que se uniu para proteger a TI Arariboia contra madeireiros ilegais. O território abriga tanto o povo Guajajara quanto o povo Awá Guajá – um grupo de caçadores-coletores que vive em isolamento voluntário do resto do mundo, descrito pela ONG Survival International como o grupo indígena mais ameaçado do planeta. Janildo Guajajara foi o sexto guardião assassinado desde a fundação do grupo em 2012.
“Mataram [três] de novo… [E] não tem ninguém preso por assassinar nossos irmãos de guerra”, o guardião Laercio Guajajara disse à Mongabay por telefone. “Hoje estou na aldeia. Não posso [nem] andar sozinho. O medo é grande”.
Nos últimos 20 anos, mais de 50 indígenas Guajajara foram mortos no Maranhão, sem que nenhum dos suspeitos tenha sido julgado, segundo dados do CIMI no estado. Em novembro de 2019, Laercio Guajajara escapou de uma suposta emboscada de madeireiros na TI Arariboia que matou o guardião Paulo Paulinho Guajajara. Após o incidente, Laercio Guajajara deixou o país para sua própria segurança e entrou em um programa de proteção do governo do Maranhão. Mas ele desistiu de ambas as alternativas para retornar à Arariboia, dizendo que não poderia viver longe de sua terra ancestral, apesar dos riscos.
De volta à Arariboia, Laercio passou a ser o coordenador dos Guardiões por um ano. Mas ele deixou essa posição recentemente devido a ameaças crescentes. “Sempre tem ameaças, chega recado da cidade”, disse Laercio à Mongabay. Segundo ele, uma dessas mensagens foi dirigida a seu irmão por um indivíduo que não sabia que eram irmãos, dizendo que ele não poderia mais ir a uma determinada área.
Janildo Guajajara também enfrentou ameaças, junto com outros guardiões, após bloquearem uma estrada que havia sido aberta por madeireiros ilegais na região do Barreiro, na TI Arariboia, segundo nota da Associação Indígena Ka’aiwar de Guardiões da Floresta da Terra Indígena Arariboia. Ka’a Iwar na língua Guajajara significa “o povo da floresta”.
“Nenhum dos outros assassinos de outros Guardiões da Floresta nunca foram punidos e nem estão detrás das grades”, disse o guardião Olímpio Iwyramu Guajajara, que foi coordenador dos Guardiões por muitos anos, e hoje preside a associação Ka’a Iwar, em uma mensagem de vídeo durante uma turnê pela Europa para destacar o trabalho dos Guardiões e os riscos crescentes eles enfrentam. “Eu venho aqui pedir justiça e que seja realmente feita uma investigação para descobrir de fato os autores do assassino do guerreiro da floresta que foi assassinado… e que seja feita a justiça pela vida e pelos outros que também perderam a vida por nós.”
Luta pela demarcação de terras
Na Bahia, o tiroteio teria sido realizado por 12 homens em dois veículos que atacaram o povo Pataxó com armas de fogo e bombas de gás lacrimogêneo, segundo informações das lideranças divulgadas pelo CIMI. Os ataques teriam ocorrido em retaliação à ação da comunidade indígena em 2 de setembro para retomar uma área chamada Fazenda São Jorge que teria sido estabelecida ilegalmente dentro da Terra Indígena Comexatibá.
“Às 5h25 da manhã, os tiros começaram. Foram quase dez minutos de tiros, muito tiro mesmo”, disse um líder da TI Comexatibá na nota do CIMI, que acrescentou que o indivíduo pediu para não ser identificado por questões de segurança. “Tinha muita cápsula de pistola, fuzil, calibre 12… bombas de gás lacrimogêneo, que é coisa de polícia. Foi um trabalho profissional… É uma tristeza para nós”.
Imagens registradas por indígenas Pataxó e divulgadas pelo CIMI mostram vários cartuchos de balas e bombas de gás lacrimogêneo que teriam sido usados durante o ataque.
Em junho, 180 indígenas Pataxó retomaram outra área na mesma região da TI Comexatibá que estava sendo usada para pecuária e cultivo de eucalipto para produção de celulose. Líderes indígenas disseram que a área ocupada pela fazenda está totalmente dentro dos limites da TI Comexatibá, que se estende por 28 mil hectares ao norte da cidade de Prado, um dos primeiros locais de contato dos colonizadores portugueses com os povos originários em 1500. Nesse mesmo mês, outro grupo de cerca de cem Pataxó assumiu outra fazenda, formada em grande parte por pastagens abandonadas, na vizinha Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, de onde teriam sido expulsos por latifundiários e seus apoiadores a mão armada.
Mas, nas últimas semanas, os indígenas relataram estar sendo monitorados por drones usados para orientar ataques de homens armados, razão pela qual decidiram retomar a fazenda de onde os drones estariam sendo operados.
“Foram feitos dois ataques de drone aqui na retomada, um na semana retrasada, e outro no final d[a] semana passada”, explica a liderança Pataxó na nota do CIMI. “Os jovens seguiram esse drone, que pousou numa fazenda vizinha do outro lado do rio, que não estava retomada. Então, os jovens ocuparam a fazenda, porque a retomada estava sendo filmada para pistoleiros virem atacar os indígenas, a mando dos fazendeiros. Por isso foi feita a retomada”.
Após o ataque, a Polícia Militar e a Polícia Civil teriam ido até a área e recolhido várias cápsulas, inclusive de armamentos de uso exclusivo dos militares, como as bombas de gás lacrimogêneo, segundo o CIMI, que afirmou que o MPF também enviou ofício ao Ministério da Justiça solicitando o fortalecimento da Polícia Federal na região.
“Houve uma série de retomadas do povo Pataxó desde junho, e houve também um ataque armado dos fazendeiros que dizem possuir terras dentro dos territórios, com sinais de participação de policiais, devido à utilização de armamentos de uso exclusivo das Forças Armadas e da Polícia Militar”, disse Lethicia Reis, da assessoria jurídica do CIMI, em nota.
O aumento da violência contra os Pataxó na Bahia ocorre em meio a um limbo burocrático sobre a situação de suas terras, pois o processo de demarcação das TIs Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal ainda não foi finalizado. Ao mesmo tempo, os Pataxó enfrentam a diminuição da área para sua subsistência frente ao aumento de conflitos à medida que os empreendimentos imobiliários e monoculturas invadem seu território, segundo Reis.
Desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu a presidência no início de 2019, ele não aprovou nenhum território indígena, cumprindo sua promessa de campanha de não demarcar “nem um centímetro a mais” de terras indígenas.
Em uma nota por e-mail, a Polícia Civil da Bahia informou que abriu um inquérito para investigar o assassinato na delegacia de Prado, onde já foram realizadas oitivas de testemunhas. A polícia informou também que foi realizada perícia no local, cujos laudos auxiliarão na apuração do caso, ponderando, porém que “a autoria ainda é desconhecida”.
Em nota por e-mail, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia informou que os indígenas Pataxó atacados prestaram depoimento em Salvador no dia 9 de setembro. O órgão informou que será criado um grupo de trabalho com policiais para coordenar “ações preventivas e investigativas” na região.
O MPF na Bahia e a Funai não responderam aos pedidos de resposta da Mongabay para as ocorrências.
No ano passado, 176 indígenas foram assassinados no Brasil, seis a menos do que em 2020, quando houve um aumento de 61% em relação ao ano anterior (182 de 113), segundo o atlas anual de violência divulgado em agosto pelo CIMI. Os territórios indígenas também enfrentam uma pressão crescente. O relatório rastreou 305 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos à propriedade em pelo menos 226 terras indígenas em 2021, um aumento de 16% em relação ao ano anterior e quase três vezes superior aos 109 casos registrados em 2018.
Para ativistas, a impunidade é um fator-chave para toda essa violência. No ano passado, 35 pessoas foram mortas em conflitos por terra em áreas rurais, um aumento de 75% em relação a 2020, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha essa questão desde 1985. Não houve condenações em qualquer um desses casos, de acordo com os próprios registros do governo. Na Amazônia brasileira, houve mais de 300 mortes relacionadas a conflitos de terra desde 2009, de acordo com um relatório da Human Rights Watch. Desses, apenas 14 casos (5%) foram levados a julgamento.
Na TI Arariboia, os autores do assassinato de Paulo Paulino Guajajara e da tentativa de assassinato de Laercio Guajajara devem ser julgado por um júri popular federal — crime que procuradores de Justiça consideram uma agressão contra toda a comunidade indígena Guajajara e a cultura indígena. Espera-se que o julgamento também possa abrir um precedente no julgamento dos assassinatos de outros líderes indígenas e também em casos como os assassinatos do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira na região do Vale do Javari, no Amazonas, em junho.
“Se o índio faz alguma coisa errada, a polícia vem em cima”, Laercio disse à Mongabay. “Eu passei um mês preso por expulsar madeireiro [da nossa terra]… Eu fui preso por defender a terra”.
A Defensoria Pública da União (DPU), que representa um dos réus no assassinato de Paulo Guajajara, recorreu da decisão judicial que encaminhou o caso para um júri federal. Líderes indígenas e defensores dos direitos indígenas estão pedindo ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em Brasília, uma resolução rápida para o caso.
Carvalho, advogada do CIMI que atua como assistente de acusação no julgamento, disse à Mongabay por mensagem telefônica que o CIMI também está acompanhando o caso de Janildo.
Apesar de estar cético diante dos inúmeros casos de impunidade, Laercio Guajajara disse: “Espero que sejam condenados”.
Mas ele enfatizou que ele e os outros Guardiões da Floresta continuarão lutando por suas terras: “Tem que fazer do nosso jeito se [a gente] quiser sobreviver e defender a terra”.
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.