Por Luis Antonio Lindau, Cristina Albuquerque, Guillermo Petzhold, Mariana Müller Barcelos e Cynthia Blank em WRI Brasil – Aprimorar os contratos de concessão do transporte coletivo no Brasil é urgente. São eles que definem o escopo do serviço, as responsabilidades dos atores envolvidos, a forma de remuneração, as penalidades e os parâmetros pelos quais a qualidade e a produtividade do serviço prestado serão avaliadas. O transporte coletivo precisa sobreviver e se renovar para prosperar, e transformar os contratos é parte desse processo.
Com poucas exceções, os contratos firmados entre prefeituras e empresas operadoras de transporte no país não acompanharam mudanças de mercado e as novas necessidades da população. Continuam apresentando regramentos que não necessariamente contribuem para a qualificação do serviço nem garantem sua viabilidade financeira.
O longo tempo de duração e a necessidade da posse de garagens e veículos podem frear a inovação e a competitividade. O financiamento baseado apenas na tarifa, além de insuficiente, estimula a operação de veículos superlotados. A ausência de indicadores de desempenho que priorizem a percepção dos clientes resulta em empresas operadoras pouco atentas a aspectos fundamentais para a atração e retenção de passageiros. Esses aspectos emergem todos os anos nos períodos que antecedem o reajuste tarifário.
É preciso discutir esses e outros aspectos de olho em boas práticas no Brasil e no mundo. Se é verdade que não há “contrato perfeito”, mas sim contratos mais ou menos adequados ao contexto e os desafios que se busca solucionar, também é certo que os contratos em todas as grandes cidades brasileiras apresentam grandes oportunidades para melhorias.
No Brasil, é responsabilidade constitucional dos municípios organizar e prestar os serviços de transporte público urbano, que podem ser repassados à iniciativa privada por meio de contratos de concessão. É o que acontece na maioria das cidades: a iniciativa privada opera o serviço, enquanto o poder público fica responsável pela fiscalização, planejamento e regulação. Em raros casos, o planejamento fica a cargo das empresas operadoras; determinadas infraestruturas também podem ficar sob responsabilidade das operadoras ou ser objeto de concessão à parte.
Uma mesma concessão usualmente engloba a prestação do serviço e a provisão de veículos e de garagens. Sistema de bilhetagem e centro de controle operacional também tendem a ficar sob responsabilidade das empresas operadoras, com raras exceções.
Brasil afora, há convergência dos setores público e privado quanto a uma necessidade de repactuação contratual diante dos desequilíbrios financeiros gerados pela pandemia. Isto gera a oportunidade para transformar os contratos de concessão do transporte coletivo.
A relação entre os muitos elementos que compõem os contratos não é trivial: há diferentes caminhos possíveis, e cada nova formulação gera uma série de desdobramentos. A seguir, elencamos algumas rotas já percorridas na elaboração de contratos que viabilizem um transporte coletivo de maior qualidade. Para que possam ser adotadas pelas cidades brasileiras, é possível que algumas dessas práticas necessitem de adaptações ao contexto legal e marco regulatório bem como ao ecossistema vigente no país.
A exigência de posse de ativos como garagens e veículos demanda investimentos significativos das empresas desde o primeiro ano de operação. No caso das garagens, gera vantagem competitiva para proponentes que já detêm terrenos na cidade, o que pode favorecer a manutenção da concessão com uma mesma empresa a despeito da qualidade do serviço prestado. Já a concessão da operação atrelada à posse de veículos deixa o poder público em posição difícil no caso de disputas. Diante de paralisações do provedor ou suspensões de contrato, não há frota disponível que possa ser utilizada por outra empresa operadora para evitar a interrupção do serviço para a população. Dissociar a provisão e a operação da frota ajuda a solucionar esses problemas.
A separação também permite ajustar os termos dos contratos para as especificidades de cada atividade, reduzindo riscos e maximizando benefícios. Essa divisão tem sido um dos caminhos encontrados por cidades latino-americanas como Bogotá e Santiago para viabilizar a transição para frotas elétricas, uma vez que o custo de capital fica a cargo do provedor da frota que possui um contrato de mais longa duração que o dos operadores para recuperar seu investimento.
Nesse modelo de dissociação, o responsável pela provisão da frota é remunerado mensalmente e avaliado de acordo com a frota disponibilizada para operação, e quem realiza a operação é remunerado de acordo com a operação do sistema e a qualidade do serviço prestado. A mesma lógica é válida em caso de inclusão de implementação ou operação de infraestruturas como estações, terminais e garagens.
No Brasil, o Rio de Janeiro anunciou que adotará modelo similar como parte das medidas para concluir e qualificar a rede municipal de BRT.
Em geral os contratos de concessão do transporte coletivo em cidades brasileiras são longos: entre 15 e 20 anos, muitas vezes com possibilidade de renovação quase que automática por igual período. A duração se justificaria, na ótica dos que a propõem, pela inviabilidade de recuperar o capital investido em período mais curto. Contudo, contratos de duração muito longa tendem a fomentar o domínio do setor por um número restrito de empresas que detêm os ativos exigidos no processo licitatório e, assim, acabam por minar a competitividade e retardar a inovação tecnológica.
Contratos de operação mais curtos facilitam a avaliação, a gestão dos riscos e a previsibilidade de custos – fatores que podem atrair mais empresas, conferindo mais competitividade ao processo licitatório. Com menor duração, os contratos também proporcionam mais flexibilidade para responder a mudanças e acompanhar novas tendências.
Mas como viabilizar contratos de operação mais curtos? Um dos caminhos é justamente separar a operação do serviço da provisão de frota. Assim, se mantêm contratos mais longos para quem provê a frota (alto custo de capital e maior tomada de risco) e pode-se encurtar os contratos de operação.
Outro caminho é a licitação por linhas, adotada em cidades como Londres e Seul, mas ainda não explorada na América Latina. Esse modelo permite a prática de prazos menores – ao reduzir os investimentos de capital necessários para a operação – e uma maior competição – dado que haverá licitações mais frequentes. Por outro lado, demanda maior esforço do poder público para realizar a gestão de contratos.
Além da operação e posse dos bens utilizados para a provisão do transporte coletivo, é comum que os contratos firmados no Brasil contemplem outros serviços como sistemas de bilhetagem, de atendimento ao cliente e de monitoramento (centro de controle operacional, GPS e outros equipamentos embarcados). Esses componentes são importantes tanto para a operação, quanto para o planejamento, monitoramento e fiscalização, que são da alçada do poder público. A provisão desses sistemas pela própria empresa operadora pode gerar conotação de conflito de interesse e falta de confiança quanto aos dados repassados.
Os contratos devem garantir o pleno acesso do poder público e da sociedade civil a dados relevantes para a fiscalização do serviço prestado e para o planejamento do sistema de transporte coletivo e da mobilidade da cidade como um todo. A transparência dos dados é fundamental, por exemplo, para a construção de indicadores operacionais que permitam avaliar, de forma muito ágil, a necessidade de readequações momentâneas na oferta.
São José dos Campos, em seu novo processo de concessão, dissociou os componentes de tecnologia da licitação de operação do sistema de transporte coletivo, uma vez que quem opera usualmente delega a terceiros componentes como a bilhetagem e o sistema de informações. Além da licitação para a operação (dividida em dois lotes) e da bilhetagem eletrônica (meios de pagamento), a cidade ainda realizará a licitação de outras cinco plataformas de tecnologia. Três delas estão intrinsicamente ligadas ao monitoramento e à bilhetagem eletrônica: uma câmara de compensação da receita tarifária que permite diferentes meios de pagamento e garante transparência; gestão de dados com tecnologias que ajudem a melhorar o monitoramento, a operação e o planejamento do sistema; e comunicação com os passageiros, a fim de facilitar o acesso à informação e permitir às pessoas avaliar a qualidade do serviço prestado.
No Brasil, ainda predomina o modelo em que operadores municipais são remunerados unicamente pela cobrança da tarifa. Nela está vinculado um percentual de lucro definido em decorrência do capital investido e do serviço prestado, mas raramente atrelado à qualidade. A tarifa, por sua vez, é determinada pela divisão dos custos médios por quilômetro (com motoristas, cobradores, veículos e rodagem, acrescidos do lucro) e pelo IPK (índice definido pela quantidade de passageiros pagantes por quilometro percorrido).
Esse modelo estimula a operação de veículos superlotados, já que o lucro dos operadores será tanto maior quanto menores forem os custos da oferta dos serviços e maior for o número de passageiros pagantes embarcados por quilômetro.
Para estimular a qualidade do serviço, os contratos devem atrelar a remuneração ao bom desempenho segundo critérios de qualidade. Essa não é uma prática comum nas cidades brasileiras e, quando prevista em contratos, considera apenas o desempenho operacional e não a percepção dos clientes sobre o serviço.
São Paulo se encaminha para ser a primeira cidade no país a atrelar a remuneração a um índice de qualidade que levará em conta pesquisas de satisfação realizadas com os passageiros. A capital paulista já inclui reclamações dos clientes em seu Índice de Qualidade do Transporte (IQT), que conta com dez indicadores para avaliação do serviço prestado. Os novos contratos de concessão do transporte coletivo, iniciados em 2019 e ainda em fase de transição, preveem a inclusão de um 11º indicador: a satisfação dos clientes, aferida através de uma pesquisa com passageiros. Além de gerar multas por baixo desempenho, o IQT deve passar a incidir diretamente sobre a remuneração das empresas.
Um dos pilares fundamentais dos contratos é o modelo de remuneração da operação. Baseado apenas na receita tarifária, se revelou inadequado para a garantia do transporte coletivo de qualidade, um direito constitucional. Ainda, a queda de demanda durante a pandemia de Covid-19 tratou de agravar a situação financeira dos sistemas em muitas cidades.
A concessão de outros elementos do sistema de transporte coletivo, como abrigos de ônibus e espaços comerciais em terminais e estações, proporciona uma oportunidade de diversificar fontes de receita para o transporte coletivo e buscar a modicidade tarifária estabelecida pela Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU).
Belo Horizonte realizou a concessão dos abrigos de ônibus a uma empresa, que comercializa o espaço publicitário nos abrigos sob a condição de instalar novos equipamentos e realizar a manutenção das estruturas. Os investimentos da concessionária na implantação e manutenção dos abrigos, a outorga inicial e a taxa mensal paga por ela por cada abrigo quando somados ultrapassam R$ 51 milhões em ganhos e economias para o poder público ao longo do contrato que totaliza 25 anos.
No Metrô de São Paulo, a exploração de espaços publicitários rendeu R$ 43,7 milhões em 2020, 19% de toda a receita extratarifária do sistema. Também é permitida a exploração comercial de espaços para comércio e serviços por empresas credenciadas, que são responsáveis pela administração, implantação, operação, manutenção e segurança dessas áreas. Em 2020, a exploração de áreas para comércio e serviços rendeu R$ 27,2 milhões, 12% do total em receitas extratarifária do Metrô. Em 2020, receitas extratarifárias somaram R$ 226 milhões no sistema, quase 15% de toda a receita arrecadada com a tarifa e subsídios da gratuidade. Em 2021, o Metrô lançou a concessão dos naming rights de seis estações, mas apenas duas foram bem-sucedidas. Terminais e estações de alguns sistemas de ônibus de alta capacidade também podem se valer dessas práticas, por serem locais de grande movimentação de pessoas.
O cardápio de potenciais fontes de receitas extratarifárias para o transporte coletivo é vasto, indo muito além da captação dentro do próprio sistema. A cobrança das externalidades negativas geradas pelo uso do automóvel, por meio de mecanismos como o estacionamento rotativo, a taxação do congestionamento e a taxação da mobilidade apresentam um potencial muito maior de arrecadação.
A pandemia trouxe ainda mais urgência para medidas que garantam a sobrevivência e promovam a renovação do transporte coletivo. Cidades têm hoje o desafio de enfrentar a crise do clima ao mesmo tempo em que sanam lacunas históricas de iniquidade no acesso a serviços e oportunidades. O transporte coletivo, do qual dependem cerca de 50% dos passageiros que utilizam o sistema ônibus no Brasil, é um elemento central na construção de cidades mais verdes, justas e prósperas.
Contratos inovadores podem ajudar a salvar o sistema e, ao mesmo tempo, renová-lo, com a necessária transição para a frotas mais limpas que contemplem a eletromobilidade. Para que a mobilidade sustentável recupere o espaço perdido para carros e motos, os contratos do transporte coletivo devem garantir condições necessárias para a oferta de um serviço que seja economicamente viável, mas também atrativo, caracterizado pelo conforto e pela qualidade. Em uma época de mudanças dinâmicas não é possível continuar replicando modelos criados no século passado. Exemplos sul-americanos muito próximos de nós mostram que uma nova realidade é possível.
Este texto foi originalmente publicado por WRI Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
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