Por Siba El-Samra e Claudia Adriazola-Steil em WRI Brasil— Nunca houve um momento mais propício para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis.
Os preços do petróleo e da gasolina dispararam em decorrência da invasão da Ucrânia pela Rússia, com o galão da gasolina (3,7 litros) passando de US$ 4 nos Estados Unidos em março e chegando a mais de US$ 10 em outros países. Em paralelo, o mundo já convive com efeitos mortais das mudanças climáticas na forma de ondas de calor, secas e incêndios florestais – impactos que só se intensificam conforme crescem as emissões e as mudanças climáticas se agravam.
Reimaginar o setor de transportes é a chave para romper os laços com os combustíveis fósseis.
Cada vez mais pesquisas comprovam que reduzir o uso de combustíveis fósseis por meio do investimento em modos de transporte mais limpos – incluindo transporte público, bicicleta e caminhada – é essencial para criar cidades mais seguras e sustentáveis.
A Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) apresentou recentemente um plano de 10 pontos de como os governos podem reduzir a dependência do petróleo no transporte. Entre os pontos destacados, estão o incentivo ao uso do transporte público e uma melhor experiência a pedestres e ciclistas. De acordo com o TUMI Transport Outlook, a capacidade do transporte público precisa dobrar e pelo menos 50% dos deslocamentos devem ser feitos a pé ou de bicicleta até 2030 para que possamos manter o aumento da temperatura global dentro de 1,5°C, o limite considerado necessário pelos cientistas para prevenir os piores efeitos das mudanças climáticas. O relatório de 2022 do IPCC sobre mitigação mostrou que as cidades podem reduzir o consumo de combustível nos transportes em cerca de um quarto por meio de diferentes combinações entre uso do solo mais compacto e a oferta de infraestrutura para outros modos de transporte, como ciclofaixas e desenho urbano para pedestres. Outras pesquisas mostram ainda que investir em infraestrutura para transporte público, caminhada e bicicleta gera múltiplos benefícios para o clima, a economia e a saúde.
Ainda assim, apesar dos benefícios evidentes do transporte público, da caminhada e do uso da bicicleta, esses meios de transporte permanecem consideravelmente subfinanciados em comparação à infraestrutura oferecida aos carros.
A seguir, veja cinco maneiras de impulsionar o transporte público e a mobilidade ativa para reduzir a dependência no petróleo e criar um futuro mais sustentável.
O mundo se encaminha para passar dos atuais 1,3 bilhão de carros para 2,2 bilhões em 2050. Mesmo aumentando o número de veículos elétricos, diminuir as taxas de motorização ainda é um dos principais caminhos para reduzir o uso de petróleo e as emissões de carbono. Também é um grande desafio, uma vez que requer mudanças individuais de comportamento e o rompimento com décadas de dependência dos veículos motorizados e sua priorização por indivíduos, empresas e governos.
Os altos preços atuais podem até mesmo ajudar com essa mudança de comportamento devido à elasticidade de renda no lado da demanda. Um exemplo da Califórnia mostra que, para cada US$ 0,50 de aumento no preço do galão de gasolina, o trânsito nos dias úteis nas rodovias próximas aos sistemas de transporte sobre trilhos diminui em 0,7%. Em paralelo, o aumento dos passageiros nesses sistemas é aproximadamente equivalente ao número de veículos a menos nas ruas.
Em países de renda mais baixa, onde as taxas de motorização já são menores, o momento é crucial para tornar os modos de transporte sustentáveis mais seguros, eficientes e atrativos. Em cidades como Adis Abeba e Bogotá, entre 80% e 90% dos deslocamentos são feitos via transporte coletivo, caminhada ou bicicleta. A posse de veículos, no entanto, deve aumentar conforme as economias desses países crescem, e grande parte dos investimentos em transporte ainda vai para infraestrutura voltada a veículos motorizados, como vias e rodovias, pontes e túneis.
Mas há uma maneira de romper com padrões do passado. Quando as empresas operadoras melhoram a qualidade dos sistemas, oferecem um serviço seguro, confortável e a um preço acessível e constroem infraestrutura segura, inclusiva e eficiente para pedestres e ciclistas, é possível atingir a mudança de comportamento necessária, oferecendo aos usuários alternativas viáveis. Curitiba, por exemplo, a partir dos anos 1970 começou a implementar diversas medidas focadas em uso do solo e transporte, como a construção de um corredor BRT e a transformação do centro da cidade em área exclusiva para pedestres. Como resultado, mais de 70% dos deslocamentos na cidade são feitos de transporte coletivo, a pé ou de bicicleta.
O transporte coletivo tem o potencial de reduzir substancialmente o consumo de petróleo e as emissões do setor de transportes ao mesmo tempo em que oferece acesso mais igualitário a oportunidades de trabalho, educação e serviços. No entanto, as pessoas só vão considerar deixar de usar o carro quando os serviços forem acessíveis, confiáveis e de alta qualidade. Tarifas caras e veículos desconfortáveis ou com baixa frequência podem afastar muitos passageiros e dificultar o acesso de novas pessoas ao transporte.
Mesmo assim, o transporte público tem sido alvo de desinvestimentos e políticas negativas por anos. De acordo com a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), os deslocamentos feitos pelos sistemas de transporte público no Brasil caíram mais de 26% entre 2013 e 2019. Em parte, devido a políticas de incentivo à compra de veículos e motocicletas, como subsídios e isenções fiscais nos combustíveis e em taxas de importação. Hoje, os desafios se multiplicam em decorrência da crise causada pela Covid-19, com o número de passageiros chegando a 20% dos níveis pré-pandêmicos em muitos lugares.
Garantir mais espaço para o transporte público nas cidades, aumentar o financiamento e investir em infraestruturas para um transporte novo, mais limpo e confortável pode fazer uma grande diferença e atrair passageiros, além de recuperar os antigos. No final dos anos 1990, por exemplo, o sistema de ônibus públicos de Bogotá sofria com baixas velocidades operacionais e altas taxas de poluição e colisões no trânsito. Começando com a instituição da agência de transporte TransMilenio em 1999, a cidade qualificou o antigo sistema expandindo o serviço para regiões mais distantes, implementou um sistema de cobrança automático, incluiu novas linhas e adicionou 1.500 ônibus novos à frota. As mudanças levaram a um aumento no uso do sistema, que alcançou 1,5 milhão de deslocamentos por dia; a uma redução do número de ferimentos e mortes no trânsito de 75% e 92%, respectivamente, nas áreas onde o sistema opera; e a uma diminuição de 40% nos poluentes atmosféricos na cidade.
A eletrificação do setor promete reduções ainda maiores na poluição e potenciais economias com o corte de custos com combustível. O TransMilenio está em vias de operar a maior frota de ônibus elétricos do mundo fora da China. Quando finalizado o processo, o sistema deve contar com 406 ônibus elétricos e transportar 36 milhões de passageiros por ano.
A experiência ensina que sistemas de transporte público abrangentes dificilmente podem ser pagos apenas com a receita das tarifas. Os sistemas precisam de mecanismos de financiamento mais robustos e sustentáveis por parte do setor público e de investimentos de capital – recursos que ajudem os sistemas de transporte coletivo não apenas a sobreviver, mas a prosperar.
Diversificar as fontes de financiamento pode oferecer uma receita mais estável e resiliente diante de crises. No caso do TransMilenio, os recursos financeiros do setor público vêm de um imposto sobre os combustíveis (46%), receitas locais (28%), um crédito do Banco Mundial (6%) e fundos do governo nacional (20%). Metade do imposto de 25% sobre a gasolina em Bogotá é usado para dar continuidade à expansão do sistema. Em Viena, na Áustria, que também trabalha na ampliação de seu sistema, as tarifas cobrem apenas 55% dos custos operacionais, enquanto pagamentos indiretos do governo nacional, um imposto de transporte para grandes empresas e a verba do estacionamento nas vias e em garagens municipais cobrem o restante.
O transporte de massa é essencial para o bom funcionamento das cidades, mas a caminhada e a bicicleta são os meios de transporte mais verdes de fato. No setor de transportes, também são os que exigem os investimentos mais fáceis e menos custosos.
A mobilidade ativa apresenta um considerável potencial não explorado, uma vez que 35% dos deslocamentos urbanos são feitos em um raio de 5 quilômetros e 50% de todos os deslocamentos acontecem dentro de 10 quilômetros. Ainda assim, na maioria dos lugares, os modos ativos não são os mais utilizados.
Em parte, isso se deve ao fato de que pedestres e ciclistas são os mais expostos ao risco de sofrer algum tipo de ferimento nas vias. Quase 50% das mortes no trânsito são de motociclistas, pedestres e ciclistas. Nos países de baixa renda, as mortes de pedestres chegam a representar mais de 40% das fatalidades no trânsito. Mulheres, crianças e pessoas idosas sofrem as consequências de forma desproporcional.
A caminhada e a bicicleta são a chave para nos afastarmos da dependência do petróleo. Construir infraestrutura segura para a mobilidade ativa – como ciclovias permanentes e bem projetadas – pode proteger os usuários e atrair novos, incluindo uma parcela mais ampla e interseccional da sociedade.
As cidades devem ter como foco a redução dos limites de velocidade e a implementação de separações físicas entre pedestres, ciclistas e motoristas, especialmente nas áreas onde os limites de velocidade passam dos 30 km/h. Essas separações podem ser integradas à via – como vasos de plantas, faixas de estacionamento ou barreiras de concreto, como na foto acima – ou pela implementação da infraestrutura cicloviária em um nível diferente da via.
A infraestrutura para pedestres e ciclistas também deve conectar pontos-chave da cidade e estações de transporte, principalmente em áreas de renda mais baixa. Por exemplo, o município de Zapopan, no México, propôs a instalação de três ciclovias para conectar a cidade com Guadalajara, o centro da área metropolitana. Os 15 quilômetros de novas ciclovias dedicadas visam oferecer uma alternativa segura e acessível para as pessoas que se deslocam entre as duas cidades. A primeira foi finalizada em julho de 2020; e dados preliminares mostram um aumento de 26% nos deslocamentos de bicicleta usando a rota.
Muitas cidades podem partir das mudanças durante a pandemia de Covid-19. O uso da bicicleta aumentou 200% no Reino Unido durante os lockdowns de 2020, enquanto 500 mil bicicletas elétricas foram vendidas nos Estados Unidos no mesmo ano, mais do que qualquer veículo elétrico. Centenas de cidades transformaram ruas em exclusivas para pedestres, reduziram limites de velocidade e instalaram ciclofaixas temporárias. Paris, por exemplo, diminuiu os limites de velocidade para 30 km/h e implementou 50 quilômetros de ciclofaixas temporárias, o que fez o número de ciclistas subir consideravelmente. A cidade planeja instalar outros 180 quilômetros de ciclovias permanentes até 2026.
A caminhada e a bicicleta são frequentemente negligenciadas nos investimentos em infraestrutura. Os orçamentos em geral priorizam projetos voltados para os carros, enquanto pedestres e ciclistas permanecem à margem. Os governos, bem como os bancos multilaterais de desenvolvimento, precisam perceber a importância de financiar esse tipo de infraestrutura para alcançar o nível de segurança adequado para os pedestres.
No Peru, por exemplo, o governo aprovou um decreto emergencial para destinar US$ 5,5 milhões à construção de ciclofaixas temporárias. Como resultado, 25 cidades pequenas e médias foram selecionadas para construir 400 quilômetros de ciclofaixas. Esse financiamento levou a mudanças viárias substanciais em lugares onde ciclofaixas e a cultura do uso da bicicleta simplesmente não existiam antes.
Em termos de energia, as implicações da guerra entre Rússia e Ucrânia ilustram os custos da dependência do petróleo. Manter o aumento da temperatura média global dentro do limite de 1,5°C é impossível sem mudanças transformadoras no setor de transportes, em especial no transporte urbano. Investir em transporte de massa, caminhada e bicicleta deveria fazer parte da agenda de qualquer governo – não só por serem os meios de transporte mais limpos, baratos e inclusivos, mas porque trazem ainda benefícios adicionais como a diminuição dos congestionamentos e dos níveis de ruído, ar mais impo e um estilo de vida mais saudável e ativo para as pessoas, entre outros.
A mobilidade ativa e o transporte coletivo podem melhorar a qualidade de vida ao ajudar a fazer das cidades lugares mais equitativos e saudáveis. Todos os governos e atores envolvidos no setor de transportes devem estabelecer duas metas bastante viáveis: aumentar o uso do transporte coletivo e garantir que 50% dos deslocamentos sejam feitos a pé ou de bicicleta até 2030.
Este texto foi originalmente publicado por WRI Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não representa necessariamente a opinião do Portal eCycle.
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