Estudo liderado por Luciana Gatti aponta que Amazônia já emite mais carbono do que é capaz de absorver; desmatamento e queimadas em nosso país são os principais vetores
Há uma semana, o telefone da pesquisadora Luciana Gatti não para de tocar. Coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa (LaGEE) do Inpe, ela liderou uma pesquisa publicada na última quarta-feira (14) pela conceituada revista Nature com conclusões importantes sobre a realidade da Amazônia: se antes a floresta funcionava como um sumidouro de carbono, agora já emite mais CO2 do que consegue absorver, o que pode contribuir para o agravamento das mudanças climáticas no mundo. Cerca de 60% da Amazônia fica no Brasil, que compartilha o bioma com outros oito países.
De 2010 a 2018, a equipe comandada por Gatti mediu os níveis de dióxido de carbono em quatro localidades da Amazônia e concluiu que as regiões com as maiores taxas de liberação do gás de efeito estufa, na parte leste do bioma, são as que mais sofreram desmatamento. A porção sudeste, que abrange o sul do Pará e o norte do Mato Grosso, é a mais afetada e está em situação de emergência. “Estamos perdendo a floresta amazônica nessa região”, alerta a cientista.
Para frear o processo, Gatti defende a moratória do desmatamento e das queimadas por pelo menos cinco anos em toda a Amazônia, mas sobretudo na região sudeste, que precisa imediatamente também de projetos de recuperação florestal. “Num cenário desses, tenho fé que exista possibilidade de retorno”, afirma a pesquisadora. No entanto, ela vê distância entre a atual política ambiental e as medidas necessárias. “O Brasil tem um papel central e com certeza uma responsabilidade muito maior, porque não só temos a maior parte da Amazônia, como também a maior parte do desmatamento e das queimadas está aqui dentro. E o governo está fazendo o inverso do que deveríamos estar fazendo.”
Por que a Amazônia deixou de atuar como um “sumidouro” de carbono e passou a emitir mais CO2 do que absorver?
O que a gente encontrou é que as áreas que estão muito desmatadas – dentro da nossa amostragem de quatro lugares de estudo –, em torno ou acima de 30%, já mostram uma mudança na condição [de absorver carbono] muito grande na estação seca. A teoria que elaboramos é de que a condição de seca extrema todo ano em agosto, setembro e outubro estava levando a floresta, além de reduzir a absorção, a aumentar a mortalidade [das plantas]. Imagina uma árvore: na super seca, com uma disponibilidade de água minúscula, no mínimo as folhas começam a ficar marrons, a cair e tem espécie que chega a hibernar: caem todas as folhas e elas param de fazer fotossíntese, mas continuam respirando. Sob estresse muito grande, a gente entende que as plantas não só emitem mais carbono do que absorvem, mas chegam até a morrer. Na parte sudeste da Amazônia [que compreende o Sul do Pará e o norte do Mato Grosso], onde observamos o maior aumento de temperatura, aumentou em agosto, setembro e outubro 2,5 graus. Se a gente olhar só agosto e setembro, aumentou 3,1 graus Celsius nos últimos 40 anos, e reduziu 24% de chuva. Imagina uma floresta tropical úmida: como é que uma árvore típica de uma região com abundância de chuva e temperaturas amenas vai sobreviver numa situação dessas? O que começa a acontecer é que as árvores mais sensíveis morrem e só as mais resistentes sobrevivem.
Até o momento, o que é possível afirmar sobre os principais fatores para essa mudança?
Basicamente, desmatamento e queimadas, porque eles vão mudar o clima, principalmente na estação seca. E aí entra na bola de neve. A estação seca vai fazer a floresta ficar cada vez mais fácil de queimar, e a coisa só se retroalimenta.
Com base nas conclusões do artigo, é possível afirmar que o sudeste da Amazônia está passando por um processo de savanização? Isso pode representar a chegada do tipping point, o ponto de não retorno, em que a floresta perde suas características irreversivelmente?
Com certeza, se a gente não mudar nada, esse é o futuro – isso se já não chegamos, pois é muito difícil dizer se já não estamos num ponto de não retorno. Hoje, o que dá para dizer é que tem mais árvores morrendo do que crescendo no sudeste da Amazônia. Isso é uma certeza, a gente vê que, mesmo subtraindo a emissão proveniente das queimadas, a cada ano que passa a floresta emite mais carbono. O segundo ponto é que tem menos chuva, maiores temperaturas e o desmatamento está desenfreado. O cara desmata na estação chuvosa e espera meses para seca e, quando vai tacar fogo, a floresta ao redor que ele não suprimiu está super seca, então o fogo acaba queimando a floresta não desmatada, o que também representa emissão de carbono. Estamos jogando um monte de carbono na atmosfera e ajudando a acelerar as mudanças climáticas, e estamos liberando menos vapor de água na atmosfera – e então reduzindo as chuvas – e contribuindo para que a temperatura aumente. E então essa floresta vai estar mais suscetível a ser queimada. As coisas vão se retroalimentando, é um looping – cada ano está pior. A região sudeste da Amazônia está em emergência, ali nós estamos perdendo a floresta amazônica. Tinha que ter uma medida já de proibição de queimadas e desmatamento nos estados do Pará e do Mato Grosso. Essa região que já está mais emitindo carbono do que absorvendo é do meio do Pará para baixo.
Diante dessa situação de emergência, o que é preciso fazer para evitar a chegada ao ponto de não retorno na região sudeste da Amazônia?
Vamos fazer um exercício de sonhar: nessa região, vão ficar proibidas queimadas de julho a novembro, vai haver uma moratória do desmatamento e vamos ter muitos projetos de recuperação florestal e de promoção da economia com a floresta em pé. Num cenário desses, tenho fé que exista possibilidade de retorno. Imaginemos uma bola de neve positiva: neste ano não teremos nem queimadas ou incremento do desmatamento, então a floresta terá um respiro e poderá se recuperar um pouco. Desse modo, no ano seguinte, teremos, no mínimo, uma estabilização da redução de chuva ou até um pequeno aumento caso a floresta cresça um pouco. Sabemos que este ano isso não acontecerá porque já tivemos aumento do desmatamento, que vai causar decomposição [dos restos de material orgânico das árvores] mesmo que não taquem fogo. Quanto mais crescer a floresta, mais ela vai evapotranspirar [“evapotranspiração” e o processo de perda de água do solo por evaporação e perda de água da planta por transpiração], mais vai ter chuva e menor fica a temperatura, então ela vai ter mais condição de se recuperar. Mas, no mínimo, é preciso haver uma moratória de cinco anos nas queimadas e no desmatamento e a criação de projetos de reflorestamento nessa região. Essa é a tarefa que está colocada e a ciência pode contribuir muito apontando a direção que precisamos tomar. Na verdade, a moratória do desmatamento precisa ser na Amazônia inteira.
Como a degradação florestal causada pelo desmatamento reduz a capacidade da floresta amazônica de absorver carbono?
Tem um estudo orientado pelo professor Luiz Aragão [também pesquisador do Inpe e um dos autores do estudo liderado por Gatti] sobre uma floresta primária [aquela que nunca foi desmatada] que queimou. Num primeiro momento, essa floresta queima e joga CO2 na atmosfera, mas não para por aí, pois ao longo dos trinta anos seguintes uma parte dela vai morrer e provocar emissões por decomposição, que representam 72% do total das emissões – isso significa que não há liberação de carbono apenas no momento em que a floresta queima. Há ainda outra informação: o tanto que essa floresta se recupera equivale apenas a um terço do total das emissões. A floresta queimada representará um grande volume de emissões que não está sendo computado e que, pelo jeito, é até maior do que o proveniente de desmatamento, quando o tronco, que é o grosso da massa de carbono, vai para venda. A degradação faz com que, no ano seguinte [ao desmatamento], haja menos árvores para evapotranspirar e, por consequência, menos chuva, temperaturas mais altas e uma floresta ainda mais seca, o que fará com que o fogo se alastre mais rapidamente. É fácil da gente concluir que a degradação, nas regiões com um volume de desmatamento muito alto, é muito superior às regiões com taxas menores de desmatamento.
De que maneira essas práticas podem impactar o regime de chuvas e quais as consequências disso para todo o país?
As árvores jogam vapor de água na atmosfera – elas fazem parte da composição da chuva. Na Amazônia, as massas de ar entram na floresta levando a umidade do oceano, aí chove e há uma reposição desse vapor de água para que continue o processo de chuva a partir da evaporação dos rios, lagos, áreas alagadas e a evapotranspiração das árvores – esta última responde em média por um terço da reposição de água, mas pode variar de 25% a 50%. Se a gente já desmatou 20% da Amazônia, já reduzimos a reposição do vapor de água na atmosfera por meio das árvores. O problema é que esses 20% de desmatamento não estão distribuídos igualmente pelo bioma, estão mais concentrados no que chamamos de “arco do desmatamento”. Neste cinturão, a redução de precipitação já é muito grande e se intensifica ainda mais na estação seca. Há uma mudança muito intensa nos meses de agosto, setembro e outubro, exatamente quando vemos um grande número de queimadas no Brasil, porque já está chovendo no mínimo 20% a menos na Amazônia. Então, para o resto do Brasil e também para uma parte da América do Sul – Paraguai, Uruguai etc, já que a massa de ar vai descendo –, há menos chuva também.
O artigo revela diferenças significativas entre as porções leste – onde fica o Brasil – e oeste da Amazônia em termos de capacidade de absorção e emissão de CO2. Por que há divergências tão gritantes entre elas?
A parte leste [considerada no estudo] tem mais ou menos 2 milhões de km² e está 30% desmatada, em média, enquanto a parte oeste está em média 11%. Quando calculamos o quanto a floresta está conseguindo compensar as emissões de CO2 decorrentes das queimadas, verifica-se que na Pan-Amazônia essa taxa é de 30%. Se considerarmos apenas o Brasil, ela cai para 18%, pois a maior o desmatamento aqui é muito maior do que nos outros países da Amazônia. Podemos dizer com toda certeza que o Brasil é o pior país no cuidado com a Amazônia.
O estudo traz resultados referentes ao período de 2010 a 2018, mas é possível afirmar que a Amazônia vem perdendo sua capacidade de absorver carbono há mais tempo?
Nosso estudo só tem nove anos, sabemos que nesse período a mortalidade na Amazônia aumentou. O professor Roel Brienen [da Universidade de Leeds, no Reino Unido], em um estudo publicado na Nature em 2015, viu muito claramente a mortalidade na Amazônia aumentando desde 1990. Dois anos depois, o professor Oliver Phillips, coordenador do projeto RAINFOR [que monitora o comportamento do bioma amazônico em diversos aspectos], separou a Amazônia em cinco partes e mostrou que a região sudeste faz uma remoção menor de carbono, que a cada ano diminui mais. Então, a gente já tinha essa sinalização de outros estudos. No nosso cenário de nove anos, a gente enxerga uma variabilidade ano a ano do balanço de carbono porque tem anos em que chove mais e anos em que chove menos, anos mais quentes, anos mais frios – cada ano sai de um jeito. É por isso que tomamos a decisão de fazer o estudo de uma década. Ainda não completou uma década, temos nove anos aí, mas a gente já tinha o entendimento de que está havendo uma interferência nos fluxos de carbono. Ainda teremos mais quatro anos de medidas, e o que queremos agora é fazer parcerias mais estreitas com quem está estudando a floresta lá embaixo, para entender melhor o que está acontecendo com ela. Se a gente conseguir separar a decomposição da absorção, vamos conseguir ver o que mais tem interferido nessa redução da absorção de CO2. Quanto mais você vai desenvolvendo ferramentas, mais você vai entendendo. Não dá pra dizer que entendemos tudo na Amazônia, ainda tem muito para entender. A natureza é tão complexa que tudo está interligado com tudo. Eu gosto de pensar na natureza como um jogo de dominó, onde você põe todos os dominós um do lado do outro e na hora que você mexe em um, na sequência mexe com todos os outros. O efeito da nossa interferência na natureza é muito maior do que a gente imagina.
Sabendo das taxas crescentes de desmatamento e focos de queimadas nos últimos anos, pode-se afirmar que a política ambiental do governo Bolsonaro acentua essa tendência?
Sem dúvida. Temos as mudanças climáticas interferindo nesse processo e o estamos acelerando ainda mais com taxas recordes de desmatamento e queimadas na Amazônia. Basicamente, estamos multiplicando os efeitos das mudanças climáticas com o desmatamento na Amazônia. Nós tínhamos na Amazônia uma segurança, uma proteção contra as mudanças climáticas, porque ela é um corpo de árvores gigantescas jogando um monte de vapor de água na atmosfera e ajudando a resfriar. Ela deveria estar reduzindo os impactos da mudança climática para nós, mas estamos desmatando, queimando e transformando a Amazônia numa aceleração das mudanças climáticas. A gente tem que defender a Amazônia, ela está sendo assassinada, está morrendo.
E o Brasil tem papel fundamental nisso…
Exato. O Brasil tem um papel central e com certeza uma responsabilidade muito maior, porque não só temos a maior parte da Amazônia, como também a maior parte do desmatamento e das queimadas está aqui dentro. E o governo está fazendo o inverso do que deveríamos estar fazendo. Vou dar um outro exemplo de condução errada: estamos passando por um momento de escassez de chuvas, o que está impactando a geração de energia, porque os reservatórios estão baixos por conta das mudanças climáticas, do desmatamento e das queimadas. Qual é a solução brilhante? Termelétricas a gás, que vão jogar ainda mais gases de efeito estufa na atmosfera e só vão piorar o cenário.
Como os territórios indígenas podem ajudar a frear esse processo todo?
Na prática, o que a gente vê é que as reservas indígenas são as que mais efetivamente protegem a floresta. O desmatamento e a degradação são menores nas terras indígenas, exceto quando os desmatadores, os mineradores, grileiros, invadem essas terras. Os indígenas cuidam da floresta, têm um modo de vida que não depreda, não desmata. Eles fazem o mínimo para sobrevivência, não existe essa ambição de fazer aquele monte de plantação para vender bastante, ficar rico e criar um monte de gado para exportar.