Por Luíza Lanza e Daniel Tozzi Mendes, da Agência Pública | “Passou do dia 15 é quase impossível comer carne”, comenta a vendedora Cristina Souza Brito enquanto sai de um supermercado em Curitiba, capital do Paraná, carregando na sacola de compras duas dúzias de ovos. “Frango ou carne moída é só quando o salário cai no início do mês. Depois a gente se vira fazendo omelete, ovo frito ou cozido”, acrescenta. Ao menos desde o início de 2021, essa tem sido a rotina na casa onde mora com a filha, uma sobrinha e dois irmãos.
Também na casa da aposentada Ana Lúcia Freitas, a carne virou artigo de luxo. O consumo de frango, carne bovina ou peixe passou de três vezes na semana para apenas uma. “No final de semana, a gente faz uma coisinha melhor, mas durante a semana é mais ovo e salada”, conta a aposentada sobre a rotina que divide com a filha e a neta há quase três anos, quando, segundo ela, “o supermercado começou a ficar mais caro”.
A sensação de que os brasileiros estão substituindo a carne por ovo para aliviar o bolso não fica restrita apenas às conversas na saída dos supermercados. Em meio ao aumento de preços generalizado, a carne se destaca com altas acima da inflação e, em abril de 2022, custava 42,6% a mais do que no início de 2020, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o que ajuda a explicar o fenômeno.
Publicada em abril de 2021, a pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, organizada pelo grupo Food for Justice, que conta com a participação de professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de Berlim, apontou que, no final de 2020, o ovo tinha sido o alimento cujo consumo os brasileiros mais haviam aumentado — alta de 18,8%. Em contrapartida, a carne registrou a maior queda: redução de 44%, o que, segundo os pesquisadores, reforça a ideia de substituição entre os dois alimentos.
“Nos chamou a atenção os resultados inversos no consumo de ovo e de carne, já que ambos os alimentos estão presentes na mesa do brasileiro e existe um traço cultural muito forte de consumo de proteína animal no país”, comenta a professora Eryka Galindo, pesquisadora da Universidade de Berlim e uma das responsáveis pelo estudo.
De acordo com a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), entre janeiro e agosto de 2021, o ovo foi a fonte de proteína de origem animal preferida dos brasileiros. Pouco mais de 19% dos consumidores optaram pelo alimento, patamar maior do que o registrado com os cortes de frango congelado (14,6%); de carne bovina de segunda ou terceira (14,1%) e das chamadas “carnes de primeira”, como alcatra, filé-mignon e contrafilé (7%).
Crise sanitária e econômica à parte, o brasileiro nunca comeu tantos ovos como agora. O consumo do alimento no país mais do que dobrou nos últimos 15 anos, saindo da marca anual de 120 ovos per capita em 2007, para 257 unidades em 2021, segundo números da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA). O atual patamar de ovos consumidos por cada brasileiro ao longo de um ano é maior do que a média mundial, que é de 227.
A alta do consumo na série histórica é explicada, principalmente, pela “desmistificação” do alimento, que por décadas foi considerado uma espécie de vilão na dieta do brasileiro por causa do alto teor de colesterol. Enquanto 100 gramas de carne bovina possuem cerca de 92 miligramas de colesterol, a mesma quantidade de ovo apresenta quatro vezes mais: 397 miligramas. “Hoje já sabemos que não há diferença de risco, por exemplo, do desenvolvimento de doenças cardiovasculares entre quem consome ovo ou não”, explica Roberta Brandão da Cunha, nutricionista especialista em segurança alimentar nutricional do Grupo de Pesquisa de Intervenções em Nutrição da UFMG.
A nutricionista destaca que, além de o colesterol ser um tipo de gordura fundamental para o funcionamento da produção hormonal e do sistema nervoso humano, ao longo dos anos o padrão alimentar dos brasileiros foi se alterando, especialmente com o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados. “Isso significa que o brasileiro passou, também, a ingerir vários aditivos e gorduras que são muito mais prejudiciais à saúde do que o colesterol vindo do ovo, que é um alimento in natura”, pontua a professora.
Em um cenário em que o consumo é cada vez maior, a indústria do ovo no Brasil corre para atender a toda essa demanda. De 2010 para cá, a indústria granjeira praticamente dobrou de tamanho no país, e hoje o Brasil produz cerca de 54,9 bilhões de ovos por ano. São 1.700 ovos por segundo.
Tamanha produtividade, no entanto, não ocorre sem que os granjeiros tenham que lidar com seus próprios desafios — que hoje vão do alto preço da ração das galinhas às mudanças climáticas, passando por discussões sobre os modelos de criação das aves dentro de gaiolas e o impacto que a criação pode causar ao meio ambiente.
Uma galinha pode morrer de calor se o local em que ela estiver ultrapassar 40ºC. O mandamento faz parte da rotina dos produtores de ovos do município de Bastos, no centro-oeste paulista, conhecido como a “Capital do Ovo”, onde são produzidos cerca de 6% de todos os ovos do Brasil.
No calor, contudo, a produtividade tende a baixar. As galinhas acabam gastando mais energia para equilibrar a temperatura corporal com o ambiente e, consequentemente, botam menos ovos ou produzem ovos menores. Em casos extremos, mas não incomuns, os animais não resistem às altas temperaturas e morrem dentro das granjas. “Passa o dia inteiro quente, com o sol batendo e a galinha absorvendo esse calor. De noite, ela fica cada vez mais ofegante, não aguenta e morre. Na manhã seguinte, você começa a retirar as galinhas mortas da gaiola. É triste, mas não tem muito o que fazer”, comenta o avicultor e veterinário Sérgio Kakimoto, dono de uma granja em Bastos.
Em outubro de 2020 uma onda de calor tomou conta do estado de São Paulo e, na região de Bastos, a temperatura beirou 40ºC por pelo menos cinco dias seguidos. O episódio até hoje é lembrado pelos produtores da cidade, especialmente por aqueles que viram parte da produção diminuir por conta do calor, que costuma castigar as galinhas nessa época do ano.
Pode parecer estranho que o período mais crítico de calor para as aves seja entre os meses de setembro e outubro, e não durante o verão, costumeiramente quente na região do oeste paulista. Mas é justamente esse choque de temperatura — entre o clima mais ameno no meio do ano e a onda de calor — que leva as galinhas à morte, conforme explica Danilo Florentino Pereira, professor de engenharia agrícola da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “É um efeito da máquina biológica da ave e sua capacidade de aclimatação: elas estavam acostumadas com um clima muito fresco e, de repente, vem uma onda de calor, como a que aconteceu em 2020, e as galinhas sofrem confinadas em uma gaiola, literalmente sem ter para onde correr”, comenta Pereira.
Assim, lidar com as altas temperaturas exige preparação por parte dos granjeiros, que costumam utilizar ventiladores e nebulizadores para manter o ambiente menos insalubre para as galinhas. Pintar o telhado das granjas de branco, para refletir o sol, além de diminuir o número de galinhas dentro da mesma gaiola, também são formas de amenizar o calor que, se por um lado é inevitável, por outro ao menos é previsível. “O dia do equinócio da primavera, em setembro, por exemplo, é uma data para a qual nos preparamos com bastante antecedência. A gente sabe que nesse dia o sol vai ser intenso e duradouro”, conta Cristina Nagano, diretora do Sindicato dos Produtores Rurais de Bastos, que é dona de uma granja na cidade.
Para amenizar os efeitos do calor, Cristina chega a montar equipes responsáveis por monitorar as galinhas de sua granja durante a madrugada e despejar água pelo galpão onde as aves estão concentradas. “É um período muito delicado, e, se a granja está sem dinheiro para providenciar todas essas alternativas, de fato pode haver mortes”, acrescenta a produtora, que faz questão de pontuar que os índices de mortalidade durante as ondas de calor não são uniformes em todas as granjas. “Nesse episódio de 2020, por exemplo, nos saímos bem com as medidas preventivas”, diz.
Com as mudanças climáticas, a tendência é que ondas de calor sejam cada vez mais frequentes. Um relatório global do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em agosto de 2021, indica que a temperatura média do planeta tende aumentar 1,5ºC nas próximas duas décadas, trazendo devastação generalizada por eventos climáticos extremos — períodos prolongados de seca, tempestades e furacões, além de novas ondas de calor.
Em 2018, quando estava defendendo sua tese de mestrado em agronegócio e desenvolvimento na Unesp em Tupã, a 25 quilômetros de Bastos, o pesquisador Daniel Lamarca utilizou as projeções do IPCC da época para analisar cenários de mortalidade de aves poedeiras causadas pelo calor. E a conclusão foi que, para sobreviver, a indústria de ovos vai precisar adaptar parte dos sistemas de produção atuais.
“Algumas granjas já estão iniciando novas plantas de produção em galpões fechados, em um sistema totalmente climatizado, onde a temperatura externa não afeta o ambiente interno. Essa é uma alternativa, porém, que exige investimento alto”, comenta Lamarca. Em Bastos, a preocupação é visível e pelo menos 30% do plantel de galinhas do município já é criado em ambientes climatizados.
Autoproclamada a “Capital do Ovo”, a cidade de Bastos ostenta a peculiar relação de pouco mais de 500 galinhas para cada ser humano vivo dentro do município. São pouco mais de 20 mil habitantes (humanos) e 11,3 milhões de galinhas, espalhadas por aproximadamente 60 granjas.
Se todas as galinhas de Bastos fossem colocadas lado a lado em uma única linha reta, seria possível percorrer os cerca de 2 mil quilômetros que separam a cidade da capital de Pernambuco, Recife. Tal marca reflete em números de produção igualmente superlativos: 3,2 bilhões de ovos por ano, o equivalente a 9 milhões por dia, ou, 6,2 mil por minuto.
Quem se aproxima do município pela principal via de acesso, a rodovia SP-457, percebe aos poucos a concentração de galpões de granjas na beira da estrada e o forte cheiro de ração e esterco de galinha. Quanto mais próximo das granjas, maior a quantidade de moscas circulando.
Ao caminhar por Bastos, também chama atenção a presença de silos (enormes estruturas em formato cilíndrico, responsáveis pela armazenagem dos grãos que dão origem à ração das galinhas) espalhados pela cidade. Alguns desses silos estão instalados dentro da área urbana do município, contrastando com o mosaico de casas e comércios. “É o jeito para alimentar essa quantidade toda de galinhas”, comenta o cliente de um salão de beleza que funciona na frente de um desses silos, no centro de Bastos, enquanto a reportagem da Pública percorria as ruas da cidade. Quando a estrutura está sendo abastecida com os grãos, o barulho é tão grande que qualquer conversa próxima ao silo fica impossível.
Peculiaridades do gênero à parte, Bastos mantém o aspecto pacato de cidade do interior paulista. A alcunha de “terra do ovo” é motivo de orgulho entre a população e, por toda a cidade, existem referências ao alimento, que vão da “Praça do Ovo”, ponto turístico de Bastos, à decoração personalizada de alguns postes de luz, ladrilhos de calçada e placas com o nome de ruas. “Aqui todo mundo tem orgulho de falar que mora na Capital do Ovo”, afirma Breno Erick dos Santos, servidor da secretaria de Cultura de Bastos, nascido e criado no município.
Assim como um brasileiro que vai ao exterior e presenteia estrangeiros com itens que fazem referência ao samba ou ao futebol, de acordo com Breno, é comum que a população bastense presenteie “forasteiros” com ovos. “É nosso principal traço cultural e símbolo da cidade. Se estamos em uma agenda com autoridades de outras regiões, por exemplo, fazemos questão de entregar ovos de presente”, conta.
Além de um dia a dia quase que inteiramente voltado para a produção de ovos, outro aspecto marcante da cidade é o forte laço com o Japão e a cultura do país asiático. Bastos foi fundada em 1928 por imigrantes japoneses, e o impulsionamento da indústria do ovo no município está ligado à chegada da população nipônica, que deu início à criação de galinhas na região na década de 1950.
Ainda hoje, a grande maioria das granjas de Bastos pertence a famílias japonesas, que mantiveram os negócios funcionando com o passar das gerações. Não à toa, a presença de descendentes de japoneses na cidade é significativa. No censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, por exemplo, pouco mais de 11,3% da população do município se autodeclarou “amarela”, o que faz de Bastos a cidade do estado de São Paulo com a maior concentração dessa etnia, e a terceira maior em todo o Brasil.
Hoje, a maioria das granjas em Bastos segue o modelo de criação em gaiolas e em galpões abertos. Conhecido também como “sistema californiano”, as gaiolas ficam dispostas em dois andares ao longo de um enorme corredor, coberto por um telhado e sem paredes laterais, cercado apenas por telas de arame. Já os galpões mais modernos, ainda em menor número, mas cada vez mais presentes em Bastos, são construídos para abrigar mais de um corredor de gaiolas, possuem o pé-direito mais alto e são completamente fechados.
Além do controle do clima a partir de um sistema de refrigeração, nesses galpões fechados o fornecimento de ração e o recolhimento das excretas produzidas pelas galinhas são feitos de forma automatizada, por meio de um sistema de esteiras. Nos galpões convencionais, a retirada dos resíduos é feita manualmente, após as excretas se acumularem embaixo das gaiolas. Em média, uma galinha produz 30 gramas de excretas por dia. Em um galpão convencional, com 5 mil galinhas, são cerca de 4,5 mil quilos de resíduos sólidos produzidos todo mês. Daí a explicação para a grande quantidade de moscas circulando pela cidade.
Apesar de a presença desses insetos ser mais comum nas zonas rurais, não é difícil encontrar restaurantes ou pequenos estabelecimentos que vendem comida na cidade sofrendo com o problema, e, de tempos em tempos, a infestação de moscas é alvo de reclamações da população às autoridades locais.
Após serem retiradas pelos granjeiros, as excretas são comercializadas para os chamados “esterqueiros”, que transformam o material em fertilizantes. Além do indissociável problema das moscas, se não manejadas de maneira correta, as excretas de galinhas podem causar problemas tanto à saúde dos próprios animais quanto à biodiversidade local, conforme explica a professora Nilsa Silva, do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
“As excretas são ricas em amônia, substância que, quando dissipada no ar, se transforma em gases nocivos aos animais, capazes de afetar desde o sistema respiratório até a visão das galinhas”, explica Nilsa. “Do outro lado, existem todos os perigos para a biodiversidade no entorno da granja e para os próprios seres humanos, caso os excrementos contaminem leitos de rio, por exemplo”, acrescenta a pesquisadora. No entanto, ela ressalta que esse cenário, ao menos no presente, está distante da realidade.
“A legislação brasileira e os manuais de procedimentos adotados pelas granjas são bastante rígidos nesse sentido e os produtores sabem da importância do manejo correto. Como há esse caráter circular, com as excretas sendo transformadas em fertilizantes, é possível dizer que o impacto ambiental das granjas é bem baixo quando comparado com o de outras produções animais”, afirma a professora.
Com o manejo correto das excretas e carcaças, a produção granjeira não tem grande impacto nos ecossistemas dos municípios onde está inserida. Em Bastos, à exceção das moscas e do cheiro das aves nas proximidades das granjas, não há registros de impactos hídricos ou ambientais gerados pela atividade poedeira. Ao se analisarem os dados públicos sobre a cidade, porém, um dado chama atenção: a incidência de diarreia na população.
De acordo com os dados mais recentes do IBGE, de 2016, o índice de internações por diarreia em Bastos era de 10,8 por mil habitantes; o terceiro maior do estado de São Paulo. Na capital paulista, por exemplo, a taxa era 36 vezes menor, com apenas 0,3 internação a cada mil habitantes.
A diarreia pode ser causada por diferentes agentes, como vírus, protozoários ou bactérias. Uma bactéria comum relacionada à produção de ovos é a salmonela, presente não apenas nas galinhas, mas em outros animais. Por exigência do Ministério da Agricultura, todas as aves precisam ser vacinadas contra a salmonela, e as granjas são inspecionadas para garantir que nem os ovos nem a água estejam contaminados. “Por esses fatores, é difícil traçar uma correlação entre a incidência da diarreia e a quantidade de galinhas em Bastos sem que um estudo científico específico seja realizado”, esclarece Cristina Soares Araújo, professora do Departamento de Nutrição e Produção Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP).
Nos casos de contaminação por salmonela, a bactéria fica na superfície da casca do ovo, podendo passar para outros alimentos via contaminação cruzada, na hora da preparação, mas temperaturas altas de cocção conseguem matar essas bactérias rapidamente. “Tradicionalmente, os japoneses ingerem mais alimentos crus, o que poderia explicar o alto índice de internações por diarreia em Bastos. Mas apenas o fato de concentrar um grande número de granjas de galinhas poedeiras não o coloca como grande consumidor de ovos”, explica o professor Edir Nepomuceno, do Departamento de Engenharia dos Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em alguns supermercados do país já é possível encontrar há alguns anos caixas de ovos com o selo “galinhas felizes” ou “galinhas livres”. Trata-se de um tipo alternativo de sistema de produção, em que as aves ficam soltas no galpão. Continua sendo um sistema de confinamento, com alimentação e luminosidade controladas, mas com maior espaço físico para que os animais expressem seu comportamento natural. Por propor uma criação fora das gaiolas, esse modelo é conhecido como “cage free”.
Trata-se de um apelo global quando o assunto é bem-estar animal. Na Europa e no Canadá, por exemplo, o sistema de produção de aves poedeiras confinadas em gaiolas já está proibido. Em outros países, como nos Estados Unidos, Austrália e Índia, a proibição está em discussão.
“Em termos de bem-estar animal, esse é o modelo ideal”, afirma Patrycia Sato, diretora técnica da ONG Alianima, entidade de proteção ambiental e animal. De acordo com Patrycia, dentro da gaiola cada galinha tem um espaço um pouco menor que uma folha de papel sulfite A4 para viver toda a vida produtiva, de cerca de dois anos. “Para além desse desconforto físico, existem outros problemas, porque as galinhas não conseguem nem abrir as asas, ciscar no chão e expressar seus comportamentos naturais.”
Mesmo que o principal motor por trás da evolução do sistema “cage free” seja o bem-estar animal, esse tipo de galpão também seria mais vantajoso do ponto de vista climático. “Um galpão sem gaiolas é muito mais fácil caso precise ser climatizado, porque ele já é fechado. E a quantidade de aves por metro quadrado é menor do que no sistema tradicional com gaiolas, uma variável importante nos episódios de onda de calor”, explica o pesquisador Daniel Lamarca.
No Brasil, ainda não há uma normativa federal que determine o fim ou limite o sistema de criação de aves em gaiolas, embora a discussão já apareça na sociedade civil e no âmbito político, ainda que timidamente. Em março de 2022, o deputado estadual Carlos Giannazi (Psol/SP) propôs na Assembleia Legislativa de São Paulo o Projeto de Lei (PL)138/2022, que pretende dar prioridade para a aquisição de ovos de produtores que utilizem o sistema de criação de aves “cage free” em processos licitatórios promovidos pelo Estado.
O movimento é visto com apreensão pelos granjeiros, caso a transição dos modelos seja imposta por meio de lei. “Nós aprendemos a criar galinhas em gaiola. A criação solta exige manejos e cuidados totalmente diferentes. É como se tivesse que aprender do zero, ou estamos condenados a perder tudo”, comenta o produtor Sérgio Kakimoto, que enxerga como principal vulnerabilidade do novo sistema o controle sanitário das galinhas. “Vacinar e cuidar das galinhas doentes é muito mais fácil dentro das gaiolas”, diz. Além de tornarem o manejo sanitário mais difícil, as galinhas soltas exigem uma reestruturação na rotina e estrutura das granjas, mais mão de obra e, em muitos casos, tendem a gerar queda na produtividade das aves.
Se não por força de lei, é a força do mercado que pode obrigar alguns granjeiros a alterar seus sistemas de produção. Com o aumento das discussões de bem-estar animal, empresas que integram a cadeia produtiva, como supermercados e redes de fast-food, têm começado a se comprometer publicamente com o assunto. Na Alianima, uma das frentes de trabalho tenta fazer justamente essa ponte, de forma a incentivar a transição dos modelos de confinamento das aves no Brasil.
“A indústria não vai fazer isso por conta própria. A estratégia é fazer com que varejistas e restaurantes se comprometam publicamente a falar que só vão utilizar ovos que venham de sistemas livres de gaiolas”, afirma Patrycia. A tentativa de diálogo da ONG é com os grandes distribuidores de alimentos, que, por terem contato direto com os consumidores e maiores margens de lucro, são as partes com maior capacidade para absorver essas transformações. “É muito injusto que toda essa pressão, que requer investimento, recaia em cima do produtor, que é quem tem menos poder aquisitivo para fazer essa mudança. Não queremos que essa transformação em prol dos animais seja ruim socialmente”, diz a diretora da Alianima.
“Em um sistema tradicional de gaiolas, a possibilidade de automação é muito grande. Precisando de uma quantidade muito reduzida de funcionários dentro da granja, o preço do ovo consegue ficar mais barato. Para cada funcionário em um sistema tradicional, você vai precisar de cinco a seis funcionários nesses sistemas alternativos. Você precisa de mais mão de obra, o custo de produção aumenta, e isso é incorporado no preço do ovo, que vai ser repassado na hora de comercializar”, destaca o pesquisador Daniel Lamarca.
Cristina Nagano, do Sindicato Rural de Bastos, diz que a pressão econômica e comercial para que essa transição aconteça já está posta, mas que ela vem do “topo da pirâmide”, e não dos principais consumidores de ovos no Brasil, a classe C e D. Por isso, na visão da avicultora, parece uma discussão afastada da realidade socioeconômica do país hoje. “O que vai acontecer é o que aconteceu na Europa: quando houve essa migração de sistema, houve aumento do preço do ovo. É muito mais caro produzir galinhas livres de gaiola. A prova disso é que hoje a caixa de ovo (com 30 dúzias) no Brasil, na média, custa R$ 140 reais. A caixa de ovo caipira, dessa mesma quantidade, deve custar R$ 250. Como a base da população vai conseguir consumir nesse preço?”, questiona.
Toda a discussão sobre mudança de sistema de criação ainda acontece em meio a outro problema: o preço de grãos, como soja e milho, e que compõem até 70% dos custos de produção dos granjeiros, está bastante inflado no mercado internacional desde o início da pandemia. A situação foi agravada com a guerra entre Rússia e Ucrânia, dois dos principais produtores mundiais de commodities agrícolas, o que fez com que as sacas produzidas no Brasil fossem cada vez mais destinadas à exportação.
Assim, os ganhos com a venda de ovos, segundo os granjeiros, não estão compensando os gastos com a alimentação das galinhas. Numa tentativa de evitar prejuízo, granjeiros não apenas de Bastos, mas em boa parte das regiões produtoras no país, têm reduzido a quantidade de galinhas poedeiras. O número de aves produzindo ovos no país, que ultrapassou os 124 milhões no início de 2020, caiu para 114 milhões em 2021 e deve diminuir ainda mais, chegando a cerca de 92 milhões no fim de 2022, de acordo com a expectativa dos produtores.
O consumo, contudo, parece longe de diminuir, o que tende a aumentar ainda mais o preço do ovo, que já acumula altas nos últimos meses por causa dos elevados custos de produção. O preço médio de uma caixa com 30 dúzias de ovos brancos, quantidade-padrão vendida pelos produtores de Bastos, por exemplo, saiu de R$ 105 em março de 2020, início da pandemia, para R$ 144 em julho de 2022. Alta de mais de 37%.
“Já temos o problema da onda de calor que exige cuidados por parte dos produtores e, consequentemente, mais custos. Da mesma forma, mudar o sistema de produção para fora das gaiolas também contribui para o aumento do preço do ovo, o que prejudica as classes econômicas mais baixas. É complexo”, resume Daniel Lamarca.
Este texto foi originalmente publicado pela Agência Pública de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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