A educação como recomeço para brasileiros e haitianos na periferia de São Paulo

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Por Camilly Rosaboni, do Jornal da USP | Vítima de um terremoto ocorrido em 12 de janeiro de 2010, o haitiano Jean Frantz Jean abandonou sua casa em Croix-des-Bouquets, Departamento Oeste, no Haiti e, junto com a família, fugiu às pressas. Assim, aos 37 anos e com uma profissão encaminhada em telecomunicações em seu país, Jean veio buscar um recomeço no Brasil, inicialmente sozinho, apenas com indicações de colegas que já tinham vindo.

Esta realidade, quase comum a muitos imigrantes haitianos no Brasil, foi objeto de análise em um estudo realizado na Faculdade de Educação (FE) da USP. Na pesquisa intitulada Deslocamentos e fronteiras: um estudo etnomatemático com haitianos em uma escola pública de São Paulo, a educadora Marilia Prado, que atua como professora de matemática em instituições privadas, analisa o contexto do ensino de português para haitianos. Com o estudo, ela busca responder, entre outras questões, quais fronteiras atravessam a trajetória de imigrantes haitianos na cidade de São Paulo.

A pesquisa de Marilia foi desenvolvida no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) Perus I, na região noroeste de São Paulo. Foi lá que Jean Frantz buscou quebrar a barreira linguística para aprender a língua portuguesa. Contudo, ele conheceu muito mais do que um novo idioma. “No primeiro momento, eles vieram depois do terremoto, mas por que ainda continuaram a vir? Afinal, temos um contexto de crise por aqui. Por que eles procuravam ainda vir para o Brasil?”, questiona a pesquisadora. Utilizando o método de observação participante, Marilia identificou três aspectos que dificultam a educação do imigrante haitiano: o racismo, o mercado de trabalho e a língua.

Etnomatemática

A ideia de Marilia em desenvolver seu projeto de estudo em etnomatemática surgiu após a visita do professor americano Eric Gutstein, na reunião do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática na FE, em 2018. Nesse encontro, ele falou de suas experiências com alunos de outras nacionalidades, como mexicanos e porto-riquenhos. Para ele, é possível que os estudantes observem a realidade em que vivem, façam suas próprias perguntas sobre por que as coisas são como são e respondam usando matemática. Com isso, Marilia buscou aprofundar seu conhecimento acerca da educação em um contexto culturalmente diferenciado. Com sua graduação e mestrado na área da matemática, decidiu desenvolver seu projeto em etnomatemática, que propõe reflexões sobre a natureza do pensamento matemático, do ponto de vista cognitivo, histórico, social e pedagógico; isto é, que cada cultura tem sua forma de lidar com o conhecimento adquirido na realidade em que está inserida.

Para refletir sobre a concepção de uma educação intercultural pautada pela transdisciplinaridade, Marilia traz as ideias do Programa Etnomatemática de Ubiratan D’Ambrosio, matemático brasileiro, em diálogo com a obra do educador Paulo Freire. Ambos acreditam que os processos educacionais precisam de uma reflexão crítica que não seja opressora com a identidade cultural do indivíduo.E para que seu trabalho tivesse um contexto de diferenças culturais bastante visíveis, o Cieja Perus I foi o cenário ideal, já que a escola é reconhecida pela diversidade cultural no grupo de alunos. O trabalho de Marilia teve início em 2018 e foi concluído em 2022, com base em entrevistas a gestores e alunos. 

Barreiras identificadas

A língua é uma barreira e os alunos haitianos recorrem ao Cieja para aprender o português. Mas, como destaca a pesquisadora, muitos deles têm ensino médio completo ou graduação.  Ainda assim, continuam indo para o Cieja para aprender a nossa língua. “E o aprendizado vem junto com outras coisas, com conhecimento da realidade ou entender os códigos da vida. Como ele vai procurar um emprego? Dependendo do lugar que ele vai trabalhar, ele vai precisar falar”, descreve Marilia.

Na fronteira do mercado de trabalho, os imigrantes haitianos encontram resistência pelo receio de que “tirem” os empregos de brasileiros, assim como podem se deparar com contratos de trabalho enganosos e atividades opressoras. “Daí o papel da escola é desconstruir isso também”, diz Marilia, “porque ele vem com essa necessidade, buscando uma vida melhor e precisa trabalhar. A princípio, eles vêm com uma ideia de que no Brasil tem muito emprego”, observa. Mas o fato de serem imigrantes os leva a conseguir empregos precarizados. 

Há ainda, de acordo com a educadora, a questão racial. “São imigrantes negros. Quando um imigrante europeu vem para o Brasil, é mais fácil arrumar um outro emprego, até na própria área em que atuava anteriormente”, conta. “Mas um haitiano que vem para o Brasil com formação em engenheiro civil, por exemplo, certamente não irá exercer sua função e poderá atuar na construção como pedreiro”, acrescenta. Entre as entrevistas de Marilia, há o relato de um aluno que se acidentou em seu trabalho. Ele ficou incapacitado de prosseguir com suas atividades, mas seu contrato de trabalho era falso e o seu patrão o demitiu sem nenhuma assistência. 

O racismo

Nas entrevistas, Marilia pôde observar algumas divergências, quando o tema é racismo no Brasil. As opiniões divergem entre estudantes do Cieja, brasileiros e haitianos. Quando os estudantes Jean Frantz e Eduardo dos Santos, aluno brasileiro de 16 anos, foram indagados pela reportagem com a questão “você se sentiu discriminado no Brasil?”, houve uma oposição entre eles. “Não, ainda não. Cheguei aqui muito feliz”, disse Jean. Já Eduardo informou que sim, por conta de seu cabelo e de outros fatores com os quais julgava não se importar. 

De acordo com Marilia, a resposta de Jean pode estar ligada à facilidade que eles têm para entrar no Brasil. “Eles dizem que não conseguem ir para França ou para os Estados Unidos, porque são países racistas, mas no Brasil não é assim!”, afirma. “A princípio, consideram que não tem racismo no Brasil por causa da facilidade de entrada no país”, conta a pesquisadora.

Escola dos “excluídos”

“Aqui, muitas vezes, é a última chance; é a escola dos excluídos”, afirma o assistente de coordenador-geral do Cieja, Sérgio dos Santos. Cristiane Fialho, professora de Língua Portuguesa da escola, complementa: “Muitas vezes, é a última chance de alunos ‘problema’, que desistiram de outras escolas”. Como o estudante Eduardo dos Santos, que viu nessa escola uma motivação diferente das demais em que já tinha estado e que não conseguiu concluir, saindo após atingir o limite de idade estipulado para a série escolar. “Por conta das crianças, da brincadeira e tal, eu não acabei levando os estudos muito a sério”, afirma. Quando questionado se havia começado a ver os estudos de forma diferente por estar no Cieja, ele respondeu: “Sim, por conta que eu estudo com gente mais velha do que eu. Tem uma seriedade nos estudos. Aqui é bem mais fácil do que em escola com gente da minha idade”.

O Cieja tem como lema “Espaço Firmeza Permanente”, emprestado do território onde estão inseridos. Este foi o mesmo lema que sustentou a greve de sete anos, em plena ditadura militar, na fábrica de cimentos de Perus (oficialmente Companhia de Cimento Portland Perus). “Para instalarmos esta unidade, foi uma luta de quatro anos. E mesmo assim, não havia estrutura. Começamos do zero, entregando folhetos na rua para atrair alunos”, aponta Santos. Adaptando cada espaço à realidade dos estudantes, ele conta que a coordenação queria um modelo circular em todas as salas, mas os alunos resistiram, o que os levou a implementar o uso de mesas duplas. “Aqui se tornou um núcleo de convivência, um ponto de encontro onde podem falar sua língua. Muitos eram moradores de bairros próximos, mas temos alunos de Carapicuíba, outros espalhados por toda São Paulo”, diz.

Desde 2016, a escola atua como um grande centro de inclusão, sendo um em 16 Ciejas na cidade de São Paulo. Ao todo, têm 1.300 alunos, com mais da metade haitianos, dois angolanos e uma aluna da etnia Guarani. É a escola com maior número de migrantes da cidade paulistana, de acordo com a professora Cristiane. Ela também informou que a unidade tem mais de 40 alunos com deficiência física ou motora. Há uma intérprete de Libras e uma merendeira haitiana – como forma de manter a comida mais próxima da terra natal da maioria dos estudantes e para acolher estes imigrantes. Duas mulheres trans já foram alunas, mas acabaram deixando a escola. “O que é uma pena, porque queremos acolher esse público”, diz Cristiane. 

Cristiane fala sobre o exercício de lecionar no local. “Não é difícil porque são imigrantes; é difícil porque é Educação de Jovens e Adultos (EJA). Enquanto instituição, tentamos diminuir as dificuldades. O aluno EJA é muito ligado ao professor, né? Porque ele já vem inseguro para a sala de aula. Nosso maior papel é de grande incentivador”, conta. Segundo ela, o grande sonho dos alunos ainda é o de ingressar em uma universidade pública.   

Com a conclusão de seu trabalho, Marilia pode perceber as fronteiras, citadas como uma “linha invisível de exclusão e violência, manifestada pelo racismo, pela xenofobia, pela falta de oportunidades, pela deslegitimação da cultura e do conhecimento de um grupo”. Assim, os imigrantes haitianos ainda podem permanecer com essas dificuldades, mesmo após atravessarem a barreira política do País. “No Cieja, foi possível ver o esforço da equipe pedagógica em superar essas fronteiras.” 

Marilia pensa em retornar ao Cieja e dar início a projetos que não colocou em prática durante a construção de sua tese, como lecionar matemática para os alunos da escola. “Meu título é ‘deslocamento de fronteiras’ também porque teve um deslocamento no meu pensar na educação”, afirma. A atuação da escola tem atraído pesquisadores e projetos acadêmicos do Brasil e do mundo.

Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Thaís Niero

Bióloga marinha formada pela Unesp e graduanda de gestão ambiental. Tentando consumir menos e melhor e agir para alcançar as mudanças que desejo ver na sociedade.

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