A fórmula da equidade

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Por Christina Queiroz em Revista pesquisa Fapesp – Um um processo iniciado há cerca de duas décadas, a adoção de políticas afirmativas para pessoas pretas, pardas e indígenas resultou na expansão da diversidade em instituições de ensino superior, especialmente nos cursos mais concorridos, como engenharia e medicina, e entre universidades do Sul do país. No entanto, a despeito dos avanços registrados na graduação e pós-graduação, a presença de negros no funcionalismo público e na iniciativa privada segue baixa. Cargos de chefia e com melhores salários continuam sendo ocupados majoritariamente por homens brancos.

Desenvolvido pelas universidades de Cambridge e Manchester entre 2017 e 2018, com financiamento do Economic and Social Research Council (ESRC) do Reino Unido, o projeto “Antirracismo na América Latina numa era pós-racial” identificou que a implementação de ações afirmativas, a elaboração de leis que criminalizam o racismo e a realização de campanhas de conscientização são diretrizes comuns adotadas em países latino-americanos desde meados dos anos 2000. No Brasil, onde pretos e pardos correspondem a 56,2% da população, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uerj), da Bahia (Uneb), do Norte Fluminense (Uenf) e o Centro Universitário Estadual da Zona Oeste (Uezo) foram, no início dos anos 2000, as primeiras instituições públicas a adotar cotas raciais em seus vestibulares. Em 2004, foi a vez das universidades de Brasília (UnB) e Federal da Bahia (UFBA).

Em 2012, a Lei Federal nº 12.711 estabeleceu que 50% das matrículas de institutos e universidades federais devem ser destinadas a estudantes de escolas públicas. Metade dessas vagas é reservada a jovens com renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita. A outra metade destina-se aos demais alunos, com renda familiar superior a esse patamar. Em cada categoria de renda, a instituição deve reservar vagas para pretos, pardos e indígenas de acordo com a proporção desse grupo na população estadual. Isso significa que a soma de pretos, pardos e indígenas na universidade deve ser equivalente à soma total desse grupo na unidade federativa. “Ao considerar tanto questões raciais quanto de renda, essa modalidade de ação afirmativa beneficia toda a sociedade e não somente a população negra, na medida em que também se dirige a estudantes brancos egressos da escola pública, mas não inclui alunos negros provenientes de instituições particulares que, supostamente, tiveram acesso a uma melhor formação, se comparados aos jovens da educação pública”, informa o economista Hélio Santos, presidente da Oxfam Brasil.

Como reflexo da adoção dessas políticas, considerando apenas instituições públicas, em 2018 estudantes pretos e pardos totalizaram 50,3% das matrículas, de acordo com o IBGE. “Com a previsão de ser reformulada em 2022, conforme estabelece seu sétimo artigo, a lei federal deve passar a ter mecanismos que permitam acompanhar a trajetória acadêmica e profissional do aluno, incluindo dados sobre a conclusão ou abandono do curso, entrada no mercado de trabalho e patamar salarial”, observa Santos, que em 1984 fundou e dirigiu o Conselho da Comunidade Negra de São Paulo, um dos primeiros órgãos do país a propor, articular e monitorar políticas para a equidade racial.

Com a proposta de medir o impacto da adoção de cotas nas universidades federais brasileiras, desde 2018 o sociólogo da educação Adriano Souza Senkevics, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), elabora em parceria com a economista Ursula Mattioli Mello, da Barcelona School of Economics, na Espanha, pesquisa para analisar a mudança no perfil dos estudantes de graduação. Cruzando dados do Censo da Educação Superior e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), eles compararam características de quem ingressou entre 2012 e 2016, considerando critérios como procedência escolar, autodeclaração de cor e raça e renda domiciliar per capita. Apesar de reconhecer que a ampliação de vagas nas universidades, ocorrida a partir da década de 1990, o estabelecimento de instituições de ensino superior no interior do país e o aumento da oferta de cursos em período noturno também influenciaram mudanças no perfil do alunato, Senkevics e Mello sustentam que, sozinha, a política de cotas foi responsável por mais de 50% do aumento da presença de negros e indígenas no ensino superior do país.

Artigo publicado em 2019 com resultados parciais da pesquisa mostra que, entre 2012 e 2016, as principais mudanças ocorreram nas universidades federais do Ceará (UFC), Santa Catarina (UFSC), Minas Gerais (UFMG), Rio de Janeiro (UFRJ), Paraná (UFPR) e na UnB, e em cursos cujas vagas são mais disputadas, como medicina, direito e engenharias. “Essas instituições e cursos foram altamente transformados por causa da lei de cotas”, diz Senkevics. Ao destacar que a região Sul do país foi a que identificou o maior aumento relativo da presença de negros, indígenas e alunos provenientes da escola pública no ensino superior, Senkevics cita o exemplo da UFSC que, no período de quatro anos da pesquisa, registrou um avanço de 120% na participação de pretos, pardos e indígenas provenientes de escola pública entre seu corpo discente. “Isso significa que se em 2012 esses alunos respondiam por 6,4% dos ingressantes na instituição, em 2016 passaram a ser 14,2% do total”, compara.

Estudos indicam que a diferença de desempenho acadêmico entre cotistas e alunos que ingressaram em instituições de ensino superior pela ampla concorrência é pequena ou inexistente

Outro exemplo envolve a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde a participação de pretos, pardos e indígenas provenientes da escola pública subiu de 8,7% para 15,6% no mesmo período. Em relação aos cursos mais transformados, Senkevics menciona o de direito na UFC – de 1% dos estudantes o grupo de pretos, pardos, indígenas e alunos de baixa renda oriundos de escola pública chegou a 27% em 2016. Partindo do zero, no curso de engenharia elétrica na UFSC, a variação chegou a 13,7%, enquanto medicina, na Universidade Federal de Rondônia (Unir), registrou um crescimento de 38%.

No estado de São Paulo, Senkevics cita a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a primeira universidade pública a adotar estratégias de ação afirmativa. Na instituição, alunos pretos, pardos e indígenas oriundos do ensino médio público passaram de 16,14% para 24,23%, no mesmo recorte temporal. Na graduação em medicina a presença desse grupo de alunos aumentou de 8,20% em 2012 para 19,35% em 2016. “Por outro lado, em cursos mais populares, a lei de cotas não trouxe mudanças. Há casos, inclusive, que ocasionou a redução na participação desse perfil de estudante”, informa. “Hoje, os alunos parecem estar optando por disputar vagas em cursos mais seletivos.”

A física Sônia Guimarães foi a primeira professora mulher e negra a ingressar no Departamento Fundamental de Física do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em 1993. Durante seus primeiros anos de atuação, as alunas não passavam de quatro em classes com 120 estudantes. Agora, ela observa uma tendência de aumento da diversidade entre o alunato do instituto, que desde 2019 conta com política de cotas. “Em 2021, dos 160 novos alunos que entraram no ITA, há 17 mulheres, sendo que três delas têm o fenótipo de negras. Não sei se elas entraram pela política de cotas, mas é a primeira vez que vejo isso acontecer desde que trabalho na instituição”, assegura Guimarães, que desenvolveu um sensor de radiação infravermelho que acaba de ser patenteado.

Estudos realizados nos últimos anos indicam que a diferença de performance acadêmica entre cotistas e alunos que ingressaram em instituições de ensino superior pela ampla concorrência é pequena ou inexistente. Análise de 2020 de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, coletou dados de 2014 a 2017 de cerca de 30 mil alunos da instituição, incluindo cotistas e não cotistas, constatando que não há divergências significativas entre seus desempenhos acadêmicos.

No mesmo caminho, pesquisa realizada em 2017 pelo engenheiro eletrônico Jacques Wainer, da Unicamp, e pela economista Tatiana Melguizo, da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, comparando a performance de cerca de 1 milhão de alunos no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) entre 2012 e 2014, revelou que o desempenho de formandos que ingressaram no ensino superior por meio de ações afirmativas equivale ou supera o de jovens que entraram em instituições de ensino superior pela ampla concorrência. “Os negros saíram da posição de objeto para se tornarem sujeitos de pesquisas, passando a produzir conhecimento estratégico para o Brasil”, observa Santos, da Oxfam, ao comentar sobre sua própria trajetória. Formado em economia, com mestrado e doutorado em finanças, nos últimos 15 anos ele tem atuado na área de responsabilidade social corporativa, assessorando empresas em assuntos envolvendo diversidade étnica e racial.

Pós-graduação

Em 2017, um ano depois da edição, pelo Ministério da Educação (MEC), de portaria normativa determinando que instituições federais de ensino superior apresentassem propostas de medidas para inclusão de pretos, pardos, indígenas e estudantes com deficiência em programas de pós-graduação, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) começou oficialmente a coletar dados sobre raça e etnia nessa etapa do ensino (ver gráfico). Pesquisas recentes apontam, no entanto, crescimento no número de programas de pós-graduação com tais políticas antes mesmo dessa data.

Em estudo iniciado durante doutorado defendido na Uerj em 2019 e que prossegue em estágio de pós-doutorado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a cientista política Anna Carolina Venturini analisou editais de seleção de 2,7 mil programas acadêmicos de pós-graduação em universidades públicas, divulgados entre 2002 e 2018. “A partir de 2014, houve uma difusão significativa de políticas de cotas. Hoje, 1.090 programas de pós-graduação, ou 39,4% do total, contam com algum tipo de ação afirmativa”, contabiliza, esclarecendo que tais iniciativas podem ser dos próprios programas, criadas por determinação de resolução da universidade ou em decorrência de legislação estadual. De acordo com Venturini, a área de ciências humanas e sociais possui o maior número de programas com ações afirmativas, atualmente. Já em outras áreas, como engenharia, o processo é mais lento. “Até 2018, não identifiquei nenhum curso acadêmico de pós-graduação em engenharia que tenha criado ações afirmativas por iniciativa própria, apenas em decorrência de resoluções ou lei”, assinala.

Ao investigar como tal política foi adotada por programas de pós-graduação, o sociólogo Joaze Bernardino-Costa, da UnB, constatou que 33 das 69 universidades federais do Brasil têm ações afirmativas para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, em cumprimento a resoluções de conselhos superiores. “Isso significa que as políticas valem para todos os cursos de pós-graduação e não são decididas individualmente pelos programas”, esclarece. Para Bernardino-Costa, isso evidencia que as universidades estão investindo em currículos que buscam combater o racismo, tendência observada, especialmente, em cursos de ciências humanas e sociais e que foi abordada no livro Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (Autêntica, 2019). Embora ainda não sejam muitos os projetos e áreas do conhecimento voltados a questões étnicas e raciais, há um movimento ascendente de busca por diversificação no escopo de pesquisa das universidades do país. “Historicamente, a bibliografia das ciências humanas e sociais tem se baseado em autores brancos europeus e norte-americanos. A entrada de alunos com perfil diversificado na pós-graduação mobiliza a incorporação de referenciais teóricos que partem de outras experiências sócio-históricas”, afirma. O sociólogo lembra ainda que nos últimos anos o mercado editorial de autores negros vem se expandindo, com a tradução de obras teóricas feministas como bell hooks e a socióloga Patricia Hill Collins, além da reedição ou relançamento de livros de autores brasileiros como o poeta, escritor e dramaturgo brasileiro Abdias do Nascimento (1914-2011).

Com reflexão similar, o sociólogo Mário Augusto Medeiros da Silva, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), considera a diversidade estratégica para produção do conhecimento científico. Ao participar de todos os processos seletivos para o programa de pós-graduação em que leciona no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp desde 2015, ele observa que pesquisadores de diferentes áreas começaram a propor projetos envolvendo aspectos da experiência negra, incluindo antropologia, ciência política, filosofia, história, demografia e sociologia. “A adoção de ações afirmativas no ambiente acadêmico passou a pautar o debate público de forma ampla, de maneira que hoje até mesmo o setor privado discute a adoção de políticas de cotas”, comenta Silva.

Atuação profissional

A ampliação da diversidade entre estudantes do ensino superior não causou reflexos significativos nas burocracias federal e estaduais, tampouco no mercado de trabalho envolvendo a iniciativa privada. Em 2014 a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos federais para pessoas negras foi estabelecida pela Lei nº 12.990. Desde então, legislação semelhante tem sido adotada em todos os níveis federativos. Ao avaliar aspectos da distribuição racial dos postos de trabalho no serviço público, nota técnica publicada em 2021 por Tatiana Dias Silva, formada em administração e analista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que negros estão proporcionalmente mais presentes em cargos municipais, em que são mais frequentes atividades de implementação de políticas públicas e nos quais os salários são menores. Em relação à docência universitária, de acordo com o Censo da Educação Superior, em 2014 eram 60.194 os professores negros, ou 15,2% do total. Em 2018, 65.249, 16,4% do total.

A desigualdade observada no funcionalismo público encontra paralelo nas vagas ofertadas pela iniciativa privada. Segundo relatório de 2019 do IBGE, com dados referentes a 2016, entre os 10% mais pobres da população brasileira, 78,5% são negros e 20,8%, brancos. A situação se inverte entre os 10% mais ricos: 72,9% são brancos e 24,8%, negros. Segundo o documento, no país, 68,6% dos cargos gerenciais são ocupados por brancos — 29,9% por pretos e pardos. Com resultado similar, pesquisa realizada em 2016 pelo Instituto Ethos, envolvendo as 500 maiores empresas do Brasil, revelou que em cargos executivos de alto escalão 95% dos profissionais eram brancos. Os negros somavam 5% (ver gráfico acima).

A socióloga Bárbara Castro, da Unicamp, elaborou estudo em parceria com a também socióloga Helena Hirata, do Centro de Pesquisas Sociológicas e Políticas de Paris, na França, que mostra que entre 2003 e 2015 as desigualdades de rendimento por sexo, raça e cor foram reduzidas no país. Conforme a pesquisa, concluída em 2019, o rendimento médio da população negra avançou 52,6% no período, em comparação com 25% da população branca. A maior variação foi identificada entre mulheres negras, que registraram rendimentos 58,5% mais altos, no mesmo recorte temporal. “No entanto, essa redução de desigualdades no mercado de trabalho não foi impulsionada pela maior escolarização da população negra, mas principalmente por causa da política de valorização do salário mínimo, nas últimas décadas”, sustenta Castro. De acordo com ela, outro elemento que impactou o nível de renda da população negra foi o processo de formalização da profissão de trabalhadora doméstica e de áreas da construção civil.

Apoiadas nos resultados de estudo publicado em 2019 por economistas das universidades Stanford e de Chicago, nos Estados Unidos, que indicam que a inclusão de negros e mulheres em cargos de alta qualificação respondeu por cerca de 20% a 40% do aumento do Produto Interno Bruto (PIB) norte-americano entre 1960 e 2010, empresas do setor privado lançaram, em julho, o Pacto de Promoção da Equidade Racial. A iniciativa propõe a adoção de um protocolo ESG (sigla em inglês para melhores práticas ambientais, sociais e de governança) racial, ou seja, medidas de governança que permitam ampliar a diversidade racial. Elaborado por economistas como parte da estratégia, o Índice ESG de Equidade Racial (Ieer) mede o desequilíbrio racial das companhias, considerando o quadro de colaboradores por ocupação, os salários médios das funções e a distribuição racial na região em que elas operam. A partir desse diagnóstico, a ideia é incentivar empresas brasileiras a criarem ações afirmativas e realizarem investimentos sociais para ampliar a equidade racial.

Projetos

  1. Dois resultados em Educação – computadores e educação primária e estudos comparativos de ações sociais em universidades brasileiras (nº 15/19288-0); Modalidade Bolsa no Exterior – Pesquisa; Pesquisador responsável Jacques Wainer (Unicamp); Investimento 75.193,23.
  2. As cores da cidadania: os clubes negros do estado de São Paulo (1897-1952). (nº 17/06218-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Mário Augusto Medeiros da Silva (Unicamp); Investimento 82.049,39.

Artigos científicos

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.

Equipe eCycle

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