Por Aldem Bourscheit em Mongabay Brasil | As pressões sobre a espécie na região incluem caçadores, cães e a contaminação da água pelos agrotóxicos usados no arroz.
Sua área de ocorrência na América do Sul foi encolhida a apenas 10% do original, estimam especialistas na conservação da espécie.
A última população conhecida do cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) no Rio Grande do Sul está isolada em reservas ambientais na Região Metropolitana da capital Porto Alegre, onde vivem 4,4 milhões de pessoas. Governo, cientistas e ONGs agem para salvá-la, inclusive recuperando e conectando áreas protegidas pressionadas por caçadores, cachorros e agrotóxicos.
Estendendo-se pelos municípios de Glorinha, Gravataí, Viamão e Santo Antônio da Patrulha, a Área de Proteção Ambiental (APA) do Banhado Grande e o Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos são a tábua de salvação dos últimos 30 cervos pantaneiros no estado mais meridional do país.
A área total protegida tem quase 140 mil hectares, similares à extensão da cidade de São Paulo, mas os animais se concentram nos 2,5 mil hectares do refúgio, onde a presença humana é mais restrita do que na APA. O grupo acabou isolado com a destruição de áreas úmidas pelo agronegócio, urbanização e obras de infraestrutura. Outras pressões assombram seu futuro.
“Cachorros atacam adultos e filhotes de cervos. As reservas sofrem com a caça de capivaras, jacarés e marrecos, drenagem para agricultura e agrotóxicos”, diz Alexandre Krob, coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca. A ONG lidera o Programa de Conservação do cervo-do-pantanal no Rio Grande do Sul (Procervo).
Segundo ele, os cervos tentam driblar as ameaças circulando mais sob as árvores, nos fins de tarde e à noite. Em áreas mais preservadas, como o Pantanal, a espécie é facilmente vista à luz do dia. “Também há uma aparente redução de sua estatura em relação a outras populações, mas isso ainda precisa ser comprovado”, destaca Krob.
O cervo-do-pantanal é o maior cervídeo da América Latina. Os machos da espécie podem alcançar 140 quilos e 1,90 de comprimento; ao contrário das fêmeas, eles têm pescoços mais robustos e chifres.
Diretor de Conservação da Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul (Sema), Diego Pereira conta que mais de 200 cachorros em loteamentos e fazendas ao redor das reservas foram cadastrados e castrados desde 2018. “Sobretudo animais que estejam passando fome invadem as reservas e atacam variadas espécies”, conta.
Assentamentos na região dos banhados têm produção agroecológica, enquanto outros imóveis pulverizam arrozais com agrotóxicos. Segundo Pereira, contudo, a deriva dos venenos não seria uma ameaça maior aos cervos e às áreas protegidas. “Seu uso foi limitado na região e aplicações devem ser informadas previamente às chefias das reservas”, afirma.
“Mas os venenos podem afetar filhotes de cervos e outras espécies mais sensíveis”, lembra Krob, do Curicaca. Os agrotóxicos também dessecam (queimam) a vegetação natural das áreas preservadas e contaminam a água dos banhados e rios que abastece a vida selvagem e populações humanas nas cidades e no campo.
Ao contrário de formações usualmente contínuas como florestas, campos e savanas, as várzeas, pântanos e matas paludosas (encharcadas) preferidas pelos cervos são naturalmente isoladas nos grandes cenários naturais. Assim, perpetuar a espécie depende da recuperação e da conexão dessas áreas úmidas.
Para tanto, entidades públicas, privadas e civis do Procervo desenharam um corredor interligando as áreas mais favoráveis à espécie através das duas reservas ecológicas. A medida é associada à restauração de áreas degradadas no passado pela produção rural.
“O Refúgio de Vida Silvestre não pode ser uma ilha. A implantação do corredor será apoiada por uma portaria. Quando efetivado, ele proporcionará um território mais amplo para a circulação e conservação da espécie”, destaca Pereira, da Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul. “Perder um indivíduo apenas já é um grande prejuízo pelo tamanho e isolamento da população”, completa.
Além de proteger o cervo e espécies como as aves veste-amarela (Xanthopsar flavus) e noivinha-de-rabo-preto (Heteroxolmis dominicanus), a saúde das Unidades de Conservação melhora a água do Rio Gravataí. O manancial é um dos mais poluídos do Brasil conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobretudo pelo despejo de esgotos domésticos em seu trecho final, próximo à capital gaúcha.
Fora de seu grande abrigo sul-americano, o Pantanal, a situação dos cervos é alarmante. Pequenos grupos isolados e fragmentados ainda vivem na borda da Amazônia, no leste dos Andes e em banhados na Argentina, como os Esteros del Iberá. E ainda em áreas de São Paulo, Paraná, Goiás, Minas Gerais e Bahia.
As populações brasileiras podem sumir do mapa “em curto espaço de tempo”, reconhece o Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Cervídeos Ameaçados de Extinção, do ICMBio. A espécie já foi eliminada do Uruguai, Paraguai, Peru, sul dos estados do Piauí e do Maranhão, porções da Caatinga e outras antigas moradas.
“Sua área de ocorrência atual é de apenas 10% da original”, estima Alexandre Krob, do Instituto Curicaca. As populações do cervo na América do Sul estão vulneráveis e em declínio, alerta a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). A espécie é criticamente ameaçada de extinção em alguns estados brasileiros.
Segundo levantamento inédito realizado este ano, no qual pesquisadores mapearam as alterações de habitat de 145 espécies de mamíferos no mundo, o cervo-do-pantanal teria sido o que mais perdeu território na América do Sul – uma redução de 76%.
No continente sul-americano, o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) e a onça-pintada (Panthera onca) estão entre as espécies que mais tiveram sua distribuição reduzida — com 76% e 40% de perda de seu território, respectivamente.
Grupos de cervos também podem sumir junto com as várzeas que restam na Bacia do Rio Paraná, em parte de estados do Sudeste e do Centro-oeste. A Embrapa Pantanal estima que metade deles já foi eliminada do território. Os grandes vilões são o desmatamento e, novamente, a drenagem de várzeas e outras áreas úmidas pelo agronegócio.
No Brasil, a vegetação natural da Bacia do Paraná encolheu de 225 mil km2 para 182 mil km2 desde 1985, estima o projeto MapBiomas. Os 44 mil km2 perdidos equivalem às áreas do estado do Rio de Janeiro ou da Dinamarca. E a devastação avança nos países que dividem a bacia com o Brasil, a Argentina e o Paraguai, somando ao todo 150 mil km2 destruídos, revela uma reportagem do El País.
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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