Por Ricardo Zorzetto em Pesquisa Fapesp | Tem aruanã, bagre, cascudo, candiru e curimba. E ainda dourado, lambari, linguado, matrinxã, peixe-galho, piranha, surubim, tambaqui, tuvira, uaru. Com uma das mais extensas redes hidrográficas do mundo, a América do Sul abriga uma variedade de peixes de água doce tão grande que é possível enumerar vários deles para cada letra do alfabeto. São aproximadamente 5.800 espécies conhecidas (pouco mais de um terço das identificadas no mundo) e, estima-se, quase 3 mil por descobrir. Nos rios, córregos, lagos e lagoas temporárias dessa região do planeta, há peixe com as mais variadas formas, cores e tamanhos. Do minúsculo Priocharax nanus, um peixinho alongado e quase transparente de 1,5 centímetro de comprimento, ao colossal Arapaima gigas, o pirarucu, de até 3 metros e cauda avermelhada, cujas escamas, da dimensão de um polegar, formam uma couraça contra o ataque de predadores. Toda essa diversidade, a maior do mundo, desperta há tempos a questão: por que há tanto peixe por aqui?
Uma explicação abrangente foi apresentada em um artigo publicado em janeiro na revista PNAS. Fenômenos geológicos dos últimos 55 milhões de anos teriam causado ao menos cinco reconfigurações de grande porte nas bacias hidrográficas sul-americanas que promoveriam surtos importantes de formação de novas espécies, com um pequeno nível de extinção. Ocorridas em intervalos de tempo longos, essas transformações na paisagem produziram dois efeitos principais. Em algumas situações, conectaram sistemas de rios e lagos antes separados, provocando em algumas áreas a mistura de espécies distintas, como aconteceu entre 33 milhões e 23 milhões de anos atrás com o surgimento de um vale ligando a bacia do rio da Prata e alguns rios da costa brasileira. Em outras, criaram barreiras que bloquearam a circulação dos peixes, isolando populações que passaram a evoluir separadamente e originaram novas espécies, como se observou na Amazônia com a formação do arco Purus por volta de 20 milhões de anos atrás, que separou as porções leste e oeste dessa bacia hidrográfica.
A ecóloga brasileira Fernanda Cassemiro, da Universidade Federal de Goiás (UFG), e 20 colaboradores de instituições no país e no exterior confirmaram a importância do remodelamento da paisagem para gerar a diversidade atual de peixes da América do Sul, uma hipótese centenária, ao analisar os dados de distribuição e os pulsos de diversificação das espécies atuais e confrontá-los com os principais eventos geológicos do continente nos últimos 100 milhões de anos. “Observamos que os padrões de concentração de espécies e a ocorrência de espécies endêmicas estão fortemente associados ao tempo e ao local de eventos específicos de alteração na paisagem”, conta Cassemiro, autora principal do artigo publicado na PNAS. “Estudos anteriores não apresentaram uma resposta tão abrangente.”
Os pesquisadores, primeiro, compilaram 306 mil registros de ocorrência de 4.967 espécies de peixes de água doce em 490 bacias hidrográficas da América do Sul (ver mapa). Depois, reconstruíram a história evolutiva de 3.169 espécies das quais havia informações no GenBank, o maior banco de dados internacional de sequências de DNA. Essa história evolutiva é representada em um gráfico chamado árvore filogenética, que mostra o grau de parentesco entre as espécies e permite estimar quando umas se separaram das outras. O passo seguinte foi alimentar um modelo matemático com esses dados e verificar se os grandes surtos de formação e desaparecimento de espécies coincidiam no tempo com os fenômenos geológicos que causaram alterações importantes na rede hidrográfica.
“Esse é certamente um dos trabalhos mais amplos sobre a distribuição e a evolução dos peixes neotropicais. A análise de informações de um número tão grande de espécies é inédita”, afirma o ictiólogo Alexandre Cunha Ribeiro, da Universidade Federal de Mato Grosso, que não participou do estudo. “A história das drenagens sul-americanas, no entanto, é complexa e qualquer associação direta entre os eventos de evolução da paisagem e suas consequências para a diversificação da biota deve ser vista como hipótese a ser corroborada ou refutada”, explica.
Para Naercio Menezes, ictiólogo especialista em peixes neotropicais e pesquisador sênior do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), o estudo deve causar impacto por ser pioneiro em reconstruir a distribuição, origem e dispersão de peixes usando dados genéticos disponíveis em um banco internacional. Ele, no entanto, desconfia da qualidade desses dados, depositados por outros pesquisadores. “A análise se tornaria mais robusta se os autores tivessem confirmado, averiguando em coleções de universidades e museus, a identificação correta dos exemplares usados para construir a árvore filogenética”, afirma.
No estudo publicado na PNAS, a hipótese inicial dos pesquisadores era a de que as taxas de formação e de desaparecimento de espécies estariam cronologicamente vinculadas aos principais eventos geológicos. Se estivesse correta, o modelo matemático usado por eles deveria resgatar variações abruptas no ritmo de surgimento e extinção de espécies simultâneas às mudanças na paisagem. “Quando comparamos a figura gerada pelo modelo com as datas e os locais dos eventos geológicos, o encaixe foi perfeito”, relata o ecólogo Thiago Rangel, também da UFG e coautor da pesquisa. “Conseguimos evidências sólidas de que está correta a ideia de que os eventos geológicos influenciariam o surgimento e a extinção de espécies, sugerida por naturalistas como o alemão Alexander von Humboldt [1769-1859] e o britânico Alfred Wallace [1823-1913].”
Concluída a separação da África, há cerca de 100 milhões de anos, as terras do imenso bloco rochoso que forma a América do Sul passaram muito tempo sob influência dos oceanos. Toda vez que o clima se tornava mais quente e o nível do mar subia – em alguns momentos ele esteve 200 metros acima do atual –, suas águas avançavam centenas de quilômetros continente adentro, ocupando as terras baixas e isolando os sistemas preexistentes de rios. Quando o planeta resfriava, a água do mar retrocedia, tornando a planície costeira mais extensa e possibilitando o surgimento de novas conexões entre os cursos d’água nessas áreas. “Os avanços e recuos dos oceanos devem ter sido importantes para o surgimento de novas espécies, em especial na periferia do continente”, explica o ictiólogo Roberto Reis, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), coautor da pesquisa.
Por volta de 55 milhões de anos atrás, a rede hidrográfica de uma vasta área ao norte da América do Sul, hoje correspondente ao oeste da bacia amazônica e à bacia do rio Orinoco, formou um único sistema de rios que permaneceu interconectado até 33 milhões de anos atrás, com ligações também com a bacia do Prata, no centro-sul do continente. Alguns milhões de anos mais tarde, a colisão da placa tectônica sul-americana com a placa de Nazca, no Pacífico, provocou deformações na crosta terrestre que elevaram a porção central da cordilheira dos Andes. O soerguimento dessa região originou o altiplano andino, um planalto que se estende pela Bolívia e partes do Peru, e uma barreira chamada arco Michicola próximo ao norte da Argentina. Essas formações interromperam o fluxo entre os cursos d’água do oeste da Amazônia e os da bacia do Prata, que desde então se comunicam de modo intermitente nos períodos de cheias.
Quase ao mesmo tempo, a distensão da crosta fez surgir um vale indo do sul e ao sudeste do que hoje é o Brasil que conectou os rios da bacia do Prata com os da planície costeira do Atlântico. Essa ligação foi interrompida entre 23 milhões e 16 milhões de anos atrás, com o soerguimento das serras do Mar e da Mantiqueira. Como resultado, surgiu um bolsão de espécies exclusivas (endêmicas) nas bacias dos rios Paraíba do Sul e Ribeira de Iguape, inferior em quantidade apenas ao da Amazônia Ocidental.
Na época em que surgiram essas serras, outra importante transformação aconteceu no norte do continente. Movimentos da crosta e derramamentos de lava ergueram o terreno próximo ao curso do rio Purus, a oeste de Manaus, dividindo ao meio a bacia amazônica. Suas águas, que antes corriam para o Pacífico, passaram a se comportar de duas formas. Os rios da porção leste foram desaguar no Atlântico, enquanto, no lado ocidental, as águas ficaram represadas em um imenso pântano, o chamado lago ou sistema Pebas (ver Pesquisa FAPESP nº 125). Por volta de 16 milhões de anos atrás, a elevação da porção norte dos Andes, entre o Peru e a Venezuela, e o acúmulo de sedimentos nas bacias a leste da cordilheira forçaram os rios a escoar para oriente e, por volta de 10 milhões de anos atrás, a superar o arco Purus, criando o Amazonas.
Esses rearranjos na paisagem proporcionaram uma diversificação de peixes heterogênea no tempo e no espaço. A análise da árvore filogenética permitiu identificar ao menos cinco mudanças abruptas no ritmo de surgimento de novas espécies: duas delas entre 30 milhões e 23 milhões de anos atrás, quando a bacia do rio da Prata se desconectou da Amazônia e se ligou aos rios da costa atlântica; e três entre 20 milhões e 7 milhões de anos atrás, época em que ocorreram as transformações recentes na bacia amazônica. As mudanças na taxa de formação das espécies foram impulsionadas por três linhagens de bagres, peixes de couro com órgãos sensitivos (barbilhões) ao redor da boca, e pelos cascudos, também de couro, com o corpo coberto por placas ósseas. Essas alterações de ritmo ocorreram em especial a partir do momento em que o arco Michicola separou a rede hidrográfica do oeste da Amazônia da bacia do rio da Prata.
Segundo Reis, da PUC-RS, a América do Sul tem hoje uma megadiversidade de peixes porque, além de a dinâmica geológica ter favorecido o surgimento de uma grande variedade de espécies, os fatores climáticos ocasionaram um baixo nível de extinção. “Aqui não houve formação de grandes desertos como aconteceu em regiões tropicais da África e da Austrália. A região também não foi afetada por glaciações tão intensas quanto as que ocorreram na Europa e na América do Norte”, explica.
No trabalho atual, Cassemiro e seus colaboradores identificaram ao menos 3.730 eventos de dispersão de espécies de uma área para outra da América do Sul. Quase metade (45%) deles partiu das porções oriental e ocidental da Amazônia, sobretudo nos últimos 23 milhões de anos. As espécies da Amazônia Ocidental, uma das áreas com maior endemismo, enriqueceram em especial a bacia do rio da Prata, com picos de migração em três períodos entre 30 milhões e 10 milhões de anos atrás. Hoje formada pelos rios Paraguai e Paraná e seus afluentes, a bacia do Prata também recebeu nos últimos 20 milhões de anos uma proporção grande de espécies dos rios da costa do Atlântico, região com a qual continuou parcialmente conectada após a ascensão das serras do Mar e da Mantiqueira. Já a Amazônia Oriental alimentou principalmente a rede hidrográfica da região das Guianas e, mais recentemente, após a formação do Amazonas, a porção oeste da bacia amazônica.
“Os resultados do estudo mostram que as mudanças na taxa de diversificação antecedem a subida do norte dos Andes e não se restringem à bacia amazônica”, afirma Rangel, da UFG. Ribeiro, da UFMT, completa: “Esse trabalho reforça a ideia de que o continente é povoado por uma fauna de água doce antiga, cuja diversidade se acumulou ao longo de milhões de anos”.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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