A restauração florestal precisa ir além das boas intenções

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Por Clóvis Borges em Página 22 É bastante óbvio que, no campo da medicina, ocorrências de emergência, em casos de atendimento de pacientes em estado crítico, demandam um atendimento imediato no sentido de estabilizar sua condição de sobrevivência, com intervenções precisas para atender o que está colocando a vida do paciente em risco.  Na engenharia, a construção de uma ponte, mesmo que acompanhada da melhor tecnologia, necessariamente deve considerar a existência de uma ligação entre dois pontos. Caso contrário, a obra simplesmente não se justifica. Seria desperdício sem qualquer sentido, independente da qualidade da obra. 

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Esses exemplos evidentes representam uma coerência que se aplica em todos os ramos do conhecimento humano. Se há uma demanda clara a ser atendida e uma visão coerente e tecnicamente qualificada de como resolvê-la, há sucesso no resultado pretendido. Apesar disso, não raro, temos demonstrações que não perseguem esta lógica de intervenção. Quando isso acontece, há desperdício, prejuízos de várias naturezas e, em última instância, um problema não resolvido.

Assim como as demais, a ciência da conservação do patrimônio natural é bastante complexa e envolve um amplo conjunto de conhecimentos técnico-científicos e metodologias bastante variadas. Obviamente, para que resultados pretendidos sejam alcançados, devem ser seguidos parâmetros baseados no conhecimento, dependendo de um entendimento consistente de qual é o problema a ser enfrentado e quais as intervenções que devem ser estabelecidas.

Embora as demandas que envolvem a conservação de nosso patrimônio natural venham ganhando relevância de parte crescente da sociedade, uma vez que está em jogo a garantia de nosso bem-estar e a perenidade de nossas atividades econômicas, muitas das práticas de intervenção indicadas para reverter a degradação ambiental simplesmente ainda não são eleitas a partir de critérios adequados. 

Ações de restauração de áreas degradadas, orientadas com boa técnica, são parte relevante de um conjunto possível de intervenções no território visando incrementar processo de conservação da biodiversidade. Representam, sem dúvida, uma das estratégias a serem consideradas. Mas não é razoável estabelecer essas ações como uma solução única, sem que exista uma avaliação mais criteriosa, caso a caso, que estabeleça quais são as intervenções recomendadas para o propósito de restaurar ambientes naturais.

Além dessa condição prévia de diagnóstico prévio para que sejam estabelecidas ações voltadas à conservação, as diferentes iniciativas de restauração que são realizadas em nosso país têm características distintas e nem sempre representam ganhos mais significativos para a conservação da biodiversidade. Até porque, em parte, não se destinam prioritariamente a gerar esse objetivo, embora muitas vezes sejam assim anunciadas.

Cabe aqui citar os sistemas agroflorestais, dentro de diferentes modalidades, que buscam gerar resultados econômicos a partir da produção originada de um consórcio de espécies nativas (e também exóticas). Essas práticas estão bastante distantes de processos padrão de restauração, pois não permitem uma aproximação possível do ambiente original. São ações de grande interesse para substituir práticas convencionais e que causam maior impacto ambiental, mas não podem ser reconhecidas como estratégias de restauração voltadas à conservação da biodiversidade de forma completa.

O manejo de nativas como o açaí na Amazônia e a erva-mate na Mata Atlântica do Sul do País, considerado, via de regra, como uma ação efetiva de conservação, é também um exemplo que gera uma grande seletividade nas áreas exploradas, com uma diversidade biológica drasticamente diminuída para privilegiar a quantidade de indivíduos e o crescimento das espécies que são exploradas.

Iniciativas, em geral cobertas de boas intenções e que demandam um grande esforço, muitas vezes voluntário, mas que guardam um menor grau de qualidade técnica, quando colocadas em prática, vendem a perspectiva de restauração simplesmente a partir da prática de plantar árvores, independentemente de sua procedência, qualidade, diversidade para processos efetivos de conservação.

Para exemplificar esse tipo de procedimento, recentemente, o governo do Paraná anunciou amplamente na mídia o plantio de 40 mil mudas da espécie araucária. Mesmo que esse esforço tenha sido realizado com mudas de boa qualidade, em áreas de ocorrência da espécie, e que a araucária seja considerada pioneira (portanto adequada para ações de restauração nesse ecossistema, a Floresta com Araucária), não há justificativa técnica que justifique o uso unilateral de uma espécie, em ações de restauração.

Dessa forma, além do investimento realizado não representar um resultado consistente para a conservação, sua visibilidade colabora com um processo continuado de desinformação à sociedade em geral, distanciando ainda mais a percepção adequada sobre as práticas de conservação da biodiversidade efetivamente requeridas.

A falta de parâmetros técnicos que qualifiquem muitas das intervenções hoje sustentadas como práticas recomendadas, além de gerar desperdício de recursos e de energia, com os ainda parcos recursos destinados a esta finalidade, também pereniza esses equívocos junto à sociedade, a partir da divulgação ao público, identificando-as como solução, enquanto não são. 

As razões para justificar tais desvios primários, que seriam imediatamente contestados no caso de outras áreas de conhecimento, sustentam-se principalmente numa ausência de consistência junto aos tomadores de decisão nos organismos responsáveis pela conservação do patrimônio natural. E já não é mais possível alegar falta de conhecimento técnico nesse campo de atuação, uma vez que a academia e um conjunto de instituições públicas e privadas abrigam amplo conjunto de técnicas que estão à disposição para serem implementadas com grande precisão.

Esse cenário pode ser explicado, em boa parte, pelo fato de não haver um entendimento mais apurado da sociedade em geral, das consequências da falta de ações efetivas que garantam a conservação e a restauração de áreas naturais e seus elementos, geradoras de serviços que nos provêm todos os insumos dos quais necessitamos para manter nossa qualidade de vida. A inexistência de uma visão mais crítica abre espaços para intervenções insuficientes e desconectadas das prioridades que deveriam estar sendo atendidas. 

A carência de cobranças mais contundentes para a busca de soluções concretas também está vinculada a um comportamento que ainda relaciona a conservação como um tema contrário ao desenvolvimento socioeconômico. Um jogo de dissimulações e de políticas equivocadas segue como prática corrente, julgando-se vantajoso manter aparências com iniciativas placebo e de pouca significância, com vistas apenas a manter uma imagem, mas sem qualquer compromisso de resultado. 

Como consequência, estamos enfrentando situações cada vez mais sérias no que se refere aos impactos causados pela degradação ambiental. Enquanto não houver um respeito aos preceitos técnicos básicos para garantir a proteção de nosso patrimônio natural, não existirão perspectivas para reverter o quadro de perdas econômicas e sociais decorrentes da destruição da natureza em curso. 

Ao receber notícias sobre ações que se proponham a “salvar a natureza” devemos ser mais críticos e questionar quais as razões que as  justificam. O exemplo talvez mais notório, largamente aceito por grande parte da sociedade como fórmula mágica para proteger a natureza, é representado pelo plantio de árvores. Mas isto nem sempre representa algo recomendável.

Ao plantar mudas, de forma aleatória e sem uma orientação melhor definida sobre qual intervenção deve ser eleita como a recomendação adequada, dependendo do caso em questão, muitas vezes, estamos realizando uma ação que pode ser comparada com a aplicação de sutura no supercílio de um paciente que está morrendo, decorrente de uma artéria femoral rompida. Na medicina, uma conduta dessa natureza seria reconhecida imediatamente como prática inaceitável.

Em um generalismo crônico que se perpetua, aceitamos práticas sem fundamento como meio de reverter o quadro de degradação ambiental vigente, praticamente sem qualquer contestação. Nem cobramos investimentos aplicados corretamente e que estejam a altura da crise de enorme gravidade que está sendo dia a dia incrementada.

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Seguindo nesta condição de inconsciência coletiva, não há como se esperar que um dia tenhamos políticas públicas ambientais sérias e realmente comprometidas com o bem comum. Continuar a colecionar prejuízos econômicos e sociais coletivizados parece representar a tendência de futuro, salvo mudanças de rumo emergenciais.

*Clóvis Borges é diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS).

Equipe eCycle

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