A tecnologia anda solta: a era da perplexidade | por Ladislaw Dowbor

Compartilhar

Confira os comentários do professor de economia sobre os filmes e documentários da 7ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental

Filme Bebês do Futuro. Imagem: divulgação

A tecnologia está mudando o mundo. O ritmo das transformações ultrapassa radicalmente a nossa capacidade de organizar a transição para essa sociedade do conhecimento em construção. A mudança tecnológica é muito mais rápida do que a mudança cultural, que dirá das instituições e das leis. O avanço tecnológico está na era do faroeste, só que com armas muito mais poderosas do que o cavalo e a pistola. Hoje é em ritmo avassalador que enchemos os rios e os oceanos de plástico, os aquíferos de contaminantes químicos, o ar que respiramos de partículas nocivas, a atmosfera de gases de efeito de estufa. As nossas ferramentas são muito mais poderosas do que as nossas precárias capacidades de organização política e social. O potencial vira ameaça.

É muito interessante, e os documentários investigativos têm caminhado com sucesso nesta linha, tomar um produto na forma como nos aparece na loja, em ambiente suave e limpinho, com iluminação agradável, vendedores sorridentes, um notebook lindo – e retraçar a sua história. Porque o que nos aparece na loja ou na publicidade é apenas uma realidade enfeitada. A produção efetiva envolve hoje centenas de produtos químicos diferentes, cujo descarte leva, por exemplo, a que 60% da água dos aquíferos na China estejam contaminados, realidade pouco diferente no Silicon Valley na Califórnia. Arsênico, chumbo, mercúrio e solventes são apenas os mais conhecidos. Na análise do O Custo do Vício Digital, os impactos indiretos – externalidades, como as chamamos em economia – aparecem em todos os grandes: Apple, IBM, Google, Intel, Dell etc. O rendimento financeiro domina.

No ciclo completo do produto, que envolve desde a matéria prima, até condições de trabalho, logística, comercialização, marketing e descarte, descortina-se o mundo econômico realmente existente, e que não aparece, evidentemente, nem na loja nem na publicidade. E nem na mídia, pois são as corporações que pagam a publicidade, que aliás sai do nosso bolso, incorporada ao preço do produto. O tipo de jornalismo investigativo desses documentários nos coloca frente a frente com a realidade: imagens de imensas linhas de montagem em Shenzen, na empresa subcontratada da Apple, com ritmos infernais e suicídios frequentes, nos trazem para o chão. Entre corporações e população, quem está a serviço de quem?

Uma dinâmica que se torna clara aqui é a do alongamento da cadeia produtiva da eletrônica, que faz com que uma empresa que distribui o produto final possa tranquilamente fingir que ignora que barbaridades em termos sociais, ambientais e econômicas são praticadas em diversas etapas do ciclo e em diversos países. Vamos fazer de conta que ignoramos o fato de que 90% do que descartamos não é reciclado? Deslocar as etapas mais perniciosas para países menos regulados sem dúvida ajuda países mais prósperos a parecerem limpos. Hoje, como o filme mostra, as partículas que permeiam o ar que respiramos navegam com os ventos que cobrem o planeta, gerando câncer, doenças respiratórias e outros males em qualquer parte do mundo. Não se trata aqui de ser contra as tecnologias, e sim de assegurar uma contabilidade completa dos impactos, muito além do ar condicionado da loja que expõe o produto final, ou da caixinha despachada pela Amazon.

Essa lógica da cadeia produtiva aparece com força no Uma História de Desperdício. A alimentação está no centro das nossas vidas, e as novas tecnologias permitem produzir muito alimento. Só em grãos, produzimos mais de um quilo por dia por pessoa, isso sem falar de frutas, legumes, peixe etc. E a grande imagem que emerge é que temos quase um bilhão de pessoas que passam fome no mundo, enquanto jogamos fora 40% do alimento que produzimos, cerca de 1,3 bilhão de toneladas desperdiçadas. O custo ultrapassa o trilhão de dólares. O que impressiona é que sabemos o que fazer, temos as tecnologias disponíveis, mas seguimos desperdiçando em volumes escandalosos. Quem disse que realmente temos de consumir a carne em três dias, o peixe em dois, e as verduras entre quatro e cinco? Jogamos montanhas fora, com os supermercados com medo que alguém os processe por ficar doente com um alimento que passou da validade.

Na realidade, o que produzimos pode sim alimentar as pessoas, e precisamos alimentá-las todas, é um escândalo termos gente que passa fome. Mas podemos também recolher sobras e alimentar animais, e usar os restos ou subprodutos para produzir bioenergia, e obviamente realimentar o solo através de compostagem. A Coréia do Sul já não aceita restos orgânicos no destino final do lixo. Muitas regiões passam a consumir alimento produzido localmente, reduzindo o desperdício. Em muitos países é ilegal o supermercado jogar os restos no lixo, ele precisa assegurar um destino inteligente. Na realidade, se a lógica empresarial é centrar-se apenas no que dá mais lucro – como a indústria da pesca de camarão, que descarta cinco quilos de peixes não lucrativos a cada quilo de camarão pescado, o chamado by-catch – temos de resgatar cadeias produtivas que façam sentido para a lógica humana e do planeta. Temos o conhecimento, as tecnologias, os recursos. Falta usá-los de maneira inteligente.


Filme Imigrantes Digitais. Imagem: divulgação

O chocolate, retratado em O Caso do Chocolate, que tanto associamos com um momento agradável, com um recreio na nossa vida sofrida, é igualmente instrutivo. O mundo da comunicação está claramente organizado de maneira que tenhamos, como os burros comportados que puxam a carroça, pouca capacidade de olhar para os lados. O que temos de ver é a linda embalagem de um chocolate que adivinhamos ser delicioso. Seguir as etapas de uma cadeia produtiva, tal como em outros documentários desta Mostra Ecofalante, é prodigiosamente instrutivo. Por desgraça, para chegar à loja e ao consumidor final, alguém teve de produzir o cacau, transformá-lo, transportá-lo, assegurar a composição final, bolar a embalagem mais atraente possível, acrescentar cheiros, corantes e conservantes. Enfim, se queremos ver o mundo como realmente existe, temos de ir além da embalagem e da publicidade.

A regra geral que aparece é que quanto mais distante do consumidor final, mais o processo produtivo se torna selvagem, como no caso da produção do cacau na Costa do Marfim ou no Ghana. Os autores do documentário pegam o rico veio da desresponsabilização. Ninguém sabe da etapa anterior, e todos conseguem razoavelmente ignorar o uso crescente do trabalho escravo na base da cadeia produtiva. Isso é muito interessante, porque nos leva de novo aos ‘biombos’ mentais que nos permitem fazer de conta que desconhecemos o que é desagradável. Não que a culpa seja rigorosamente nossa: os departamentos de marketing, e os sistemas de ‘compliance’ nas empresas, além evidentemente da mídia financiada pela publicidade, asseguram o conforto da nossa ignorância. Mas esse faz de conta generalizado permite não apenas que o sistema funcione, mas que não se corrija.

A simpática conclusão dos pesquisadores dessa cadeia produtiva do chocolate é que os grandes executivos que tanta segurança e compromisso social e ambiental apresentam são pouco mais confiáveis do que qualquer vendedor de carro usado. Estão todos nessa, e gigantes como Nestlé ou ADM não estão entre os últimos. Aliás, gastam rios de dinheiro na associação da marca com sentimentos de bem-estar e de confiabilidade. Nas entrevistas, como sempre, aparecem profissionais de relações públicas que, por fim, confessam que houve deslizes, mas que a empresa já tomou providências, e tudo continua como dantes, depois de uma campanha de fortalecimento da marca (brand). A governança corporativa, essencial para que as tecnologias nos sirvam, está voltada para a rentabilidade e para o curto prazo. Greed is good, proclama Wall Street.

Frente à dificuldade de adaptarmos as novas tecnologias, produtos, procedimentos, rotinas – enfim, o mundo em acelerada transformação – ao cotidiano e à utilidade das nossas modestas vidas, gerou-se uma imensa indústria de mudança dos nossos comportamentos. Tornamo-nos, de certa forma, obedientes servidores das tecnologias que criamos. Até o Pescoço. Escravos voluntários, naturalmente, e isso é conseguido por um martelar incessante da propaganda, em casa, no computador, no celular, na tela do consultório médico, na parede do bar, no ônibus: um imenso aparelho de invasão do nosso limitado tempo de atenção consciente, gerando o que já se chamou de ‘sobrecarga sensorial’, que nos cansa e esgota. São mais de 600 bilhões de dólares que nos custa a indústria da persuasão, que lê por meio da invasão das nossas mensagens e comportamentos as nossas fragilidades e interesses, e sugere respostas comerciais a tudo. A leitura das emoções que transparecem nos nossos rostos ao vermos diferentes mensagens nos aparelhos online permite que os algoritmos adaptem a invasão de qualquer intimidade, com mensagens devidamente customizadas. É Big Brother is Guiding You, muito além do watching. Imensa invasão, zero privacidade, zero regulação.

Podemos chamar de marketing, parece inocente e destinado a nos servir melhor, mas se trata de uma invasão generalizada que permite um nível de controle de comportamentos com os quais nenhum dos históricos marqueteiros teria ousado sonhar. Um dos grandes já dizia: “Não se persuade as pessoas pelo intelecto”. A captura é pelas emoções. As grandes corporações mundiais já não dependem de fábricas, máquinas e outras formas físicas de capital do século passado: os seus ativos são a conexão on-line que lhes permite a leitura da nossa vida. Toxic assets, ativos tóxicos para a sociedade. You’re mine, baby. O filme faz uma pergunta direta: é esse o mundo que queremos?


Filme O Custo do Vício Digital. Imagem: divulgação

Poucos casos deixam mais clara a ambiguidade das nossas opções do que a transformação das tecnologias biológicas aplicadas à procriação, que vemos em Bebês do Futuro. Ter filhos é, sem dúvida, uma das atividades mais profundamente enraizadas na natureza, nos nossos instintos, nos sentimentos de amor e pertencimento. Hoje, evidentemente, enfrentamos de maneira cada vez mais generalizada a poderosa indústria do bebê. A tecnologia está mais uma vez no centro das mudanças. A gente fazia amor e rezava. Hoje a gente escolhe no menu quando e o que queremos. Se tivermos os recursos, obviamente. Mas o problema é que a tecnologia está cada vez mais disponível, e, adotada pelos mais ricos, torna-se um desejo irreprimível das eternamente aspirantes e insatisfeitas classes médias, para em seguida se generalizar. Ter um filho ou uma filha está sendo cada vez mais diferente. Há limites? A ciência permite, e o desejo das pessoas de explorarem novos territórios é muito forte, comentam os autores do filme.

Tudo isso é muito recente, data de décadas o sequenciamento do DNA, e de poucos anos o início da compreensão da epigenética, sendo ainda mais recente a abertura do imenso potencial do CRISPR, que permite pela primeira vez, e de maneira rápida e barata, modificar o nosso programa genético. Estamos entrando na escura, escorregadia e preocupante era da programação genética estendida ao ser humano. Como em tantos avanços tecnológicos, a riqueza do potencial e o lado sombrio estão misturados. Poder interferir no embrião para reduzir a propensão a determinada doença ou deformação é um avanço indiscutível, e muitos pais que apresentam uma hereditariedade pesada recorrem a esses serviços. Mas quando mais de um terço dos clientes pedem alterações no embrião porque desejam um filho mais alto, ou de olhos diferentes, na linha da embriologia cosmética, o bom senso do médico fica em alerta. Onde estão os limites? Uma filha monoparental pergunta para a mãe como seria ela saber alguma coisa do anônimo doador de esperma que representa uma boa metade do que ela é. Estamos indo para um universo desconhecido, muito além da barriga de aluguel e do bebê de proveta.

Uma das facetas mais interessantes e atraentes da série de documentários é a preocupação não só em descrever as inovações tecnológicas e a combinação de oportunidades e ameaças que representam, mas também as diversas formas como as pessoas reagem ou tentam se situar frente aos desafios. Particularmente emocionante é o documentário sobre os Imigrantes Digitais. A minha cultura digital (já estou naquela idade em que da idade não se fala) consistiu em juntar papéis com clipes, e organizá-los em pastas. Pastas de verdade, de papel. Entre a lentidão da mudança cultural e as transformações dramaticamente aceleradas da era digital, como funciona a cabeça? Os imigrantes digitais são os que não nasceram neste país de sinais magnéticos, e que tentam desesperadamente aprender a nova linguagem. O ar de perplexidade dos velhinhos frente à mensagem de “erro” na tela é encantador e angustiante. Juntam-se várias pessoas tentando ajudar. Mas a lógica não é a delas, é a da máquina. O meu filho, há alguns anos atrás, programou o computador da mãe, a Fátima, para que aparecesse, na hora de ligar, a mensagem “Esse computador está programado para explodir em 30 segundos”. Brincava com a insegurança da senhora novata. Vivemos a era da disritmia, em que as tecnologias avançam muito mais rapidamente do que a nossa capacidade de mudança interna. É a era da angústia tecnológica.

Outras tecnologias podem até reduzir as angústias. Imagine-se pedalando numa bicicleta ergométrica, mas em vez de ter uma parede pela frente, ou de ‘se ver na Globo’ na telinha incorporada, você esteja imerso numa imagem de bosque, e tenha a impressão visual de estar efetivamente andando de bicicleta em charmosas e verdejantes veredas. É a era da natureza virtual do Natureza: Todos os Direitos Reservados. Na cadeira do meu dentista, eu costumo passar o tempo, que não passa, contando quantos buraquinhos têm nas telas da iluminação do teto. Na natureza virtual, o teto do dentista apresenta o céu, com nuvens que se deslocam, muito charmoso. E, obviamente, irreal. Para que ter um aquário que é preciso limpar de vez em quando, e que tem peixes que ainda por cima exigem alimento, se você pode ter um aquário virtual, com os peixes que quiser programar, nadando mais ou menos rapidamente? Como no caso de tantas tecnologias, ficamos na insegurança de achar absurdo ou de achar ótimo. Afinal, porque não? E se ainda por cima permite que não tranquemos os pobres peixinhos entre quatro paredes de vidro? E também, porque não, se pode nos tornar indiferentes à destruição da natureza realmente existente? Vou reclamar com o meu dentista. Não uso bicicleta ergométrica, caminho no parque Villa Lobos.

Mas fugir da realidade não é para todos. O Coração de Açougueiro apresenta um pequeno matadouro e açougue familiar, gerido de pai para filho. O menino ajuda o pai, e se vê defrontado diretamente com o seu amor natural pela vida, pelo cabritinho, pelos coelhos peludinhos, pela vaca amiga. Agora tem de matar, serrar os ossos, exercer toda a violência. Normalmente, somos protegidos de tudo isso, apenas vemos a carne no saquinho plástico, na geladeira. Entre nós e a realidade da violência exercida contra outros seres vivos, colocou-se o mágico biombo, ou nós mesmos o criamos, para poder viver em paz. O pai comenta com o filho, enquanto corta um músculo: é assim mesmo, meu filho, hoje as pessoas estão na cidade, não têm ideia de como são as coisas. Na escola, os meninos ostracizam o filho do açougueiro, mas comem a carne com gosto. Volta aqui o tema que encontramos nos vários documentários: em algum momento, teremos de ver a realidade como é, passar a pensar a sustentabilidade das nossas vidas, o faz de conta das corporações e a mentira global que constroem a publicidade e os meios de comunicação. A grande mídia não usa fake news, constrói um fake world.

Não se trata simplesmente de ser contra as tecnologias. Para já, ninguém pergunta se as queremos ou não. Trata-se, sim, de enquadrá-las, de gerar o ambiente regulatório que permita que aflore o positivo sem que se escondam os desastres. Inclusive, podemos sim batalhar por tecnologias que são inibidas pelas corporações. Inhibitum: Boicotados nos mostra tecnologias que poderiam ter progredido, com exemplos que, aliás, na minha opinião, não são sempre adequados. Mas o conceito é correto. Em 1992, no quadro da cúpula mundial sobre o meio ambiente, organizei o evento paralelo sobre tecnologias sustentáveis, no Parque Anhembi. Tínhamos já naquela época dezenas de modelos de carros elétricos. Mais de um quarto de século passou para que começássemos a colocá-los no comércio. Entre o avanço científico e tecnológico e os interesses das montadoras, das corporações do petróleo e de outros grupos, a briga é desigual. Desenvolvemos as tecnologias que rendem para os produtores, não necessariamente para o meio ambiente e para esse ser humano tão inventivo e tão pouco sapiens.

Ladislau Dowbor é professor titular de economia da PUC-SP e consultor de várias agências das Nações Unidas. É autor de numerosos livros e estudos, entre eles A Era do Capital Improdutivo e O que é poder local?, todos de livre acesso on-line em http://dowbor.org.

Serviço


Fonte: Ecofalante

Veja também:

eCycle

Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.

Saiba mais