Corantes naturais podem não ser inofensivos, apesar de naturais. Estas substâncias são foco de uma nova linha de pesquisa da professora Gisela de Aragão Umbuzeiro, que tem destacada atuação na área de toxicologia ambiental, com análises de corantes e agrotóxicos nas águas. “Você vai me perguntar por que corantes, essa coisa antiga, se agora só se fala em microplásticos e hormônios na água. Trabalhei na Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] e fomos pioneiros em encontrar corantes responsáveis pela mutagenicidade de um rio”, afirma a docente, que coordena o Laboratório de Ecotoxicologia e Genotoxicidade (Laeg) da Faculdade de Tecnologia (FT) da Unicamp, em Limeira.
Substâncias mutagênicas são assim denominadas devido ao seu potencial para induzir mutações. Se a molécula de corante for capaz de penetrar nas células dos organismos e causar lesões no DNA, isso pode levar ao câncer e, se atingir espermatozóide ou óvulo, transmitir problemas genéticos aos descendentes. Os corantes podem também ser tóxicos aos organismos aquáticos, levando à redução das populações. “No Laeg estudamos a mutagenicidade e toxicidade aquática de corantes tanto com organismos de água doce como de água salgada. Participo de um projeto muito interessante liderado pela pesquisadora finlandesa Riikka Raisanen, chamado Biocolour, financiado pela Academia de Ciências da Finlândia. Uma parte deste projeto está sendo também financiado pela Fapesp. Dentre outros objetivos, nosso grupo irá fazer a avaliação da mutagenicidade e toxicidade para organismos aquáticos de corantes oriundos de plantas e de fungos produzidos em biorreatores com microrganismos manipulados por técnicas de biologia molecular.”
Segundo Gisela Umbuzeiro, o projeto Biocolour visa explorar o uso de corantes naturais para desenvolver produtos mais sustentáveis e seguros para a saúde humana e ambiental. “As pessoas, geralmente, acham que produtos naturais não causam nenhum efeito adverso, o que não é verdade. Haja visto a toxina botulínica, que é natural, mas é uma das substâncias mais tóxicas do mundo, produzida por uma bactéria. Outro exemplo é a aflatoxina, produzida por um fungo geralmente presente no amendoim, que nos preocupa tanto.”
A toxicologista explica que os corantes em geral são comercializados como misturas e muitos deles foram avaliados no passado com amostras de baixa pureza, fazendo com que os dados existentes sobre a sua mutagenicidade não apresentem boa qualidade. Uma biblioteca na Carolina do Norte mantém em gavetas 98 mil amostras de corantes, muitas delas supernovas e que muita gente quer utilizar em baterias solares, medicamentos, corantes de tecidos, no que for possível imaginar.”
Mas, como analisar 98 mil substâncias quanto a sua mutagenicidade, para evitar problemas no futuro, quando da sua utilização comercial? Uma ideia foi utilizar ferramentas in silico de predição da sua mutagenicidade (programa de computador) que se baseiam em dados já existentes na literatura, mas Gisela Umbuzeiro constatou que os programas atuais, embora funcionem para medicamentos e outras classes de compostos, não são bons para prever a mutagenicidade dos corantes. “Foi daí que fiz um pós-doutorado (na verdade, um ano sabático) pela Fapesp, com a proposta de desenvolver um método in silico aplicado para corantes, mas percebi que é preciso mais dados. Dei um passo atrás, fui para desenvolver um programa, e me deparei com um problema.”
A pesquisadora da Unicamp então recorreu a um teste de mutagenicidade miniaturizado que foi desenvolvido pelo seu grupo de pesquisa e publicou recentemente na Environmental and Molecular Mutagenesis, revista clássica da área de mutagênese ambiental. O artigo que apresenta uma forma otimizada para gerar mais dados de qualidade para corantes, visando chegar, mais à frente, a uma ferramenta in silico adequada, mereceu a capa da revista em janeiro. “Estamos propondo essa nova abordagem, que com poucas miligramas de amostra é possível gerar dados de qualidade e com rapidez até que cheguemos a uma programa de computador capaz de prever a mutagenicidade dos corantes sintéticos ou naturais com confiança.”
Modelos in silico e testes in vitro, acrescenta Gisela Umbuzeiro, vêm sendo ferramentas poderosas para avaliar a mutagenicidade de compostos químicos em todo o mundo, levando à redução de testes de laboratório. Esta questão de testes laboratoriais para avaliação da segurança química não é nada trivial. “Historicamente os testes confirmatórios utilizam cobaias (mamíferos), mas as orientações mundiais restringem cada vez mais esse uso. O Brasil também adota essa estratégia. A tendência é que programas de predição (in silico) sejam desenvolvidos com dados já gerados anteriormente utilizando milhares de animais que já morreram em laboratório – camundongos, macacos, cachorros. Isso é inaceitável no mundo de hoje. Então começa a surgir necessidade da supressão destes testes especialmente com mamíferos, por pressão da sociedade. Isso já é uma evolução bastante grande mas requer inovação na área de predição de toxicidade tanto por métodos in silico como por testes in vitro.”
A professora da Unicamp destaca que seu grupo de pesquisa utiliza para avaliação da mutagenicidade uma bactéria, o que já representa grande avanço em comparação a camundongos ou células. “A bactéria é um ser muito mais simples e que cresce facilmente em laboratório. Acontece que mesmo um teste com bactéria requer gramas de substância química, o que em alguns casos é muito. O que fizemos foi desenvolver um método miniaturizado usando miligramas ao invés de gramas e também gerando menos resíduo. Enfim, um teste mais sustentável.”
Gisela Umbuzeiro atenta que a contaminação das águas, ar e solo por substâncias químicas é uma grande preocupação mundial, já que tudo que utilizamos no nosso dia a dia acaba atingindo de alguma forma o meio ambiente. “Os compostos químicos são inventados e produzidos mais rapidamente do que testados quanto à sua toxicidade. Desta forma, acabamos tendo uma panaceia de substâncias químicas, dificultando saber se aquela água é adequada para diferentes usos, como para beber, para consumo animal, irrigação ou recreação. São tantas substâncias químicas e seus respectivos produtos de transformação presentes no ambiente que a toxicologia não dá conta de fazer esta avaliação e, obviamente, uma regulamentação. É como se a química inventasse muito mais do que a toxicologia pode avaliar.”
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