Por Sérgio Adeodato em Página 22 | A restauração de ecossistemas representa um momento especial na história do planeta. O mundo olha para as Soluções baseadas na Natureza (SbN) como eixo de sobrevivência, inclusive dos negócios e economias globais, em risco devido à degradação das terras, perda de biodiversidade e mudança climática, junto à problemática da desigualdade social. Em paralelo, no compasso do aumento populacional e do consumo planetário, é crescente a demanda por florestas – naturais, plantadas ou ecologicamente reconstruídas com novas árvores e serviços vitais, como água e provisão de alimentos, além de produtos e matérias-primas de fonte limpa e renovável.
De acordo com as Nações Unidas, metade do PIB mundial – cerca de US$ 84,4 trilhões –depende alta ou moderadamente de água, solos e demais recursos ofertados pela natureza, com destaque para os florestais. Plantas e solos armazenam mais de 2,1 mil gigatoneladas métricas de carbono, o dobro da quantidade contida em todas as reservas conhecidas de petróleo, gás e carvão. Ao revolver esses estoques, as atividades terrestres são responsáveis por um quarto das emissões globais de gases-estufa. E o freio e reversão dessa tendência exigem não apenas proteger a natureza, mas restaurá-la.
Na Década da Restauração de Ecossistemas, lançada pelas Nações Unidas para mobilizar ações em várias frentes no planeta, o Brasil está no centro das atenções. O País que carrega árvore no nome, mas patina no modo de mantê-la em pé, tem uma dupla urgência: o combate ao desmatamento e a efetiva busca de oportunidades para a recuperação do que foi destruído. A atividade de repor árvores está em expansão, mas a mudança de patamar precisa de um conjunto de leis e estratégias capazes mobilizar a sociedade, os negócios, os agentes públicos e a geração de conhecimento.
O desafio movimentou o debate no webinário “Como Dar Escala à Restauração de Ecossistemas – o papel das políticas públicas”, o primeiro de uma série de três encontros virtuais realizados pela The Nature Conservancy (TNC), Programa da Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (Sobre), em parceria com a Página22. O próximo evento, previsto para 18 de outubro, terá ênfase na participação social, enquanto o terceiro, em 8 de novembro, abordará o tema da capacitação técnica.
O objetivo dos encontros é promover o diálogo e contribuir para a construção de processos unindo governos, sociedade civil e iniciativa privada para o aumento das ações na agenda. “Precisamos agir agora, porque vivemos globalmente as crises ambientais do clima, da biodiversidade e da poluição e, na inércia, os impactos serão ainda maiores”, adverte Danielle Celentano, consultora do Pnuma no apoio às ações da Década da Restauração no Brasil.
A estratégia prevê um plano com pilares no envolvimento social, compromissos de governos e capacidade técnica para implementar os projetos. Após o primeiro ano de engajamento, com o lançamento de guias práticos para a restauração de ecossistemas e referências sobre as maiores iniciativas globais em curso, o momento atual é de alavancar recursos financeiros e criar os incentivos e condições estruturais para a restauração acontecer nos vários territórios.
Prevenir, deter e reverter a degradação – seja das florestas ou ambientes marinhos – está em linha com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Da economia ao desenvolvimento humano e segurança alimentar, a restauração de ecossistemas integra diversos fatores como uma grande solução planetária, diz Celentano, propondo imediata mudança de rota. Além de planos nacionais e estruturas legais, uma demanda básica é a reversão de subsídios financeiros direcionados atualmente à degradação.
Segundo Celentano, a expectativa é de progressos significativos na formulação de políticas e planos para implementação da agenda na América Latina até 2030, com destaque para o cenário brasileiro. “No Brasil, a conservação e a restauração de ecossistemas estão nos marcos normativos desde 1934, na primeira versão do Código Florestal, bem como na Constituição Federal de 1988 e, mais recentemente, na nova lei de vegetação nativa que prevê a solução dos passivos ambientais das propriedades rurais”, explica a engenheira florestal.
Em 2017, como instrumento para a política ser aplicada, foi instituído o Plano Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg). “Estamos muito avançados em comparação aos demais países da América Latina no campo normativo, mas falta cumprir as políticas e planos na prática”, avalia Celentano. “São assuntos de interesse público que geram benefícios para toda a sociedade e por isso os eleitores precisam estar atentos nas suas escolhas”, completa a consultora, ao lembrar que a agenda requer amplo apoio da sociedade e compromissos firmes do setor privado.
Na análise de Celentano, são necessários instrumentos financeiros diferenciados para viabilizar uma maior escala no desafio da recuperação de ecossistemas. “Os próximos quatro anos serão fundamentais para o sucesso ou fracasso da Década da Restauração e o Brasil tem grande potencial de contribuição, como nenhum outro país”, afirma.
Junto à expressiva demanda das propriedades rurais por florestas como Reserva Legal e Área de Preservação Permanente em adequação ao Código Florestal, há 80 milhões hectares de áreas degradadas que poderiam ser restauradas para nutrir uma economia verde e inclusiva, com geração de renda e empregos.
Além do Planaveg, marco nacional que precisa ser retomado e implementado, há iniciativas de políticas públicas regionais e locais de referência, em pleno funcionamento. No Espírito Santo, o Programa Reflorestar investe na restauração e adequação legal das propriedades rurais com recursos dos royalties do petróleo, enquanto em São Paulo há novo movimento para fazer o tema avançar.
“A aplicação das leis requer mobilização social e qualificação técnica”, diz Rubens Benini, líder da estratégia de restauração florestal na TNC para a América Latina. Na campanha Restaura Brasil, a ONG mobiliza doações para restaurar áreas com 1 bilhão de novas árvores até 2030.
“Para aumentar a escala, precisamos de todos os setores trabalhando conjuntamente e sem a participação da sociedade civil não avançaremos nas políticas públicas”, analisa o engenheiro florestal, ao lembrar sobre a necessidade de engajar produtores rurais, para além das árvores no chão. O programa Conservador da Mantiqueira, liderado pela TNC, abrange 425 municípios e tem meta de engajar 2,7 mil produtores rurais na restauração de áreas até 2023, com benefícios de créditos de carbono e Pagamento por Serviços Ambientais em microbacias hidrográficas importantes ao abastecimento público.
Na porção mais rica e populosa do País, o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica tem objetivo de recompor 15 milhões de hectares até 2050, com ganhos econômicos e sociais, para além dos ecológicos. Ao integrar diferentes setores ao desafio, o modelo inspira iniciativas de norte a sul sob a liderança de coletivos locais da sociedade civil, como na região impactada pelo agronegócio onde há 15 anos atua a Rede Sementes do Xingu, demonstrando o potencial de beneficiar populações vulneráveis.
Segundo estudo inédito que reuniu diversas organizações ligadas à agenda, se o País cumprir a meta climática de restaurar 12 milhões de hectares até 2030, poderia gerar entre 1 milhão e 2,5 milhões de postos de trabalho diretos nos elos da cadeia, desde a coleta de sementes aos plantios e monitoramento, entre as diversas atividades. O potencial representa cerca de 20% da atual taxa de desemprego no País.
“Isso significa 1 emprego a cada 2 hectares restaurados, número bastante significativo como insumo a políticas públicas”, destaca Maria Otávia Crepaldi, presidente da Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (Sobre). De acordo com a bióloga, o levantamento – liderado por Pedro Brancalion, pesquisador da Universidade de São Paulo – tem o diferencial de identificar oportunidades para incentivo da restauração com atividade econômica de larga escala.
Do total, 60% da atividade se concentra no Sudeste, principalmente na Mata Atlântica, o que indica a necessidade de políticas e planos para avanços nos demais biomas, mobilizando a sinergia de atores nos vários territórios por meio de instrumentos como a Vitrine da Restauração, mantida pela Sobre. A ideia é funcionar como ponto de encontro dos movimentos regionais de articulação, a exemplo da Aliança pela Restauração da Amazônia e a Rede Sul de Restauração Ecológica.
“Ao juntar esforços em rede, conseguiremos tornar a atividade mais ampla e participativa, influenciando decisões de governo, com benefícios econômicos repartidos entre as populações envolvidas”, ressalta Crepaldi, no webinar. Ela reforça: “Além de gerar emprego e renda, a restauração traz a biodiversidade e combate a mudança climática no nível global”.
Na análise da bióloga, apesar de crescente, a demanda por novas árvores não tem sido regular e contínua, o que dificulta uma maior consolidação da cadeia da restauração e o planejamento na produção de mudas e sementes para suprir os futuros projetos, por exemplo. Entre as vertentes da atividade, diz Crepaldi, a lógica econômica ganha espaço cada vez maior – o que inclui a produção em agroflorestas e soluções que unem ganhos ambientais à redução de custos na garantia do abastecimento de água às cidades.
Em São Paulo, no Sistema Cantareira, a restauração de 4 mil hectares de mata nativa exigiria investimentos de R$ 119 milhões, capazes de proporcionar uma economia de R$ 338 milhões no uso de energia e de produtos químicos no tratamento de água, conforme estudo do World Resources Institute (WRI).
Os avanços dependem do engajamento de tomadores de decisão e políticas públicas eficientes: “Precisamos organizar e sistematizar um sistema de estímulo econômico para motivar e reforçar esse cenário, movimento hoje presente no debate para regulamentação da nova lei sobre Pagamento por Serviços Ambientais”, destaca José Carlos Fonseca, cofacilitador que representa a iniciativa privada na Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura – organismo multissetorial criada há sete anos, hoje com mais de 300 membros. “O esforço da restauração precisa fazer parte da equação econômica”, observa.
Segundo Fonseca, a estratégia é a mais adequada para promover a sinergia entre as agendas de proteção, conservação, uso sustentável de florestas naturais e plantadas e adaptação à mudança climática. No cenário, o mundo dos negócios busca oportunidades.
“Há uma corrida do ouro travada por empresas que nascem para viabilizar projetos que ‘cultivam’ créditos de carbono”, conta o executivo. Ele cita os exemplos da Symbiosis, no Sul da Bahia, voltada à exploração madeireira com plantio de espécies nativas; e da Re.Green, com alto investimento na aquisição de terras degradadas para manejo florestal e ganhos no mercado climático.
No Observatório da Restauração e Reflorestamento, plataforma criada pela Coalizão com dados de satélite sobre a cobertura vegetal em todos os biomas, estão mapeados 80 mil hectares de áreas em restauração e 9,5 milhões de hectares de reflorestamento, no Brasil. Na visão de Fonseca, parcerias são fundamentais porque o atual patamar está muito distante do compromisso climático brasileiro de restaurar 12 milhões de hectares, assumido no Acordo de Paris.
Há a expectativa de impulso após novas ambições de governos e empresas em decorrência das conferências do clima (COP 27, no Egito, em novembro) e biodiversidade (COP 15, no Canadá, em dezembro), com possíveis regulações e políticas de financiamento. Na análise do executivo, o País reúne políticas e casos bem-sucedidos, mas também incapacidade para dar continuidade, devido à deficiência das instituições.
“Quem vai ajudar somos nós: sociedade, empresas e investidores, porque o mundo está observando o que acontece na área socioambiental no Brasil”, ressalta Fonseca, também diretor executivo da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), organização que representa o setor empresarial de florestas plantadas, responsável por 12 bilhões em exportações. No total, as empresas plantam 1,5 milhão de árvores por dia no País, com 9,5 milhões de hectares de plantios comerciais – principalmente pinus e eucalipto para celulose e papel – e 6 milhões de hectares em áreas nativas conservadas.
Assista ao evento na íntegra aqui.
Este texto foi originalmente publicado por Página 22 de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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