Por Elizabeth Oliveira, do Mongabay.
Após perder o irmão, José Claudio Ribeiro da Silva, e a cunhada, Maria do Espírito Santo, em 24 de maio de 2011, Claudelice dos Santos jurou lutar por justiça. Dez anos depois, já bacharel em Direito e reconhecida como ativista ambiental na Amazônia, ela formalizou a criação do Instituto Zé Claudio e Maria (IZM). Hoje, mesmo ainda vivendo sob ameaça com a família, ela tem conseguido dar continuidade ao legado do casal de líderes comunitários assassinado a tiros em uma emboscada no Projeto Agro-Extrativista (PAE) Praia Alta-Piranheira, em Nova Ipixuna, sudeste do Pará, região conhecida como Polígono dos Castanhais que se tornou alvo da pecuária insustentável.
O assassinato, que teve repercussão nacional e internacional, foi motivado pelas denúncias do casal a órgãos públicos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sobre as ilegalidades cometidas por fazendeiros, madeireiros e carvoeiros, envolvidos com desmatamento e grilagem de terras no assentamento.
Na falta de ações de fiscalização efetivas e de combate aos crimes ambientais por parte dos órgãos públicos, e inspirados pela luta do líder seringueiro Chico Mendes no Acre, Zé Claudio e Maria promoviam bloqueios de estradas para impedir o trânsito de caminhões carregados de madeira extraída ilegalmente da reserva florestal do assentamento, entre outras estratégias de enfrentamento que lhes custaram a vida.
Líder histórico em desmatamento, segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), em 2021, “o Pará manteve a primeira colocação no ranking dos que mais desmatam, com 4.037 km² devastados, 39% do registrado em toda a Amazônia”. A organização de referência em pesquisa na região informou que no estado “houve aumento da derrubada da floresta tanto em áreas [protegidas] federais quanto estaduais”. Para que se tenha uma ideia da gravidade do problema, “mais da metade das dez Terras Indígenas e das dez Unidades de Conservação que mais desmataram em 2021 ficam em solo paraense”.
Claudelice estudou em uma Escola Agrícola em Marabá, também no Pará, sendo inspirada pelas orientações pedagógicas de Paulo Freire, referência mundial em Educação que discutia criticamente o lugar dos povos oprimidos na sociedade e a capacidade de transformação da realidade em que vivem a partir não somente do conhecimento que recebem, mas também dos saberes que possuem e compartilham.
O vínculo com a terra sempre foi forte e o desejo de Claudelice era de desenvolver projetos de agricultura sustentável, tanto que o curso escolhido tinha ênfase em agroecologia. “Na minha cabeça, existia aquele ideal de terminar os estudos e voltar para a minha comunidade. Nós já tínhamos plano de manejo florestal comunitário, incentivado pelo Zé e pela Maria”, ressalta. Essas ações eram apoiadas por instituições como a Universidade Federal do Pará (UFPA).
Por causa de todo esse envolvimento com os estudos e os planos para o futuro, ela conta que acompanhava as lutas do casal, embora não tivesse a real dimensão dos riscos que Zé Claudio e Maria já estavam correndo. “Eles tinham essa visão, mas faziam esse enfrentamento buscando proteger a família”, observa.
Com o passar do tempo, as ameaças pelo ativismo socioambiental começaram a ficar mais fortes, com tentativas de emboscadas no pomar e no entorno da casa onde o casal morava, deixando toda a família apreensiva. “Um dia antes de serem assassinados, nós tínhamos nos reunido e decidido falar para eles passarem um tempo fora, para ver se aliviava a tensão”, conta Claudelice.
Mas ela relembra emocionada que a família não conseguiu evitar a tragédia várias vezes anunciada. “No dia seguinte [à reunião familiar], a gente recebeu a notícia de que eles tinham sido assassinados. Para nós, aquele foi o dia em que mudou tudo nas nossas vidas. A primeira coisa que tivemos que fazer foi sair de lá, porque nós também passamos a receber ameaças.”
A advogada e ativista relata que os pistoleiros que mataram o casal também tentaram matar outros agricultores do assentamento para forçar a expulsão de famílias da terra que alguns grupos pretendiam ocupar. “Também tentaram me intimidar, porque eu estava acompanhando as investigações e buscando saber o que estava acontecendo no processo criminal”, afirma Claudelice. Sua mãe chegou a receber bilhete e telefonema com ameaças de execução de toda a família, alerta que exigiu novas estratégias de segurança, sem perder de vista a luta por justiça pelo assassinato.
Claudelice afirma que a família tinha dois caminhos a seguir a partir desse trauma: fugir ou reagir, mesmo sentindo medo. “Decidimos lutar”, escolha que, segundo argumenta, teve e tem tido muitas consequências. Como a sensação de insegurança era extrema e a maioria dos familiares era formada por mulheres, crianças e idosos, a recomendação foi sair do PAE após o assassinato. “Mas, um ano depois, começamos a voltar para o assentamento, porque avaliamos que, se nós não retomássemos aquele território e mantivéssemos a nossa presença lá, aí sim, eles teriam conseguido o objetivo deles, que era matar o Zé Claudio e a Maria, enterrando junto essa história que também é nossa”, reitera.
Foi assim que o lote do casal assassinado deu lugar aos trabalhos comunitários desenvolvidos com mulheres, integrantes do Grupo de Trabalhadoras Artesanais e Extrativistas (GTAE). “Fomos lá, na resistência, ocupar o lote deles [com mais de 90% de floresta conservada], onde nós desenvolvemos diversos trabalhos, principalmente com o coletivo de mulheres que eles ajudaram a criar, em 2006. Até hoje o grupo existe. Nós produzimos óleo de andiroba e subprodutos como sabonetes vegetais. Isso é fruto da luta que começou lá atrás e é por isso que a gente permanece num grupo que sofre ataques também”, relata.
Ela conta que mesmo ouvindo opiniões do tipo “isso não vale nada, é só coisa da cabeça de ambientalistas” e ainda se sentindo sob pressão permanente, Claudelice decidiu insistir na missão, embora tenha que redobrar as estratégias de segurança quando visita tanto o projeto comunitário quanto a casa de familiares no assentamento, onde não pode mais morar. “Eu ainda vou lá, mas com muito receio. Não posso passar mais de dois ou três dias. Fico triste porque onze anos depois, a gente ainda tem que ficar com esse tipo de cuidado, mas me lembro de um professor que tive que dizia que ameaça de morte não tem prazo de validade”, lamenta.
Sua análise faz ainda mais sentido ao recordar o susto que sofreu, em 2020, quando a filha mais velha e uma sobrinha foram perseguidas por uma caminhonete no trajeto do PAE e quase capotaram, tentando escapar. Em uma Amazônia cada vez mais pressionada pelos crimes ambientais, e com mulheres defensoras dos direitos humanos e da natureza sendo os principais alvos dos criminosos, como indica pesquisa do Instituto Igarapé, a advogada explica que essas situações têm se tornado corriqueiras, com ataques encomendados disfarçados de acidentes. Depois desse episódio, a jovem redobrou os cuidados com a segurança pessoal e decidiu também ingressar no curso de Direito para se somar à luta da família em defesa dos direitos humanos e da natureza na região. A formação na área começou este ano.
E mesmo na cidade onde mora com duas filhas jovens, a ativista que se autodenomina mãe solo conta que também não se sente tranquila. “A minha casa tem câmeras, portão reforçado e cerca elétrica. Mas quem já foi ameaçado uma vez, nunca relaxa. Nós não temos o direito de liberdade total. Eu considero que eu sou mais presa do que o mandante do crime que segue foragido. Eu estou atrás das grades da minha casa e dos esquemas de segurança quando preciso sair. Eu me sinto prisioneira e isso é muito duro”, denuncia.
Em um segundo julgamento à revelia, ocorrido em 2016, o pecuarista José Rodrigues Moreira, acusado de ser o mandante do crime, foi condenado a 60 anos de prisão. Ele tinha sido absolvido no primeiro julgamento, em 2013, provocando revolta e ações de mobilização social para reverter a decisão — vitória alcançada em 2014, com apoio da família e da Comissão Pastoral da Terra, que anualmente tem documentado aumento da violência no campo no Brasil.
“Para se ter uma ideia de quanto é absurda a impunidade no nosso país, principalmente no nosso estado do Pará, o juiz mencionou na sentença [no primeiro julgamento] que o Zé e a Maria contribuíram, de certa maneira, para os seus próprios assassinatos. Com essa conclusão, é como se eles tivessem morrido porque mereceram”, critica a ativista.
Apontados como os autores materiais do crime, Lindonjonson Silva Rocha (irmão do acusado de ser o mandante) e Alberto Lopes do Nascimento foram condenados em 2013 a 42 anos e a 45 anos de prisão, respectivamente. Rocha chegou a fugir da Penitenciária Mariano Antunes, em Marabá, em 2015, sendo recapturado somente em 2020. Foi ao saber desse episódio que Claudelice decidiu cursar o Bacharelado em Direito, formação que concluiu entre 2016 e 2021.
Apesar de inconformada com o desfecho do caso, ela reconhece que a família conseguiu muitas vitórias, sendo a primeira delas a revogação do primeiro julgamento, além da manutenção da condenação dos dois pistoleiros e o desmembramento do processo para que houvesse um novo julgamento apenas do mandante. “Nós ainda falamos sobre isso porque queremos que todo mundo saiba que ainda não houve justiça, já que o mandante está solto até hoje. Por causa da absolvição do primeiro julgamento, ele saiu pela porta da frente do fórum e segue foragido”.
Ela conta, ainda, sobre o que considera “um detalhe sórdido” que marcaria os familiares do casal para sempre. “Durante a leitura da absolvição do José Rodrigues, a irmã da Maria [Laísa Santos Sampaio], minha companheira de luta, que andava comigo denunciando o que aconteceu, sofreu um AVC [Acidente Vascular Cerebral]”. Posteriormente, a amiga teve outras sequelas de saúde que interromperam a sua participação ativa na busca por justiça.
Sobre a proteção do poder público para si e familiares ameaçados, Claudelice informa que eles não a têm e que preferem buscar outras alternativas junto às redes e coletivos que se apoiam mutuamente. “Hoje nós temos um instituto [com a chamada Casa de Respiro, no IZM] que faz o acolhimento de defensores ameaçados e que procura evoluir muito no debate em torno de proteção e autocuidado. Nós devemos cobrar do Estado brasileiro a proteção para os defensores que sofrem ameaça de morte. Mas também temos que nos proteger e criarmos nossos próprios mecanismos de defesa individual e coletiva”, conclui.
O Brasil lidera as estatísticas de assassinatos de defensores ambientais no mundo, segundo o recente relatório que apresenta resultados de uma década de monitoramento da ONG britânica Global Witness sobre o tema. Do total de 1.733 casos registrados entre 2012 e 2021, o Brasil respondeu por 342 (seguido pela Colômbia, 322 e pelas Filipinas, 270). Nesse contexto de violência, mais de 85% das mortes ocorreram na Amazônia e aproximadamente um terço das pessoas que perderam a vida em defesa de seus territórios e da natureza era formado por indígenas ou afrodescendentes.a
A mesma fonte informa que, em 2021, ocorreram 200 assassinatos de defensores ambientais no mundo, com o Brasil em terceiro lugar com 26, atrás do México (54) e da Colômbia (33). Do total de mortes, mais de três quartos foram registradas na América Latina.
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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