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Segundo os autores, situação se deve à alta heterogeneidade genética dos negros e a sua baixa representatividade no registro brasileiro de doadores de medula

Uma equipe multidisciplinar de cientistas ligados a diversas instituições, entre elas a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Nacional do Câncer, publicouum artigo na revista Frontiers in Immunology comprovando que os afrodescendentes têm menos chances de encontrar um doador no Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME) do que as pessoas com ascendência europeia. Segundo o estudo, possuir uma ancestralidade genética majoritariamente africana pode reduzir em até 60% as chances de uma pessoa encontrar um doador. E possuir cópias africanas dos genes HLA, que precisam ser compatíveis com os do doador para viabilizar o transplante, causa uma redução de 75%.

Assim, conforme a ancestralidade africana aumenta, diminuem as chances de uma pessoa encontrar um match no REDOME – terceiro maior banco de medula óssea do mundo, com mais de 5 milhões de doadores voluntários cadastrados. O trabalho aborda também a questão da baixa correlação entre a autoidentificação (de acordo com as categorias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e a precisão da ancestralidade genética que ela preconiza, já que a classificação do IBGE explica apenas uma pequena parte da ancestralidade genética das pessoas.

“A classificação é grosseira no sentido da previsão dos genes importantes para o transplante, que são os genes de função imunológica – e é por meio dela que as pessoas são caracterizadas no REDOME, pois preenchem um questionário para cadastro de doadores. Uma pessoa pode ser africana ou europeia nos genes de função imunológica, mas a capacidade de previsão disso é muito baixa com os identificadores ‘preto’ ou ‘branco’ ou ‘pardo’”, resume Diogo Meyer, evolucionista que trabalha com genética de populações e coordenador do estudo. O trabalho concluiu que os autoidentificados como “pretos” e “pardos” têm até 57% menos chances de encontrar doadores do que aqueles que se identificam como “brancos”.

Os genes de função imunológica chamados de HLA (Human Leucocyte Antigen) se ligam aos antígenos, que são pequenos fragmentos de resíduos do próprio metabolismo celular ou fragmentos de um patógeno que invadiu o organismo. Os receptores de célula T (célula com funções imunológicas) têm a capacidade de distinguir antígenos que são produtos do próprio organismo daqueles que não são. Quando moléculas de HLA se ligam a um antígeno não reconhecido, são acionadas respostas imunes. Assim, uma combinação perfeita de HLA entre receptores e doadores é crítica para o sucesso de um transplante de células-tronco, sob pena de haver rejeição.

No caso dos afrodescendentes, a dificuldade de encontrar matches não tem a ver somente com sua baixa representatividade no REDOME, que é uma realidade, nem com as imprecisões das categorias étnicas em que as pessoas são divididas pelo IBGE (e recrutadas pelo REDOME), o que também é verdade. As pessoas com ascendência africana são mais diversas e heterogêneas geneticamente do que as não africanas, o que dificulta, já de saída, o encontro de um doador, pois reduz as chances de que dois africanos sem parentesco próximo tenham HLA idênticos. Isso acontece por conta das migrações humanas, que ocorreram a partir da África. Nessa jornada, explica Meyer, as pessoas que migravam carregavam só parte da variabilidade preexistente.

No artigo, que tem como primeira autora a bióloga Kelly Nunes, afirma-se que a redução mais intensa nas chances de encontrar um doador (75%) está associada a ter a região do MHC (complexo principal de histocompatibilidade) de ascendência exclusivamente africana. O MHC é uma região densa de genes e contém os genes HLA, que precisam ser idênticos entre doador e paciente para o transplante ter chances de sucesso.

“Ser autoidentificado como ‘preto’ é um preditor de a pessoa ter ancestralidade genética africana no seu genoma, inclusive nos genes de função imunológica, que são os relevantes para o transplante. Mas isso não é uma regra rígida, sobretudo num país como o Brasil, de intensa miscigenação, onde não é raro uma pessoa que se autoidentifica como ‘preta’ ter ancestralidade europeia em genes HLA, e vice-versa. Tanto que, comumente, no REDOME, os doadores para os pacientes africanos podem ser autoidentificados como ‘brancos’. “Entretanto, à medida que examinamos os pacientes geneticamente mais africanos, aumenta a proporção de doadores que são negros.”

Meyer insiste em que os resultados não significam que uma pessoa negra não tem chances de encontrar doadores no REDOME. “Nosso intuito foi comparar as chances de match para pessoas com diferentes ancestralidades. No caso real de um transplante, é preciso uma tipagem de HLA mais precisa, sem contar que o doador tem de estar em boa saúde e tem de ter o genótipo analisado com mais precisão para garantir compatibilidade perfeita. Cada etapa diminui as chances de o transplante ocorrer.”

O trabalho foi apoiado pela FAPESP por meio de Auxílio à Pesquisa Regulare de bolsa de pós-doutorado no Brasil.

Combinações de cromossomos

Segundo o cientista, há questões ainda em aberto. “Algo que não endereçamos ainda é se o que dificulta a tarefa de afrodescendentes encontrarem doadores é o fato de a pessoa carregar cromossomos africanos, ou o fato de ela ter uma mistura de um africano com um europeu. Porque é possível supor que, talvez, a parte europeia e a parte africana estejam ali representadas, talvez não sejam tão ‘inéditas’ no REDOME. Mas as duas juntas, em combinação, podem ser mais raras. E essas combinações possíveis podem chegar à casa dos milhares.”

De acordo com o pesquisador, a equipe ainda não consegue responder exatamente o quanto a mistura e o grau de ancestralidade africana dificultam a busca por um doador. “Essas duas coisas são um pouco distintas. O que sabemos é que, em média, as pessoas que têm genes HLA africanos tendem a ter mais dificuldade do que as de origem europeia. Mas resta esclarecer se há combinações de cromossomos europeus e africanos que também podem dificultar o processo de encontrar um doador.”

No Brasil, além do mais, o termo “africanos” se refere a uma mescla de pessoas de regiões muito distintas na África. “É possível que estejamos lidando com genótipos que só existem no Brasil, uma mistura de ancestralidades oriundas de diferentes locais do continente africano. Mas isso tudo vai depender do que está representado no REDOME, pois nós não caracterizamos o repositório do ponto de vista genético. Temos somente as etiquetas ‘preto’, ‘branco’ ou ‘pardo’.”

Metodologia e amostragem

Composto por cientistas das áreas de saúde humana, biologia, estatística e computação, o grupo usou como amostragem duas coortes brasileiras. Da primeira (Recipient Epidemiology and Donor Evaluation – Brazil Sickle Cell Disease, ou REDS-III Brazil SCD), selecionou 2.703 indivíduos portadores de anemia falciforme recrutados em quatro centros de referência: Fundação Hemominas (Belo Horizonte, Juiz de Fora e Montes Claros), Fundação Hemope (Recife), Fundação Hemorio (Rio de Janeiro) e o Instituto da Criança do Hospital das Clínicas (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Da segunda, oriunda do EPIGEN-Brasil, grande iniciativa latino-americana em genômica populacional e epidemiologia genética, incluiu 5.334 indivíduos de Salvador (BA), Bambuí (MG) e Pelotas (RS).

“A amostra não era composta de pessoas na fila de um transplante de medula óssea. Foi uma amostra de conveniência a respeito da qual sabíamos a ancestralidade.” Porém, no caso da porção da amostragem portadora de anemia falciforme, é possível que os resultados antecipem situações futuras. “A doença ocorre majoritariamente entre afrodescendentes e existe a perspectiva de que seja tratada por transplante de medula óssea. Portanto, são pessoas que, no futuro, talvez se beneficiem desse tipo de intervenção.”

Para saber o HLA de uma amostragem de mais de 8 mil pessoas sem fazer a análise laboratorial do genótipo de cada uma (um processo caro), a equipe lançou mão da predição, ou seja, usar uma variável para prever outra. “A estrutura de nosso genoma permite fazer predições; a mutação que está numa posição do genoma pode prever outra, pois passamos adiante nosso material genético em forma de pedaços de cromossomos. Esses pedaços são recombinados, mas isso não acontece como num liquidificador, há ali certa lógica, que permitiu a estatísticos e geneticistas desenvolverem um algoritmo para prever o HLA da pessoa a partir de mutações que estão nos arredores físicos do HLA.”

Já para inferir a ancestralidade genética dos brasileiros, a equipe se valeu de softwares que usam informações sobre a frequência com que as variantes genéticas ocorrem nas populações que originaram a população brasileira.

Próximos passos

Os resultados, de acordo com a equipe, sustentam a ideia de que, se o REDOME quiser ser representativo e garantir aos afrodescendentes o mesmo acesso que aos brancos, é preciso que tenha mais doadores de origem africana. “Mas, muito provavelmente, para que afrodescendentes encontrem tantos matches quanto não afrodescendentes será necessário ter uma proporção maior de africanos no REDOME do que aquela observada na população brasileira, já que eles são mais ‘exigentes’ no sentido de amostragem.”

Agora, a equipe quer saber se a dificuldade de afrodescendentes encontrarem doadores é explicada pelo fato de cromossomos africanos serem mais raros no REDOME, ou porque a mistura com os brancos cria combinações difíceis de serem localizadas. “Também queremos fazer um estudo evolutivo e quantitativo para ver como é o parentesco em termos de MHC em diferentes regiões do mundo: ou seja, saber o quão mais aparentados dois europeus são, em média, um com o outro, do que dois africanos”, adianta.


Karina Ninni, Agência FAPESP. Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original

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