Avaliação por meio de sistema computadorizado poderá ser feita de forma ininterrupta, fornecendo alertas imediatos caso os cavalos apresentem sinais de dor
Por Júlio Bernardes em Jornal da USP – Em uma inédita colaboração multidisciplinar, pesquisadores do campus da USP em Pirassununga criaram um algoritmo de computador capaz de detectar diferentes níveis de dor em cavalos por meio de imagens das expressões faciais dos animais, captadas por câmeras de vídeo. Os testes com o algoritmo mostraram uma precisão de 75,8% quando foram avaliados três níveis de dor (ausente, moderada e presente) e de 88,3% na avaliação de dois níveis de dor (ausente ou presente) nos cavalos. A ideia dos pesquisadores é que a avaliação dos animais, hoje realizada presencialmente por observadores treinados, algumas vezes por dia, possa ser feita pelo sistema de forma ininterrupta, fornecendo alertas imediatos a proprietários e médicos veterinários caso os cavalos apresentem sinais de dor. O funcionamento do algoritmo é descrito no artigo Pain assessment in horses using automatic facial expression recognition through deep learning-based modeling, publicado na revista cientifica Plos One.
“Atualmente existem escalas de dor que permitem que a avaliação seja feita a partir da observação das expressões faciais, como a posição das orelhas, olhos, músculos faciais, boca, narinas, etc., além de outras alterações comportamentais”, afirma ao Jornal da USP o professor e coordenador da pesquisa, Adroaldo José Zanella, do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, em Pirassununga. “Porém, a identificação destes sinais requer que o avaliador seja treinado minuciosamente, possibilitando uma análise de dor assertiva e, mesmo após o treinamento, este observador será capaz de avaliar um número limitado de animais e somente em alguns momentos do dia, uma vez que a rotina dos hospitais veterinários, haras e centros hípicos requer uma demanda elevada de tempo dos profissionais envolvidos.”
Segundo o professor, outro desafio para detecção de dor em equinos ocorre devido ao fato de os animais “esconderem” as manifestações de dor diante de um observador, pois são, do ponto de vista evolutivo, presas, e demonstrar dor os deixa mais sujeitos a predação. “A coleta automática e inteligente de indicadores de dor, com o auxílio do computador, oferecerá enormes oportunidades para detecção precoce de dor”, aponta. “Esta tecnologia poderá ajudar na determinação de ações terapêuticas que melhorem a resposta dos animais às intervenções veterinárias. É possível associar esse sistema a alertas enviados de diversas maneiras ao médico veterinário perante situações que demandem atenção.”
Para desenvolver o algoritmo que faz a identificação da dor, foram usadas câmeras que capturaram continuamente imagens em vídeo de cavalos dias antes e depois do procedimento de castração. “A castração foi efetuada seguindo um protocolo adequado para redução da dor”, relata Gabriel Carreira Lencioni, aluno de graduação da FMVZ e principal pesquisador do projeto. “As imagens foram então selecionadas e avaliadas pelo pesquisador, em consulta com profissionais, a fim de identificar cada característica de partes da face, no caso, olho, orelha, boca e narinas, e o nível de dor indicado, com base em uma escala desenvolvida em 2014 pelo projeto Animal Welfare Indicators, coordenado pelo professor Zanella e financiado pela União Europeia.”
Estas informações foram utilizadas para treinar no computador, por meio de técnicas de inteligência artificial, um algoritmo de classificação das imagens de partes da face do animal, de modo a identificar três níveis de dor: ausente, moderada ou presente. “Depois, treinamos outro algoritmo para integrar as informações produzidas de cada parte da face e enfim predizer o nível de dor que cada animal apresentava na imagem completa da face do cavalo”, descreve Lencioni. “Todos os animais foram mantidos com acompanhamento veterinário contínuo e intervenções terapêuticas orientadas pelo profissional”. Nesta fase do projeto, colaboraram o professor Rafael de Souza do Grupo de Robótica e Automação para Engenharia de Biossistemas (RAEB) da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP, em Pirassununga.
Dor e Expressões Faciais
Para a obtenção das imagens, foram filmados sete cavalos, dois dias antes e quatro dias depois das cirurgias, conduzidas pelo professor Rodrigo Romero Corrêa, da FMVZ, o que resultou em mais de 180 mil imagens, que foram então selecionadas manualmente a fim de obter somente as que permitiam a avaliação das expressões faciais dos animais, ao todo, cerca de três mil imagens. “Essa seleção serviu de base para que o sistema pudesse detectar mudanças relevantes em outras imagens”, observa o pesquisador. “Dessa forma, após a avaliação e o treinamento dos algoritmos, foi possível avaliar a taxa de acerto do sistema comparado com a avaliação manual realizada com base em outra escala de dor, a Horse Grimace Scale (HGS), criada para avaliar o nível de dor em cavalos baseado nas expressões faciais do animal.”
De acordo com Lencioni, ao avaliar imagens de cavalos e classificá-las entre dor ausente, moderada e presente, o sistema apresentou uma precisão geral de 75,8%, e de 88,3% ao identificar entre dois níveis apenas, ou seja, presença ou ausência de dor. “A interpretação dos critérios clínicos para avaliação de dor apresenta uma enorme variabilidade entre os médicos veterinários”, ressalta. “Um sistema capaz de uniformizar o treinamento de estudantes e profissionais tem um enorme potencial de melhorar o nível de bem-estar dos animais.”
Com o algoritmo em funcionamento, a avaliação de dor nos animais, que antes ocorria esporadicamente, poderá ocorrer de maneira ininterrupta, destaca o professor Zanella. “Isso permitirá a avaliação dos níveis de dor do animal 24 horas por dia, enviando um alarme ao proprietário ou médico veterinário imediatamente caso o animal apresente sinais de dor”, prevê. “Dessa maneira, será possível prevenir o agravamento de doenças e lesões, permitindo uma intervenção rápida e imediata que consequentemente contribuirá com tratamentos mais eficientes e animais com níveis de bem-estar superiores.”
O professor também enfatiza que o algoritmo poderá contribuir com o acompanhamento de animais em recuperação, mensurando os níveis de dor e auxiliando os médicos veterinários, a fim de estabelecer a melhor conduta de controle de dor possível. “Em teoria, esta abordagem poderá estar associada com liberação de fármacos, de forma inteligente, quando indicadores extremos de dor estiverem presentes e o profissional tiver dificuldade de atender o animal”, comenta. “Entendemos que o maior potencial desta tecnologia é treinar futuros veterinários, incluindo a experiência de especialistas para selecionar novos indicadores e validar as medidas utilizando sistemas computacionais.”
Apesar do sistema ter apresentado resultados promissores, Zanella observa que ainda são necessários avanços a fim de possibilitar a aplicação da tecnologia às criações, como treinar o sistema com um número ainda maior de imagens, permitindo que se torne cada vez mais robusto e com melhor precisão ao avaliar os sinais de dor. “Por meio do Programa Unificado de Bolsas (PUB) e de outras solicitações de recursos, nosso grupo de pesquisa pretende criar um repositório de imagens de equinos em várias condições para melhorar a sensibilidade do nosso sistema”, planeja. “Lencioni irá realizar um estágio no Centro de Computação da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, pioneiro na área de reconhecimento inteligente de expressões de emoções em humanos.”
O graduando da FMVZ realizou o projeto com apoio da Agência USP de inovação (AUSPIN) e da Pró-reitoria de Graduação da USP. Ele trabalhou sob orientação do professor Adroaldo José Zanella, responsável pelo Centro de Estudos Comparativos em Saúde Sustentabilidade e Bem-Estar, do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Animal da FMVZ. A pesquisa teve a colaboração do professor Rodrigo Romero Corrêa, do Departamento de Cirurgia da FMVZ, especialista em equinos, além do professor Rafael de Sousa e de Edson Sardinha, da FZEA.