Por Sarah Schmidt, da Pesquisa FAPESP | Imagens de ressonância magnética do cérebro de mulheres com obesidade e compulsão alimentar registraram uma alteração de conectividade entre duas regiões cerebrais. A primeira é o córtex pré-frontal ventromedial, região pouco acima da linha entre os olhos que ajuda a controlar a impulsividade, e a segunda é a concha do núcleo accumbens, atrás do próprio córtex pré-frontal ventromedial, e está ligada à sensação de recompensa e de prazer. Os achados resultam de um estudo realizado na Universidade Stanford, na Califórnia, e na Universidade da Pensilvânia (UPenn), na Filadélfia, nos Estados Unidos, com a participação de dois pesquisadores brasileiros.
A compulsão alimentar faz a pessoa perder o controle sobre a quantidade de comida ingerida. Em consequência, alterações nessas regiões do sistema nervoso central, por prejudicar o domínio sobre o quanto comer, poderiam favorecer o desenvolvimento da obesidade. Participaram da pesquisa 37 mulheres com compulsão alimentar (13 com obesidade, 5 com sobrepeso e 19 com peso normal).
Nesse trabalho, quanto maior o Índice de Massa Corporal (IMC) das mulheres, menores eram as taxas de conectividade entre as regiões do cérebro. Resultado da divisão do peso (em quilogramas) pela altura ao quadrado (em metros), o IMC abaixo de 25 indica peso normal e, acima de 30, obesidade.
Em comparação com as de peso normal, as mulheres com obesidade apresentaram uma redução de 0,11% na chamada conectividade funcional, que indica a sincronização entre as duas regiões do cérebro. “Já é uma diminuição significativa, que pode contribuir para a diminuição do controle sobre o impulso e a quantidade de calorias ingeridas”, sugere o médico brasileiro Daniel Barbosa, pesquisador na UPenn e primeiro autor do estudo, publicado em junho de 2022 na revista científica Molecular Psychiatry.
“As mulheres com obesidade também apresentaram uma redução na conectividade estrutural, que avalia as fibras nervosas entre essas duas regiões”, diz ele. Nesse grupo, a espessura do córtex pré-frontal direito era cerca de 10% menor que no outro – o esquerdo não apresentou diferença significativa. “Um córtex mais fino apresentaria menos substância cinzenta, possivelmente representando uma quantidade menor de neurônios e menor capacidade de receber estímulos.”
Essas alterações no cérebro seriam a causa ou a consequência da obesidade? Para os pesquisadores que participaram do estudo, elas seriam uma das origens do ganho de peso e, como verificaram, foram encontradas apenas em mulheres obesas, não nas com peso normal, embora ambas com compulsão alimentar. Segundo Barbosa, as mulheres com compulsão alimentar e peso normal tinham a mesma média de episódios de compulsão por semana que as com obesidade; portanto, provavelmente ingeriam menos calorias por terem um controle maior sobre a quantidade de alimento consumida.
Em 2030, a obesidade pode atingir uma em cada cinco mulheres e um em cada sete homens, de acordo com projeções da Federação Mundial da Obesidade publicadas no Atlas mundial da obesidade 2022, em maio. Para o Brasil, o relatório prevê que cerca de 30% das pessoas poderão apresentar essa forma de sobrepeso na próxima década. Hoje, segundo o Ministério da Saúde, 22% dos brasileiros estão obesos.
“Como quase metade dos pacientes com compulsão alimentar tem obesidade, a compulsão é considerada um fator de risco para o aumento excessivo de peso”, afirma o psiquiatra Celso Garcia Júnior, da Faculdade de Medicina e Odontologia São Leopoldo Mandic, em Campinas, que não participou do estudo.
“Costumo dizer nas minhas aulas: se você está atendendo um paciente com obesidade, pode ser que esteja diante de alguém com compulsão alimentar”, diz Garcia Júnior. “É importante investigar, porque, em muitos casos, a pessoa tem vergonha de contar.”
Coordenador do Grupo Interdisciplinar de Assistência e Estudos em Transtornos Alimentares da Unicamp até 2017, ele destaca que o diagnóstico de compulsão alimentar envolve uma série de critérios, entre eles ter tido pelo menos um episódio de compulsão por semana nos últimos três meses e sensação de culpa ou sofrimento. “Desvendar os detalhes das conexões entre o córtex pré-frontal ventromedial e o núcleo accumbens é um passo importante para que se compreenda melhor a origem do comportamento compulsivo alimentar”, observa Garcia Júnior.
“Os dados mostraram a conexão dessas duas regiões em seres humanos, que era conhecida apenas em modelos animais”, comenta o médico Lício Velloso, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, que não participou da pesquisa.
“O hipotálamo age de forma parecida, regulando a fome e a saciedade por falta de alimento. Mas a fome emocional, que depende da sensação de prazer, pode variar bastante de pessoa para pessoa, e o controle dela passa por essas duas regiões analisadas no estudo”, observa Velloso, que estuda a relação do hipotálamo, localizado na base do cérebro, com a obesidade.
Marca-passo cerebral
Para restabelecer o funcionamento desse circuito cerebral, os pesquisadores de Stanford e da UPenn usaram um aparelho com dois eletrodos, comumente usados para tratar epilepsia, e o adaptaram para estimular o núcleo accumbens inicialmente em uma mulher de 56 anos, com obesidade e compulsão alimentar e resistente a outros tratamentos para redução de peso.
Os dois eletrodos, de 1,6 milímetro (mm) de diâmetro e 30 centímetros (cm) de comprimento, são colocados na concha do núcleo accumbens de cada lado do cérebro, por meio de uma cirurgia minimamente invasiva. Os dispositivos são ativados automaticamente ao longo do dia, assim que detectam oscilações de baixa frequência do núcleo e liberam estímulos elétricos, de poucos segundos. “O aparelho funciona como um marca-passo cerebral que modula a conexão desse circuito”, diz Barbosa. Segundo ele, os eletrodos podem permanecer no cérebro em princípio durante décadas, com eventuais trocas da bateria, que fica implantada no crânio.
Após três meses de tratamento experimental, os episódios de compulsão relatados pela mulher caíram de 12 para cinco por semana, em média. “A mudança de comportamento indica que esse circuito cerebral pode ser regulado, mas temos de avaliar em mais voluntários, inclusive homens, que não se voluntariaram nessa primeira fase desse estudo.” A meta, ainda em um futuro distante, é desenvolver formas de modulação cerebral que não precisem de cirurgias, como a estimulação magnética transcraniana, usada para tratamento de depressão.
Seis meses depois, a mulher de 56 anos e outra, de 45 anos, submetida ao mesmo tratamento, tiveram uma queda de 87% e 80% dos episódios de compulsão alimentar, respectivamente. A primeira perdeu 8 quilogramas (kg) e a outra quase 6 kg, como descrito em um preprint de um artigo recentemente aceito na revista Nature Medicine e publicado na plataforma Research Square. “Manter a integridade desse circuito em pessoas com compulsão alimentar pode ser importante para que não cheguem à obesidade e suas comorbidades”, pondera Barbosa.
Hoje existe apenas um remédio no mundo aprovado para tratar a compulsão alimentar grave, a lisdexanfetamina. “O entendimento de como modular o circuito entre o córtex pré-frontal e o núcleo accumbens, região rica em receptores de dopamina, poderia abrir caminho para outros medicamentos, provavelmente mais acessíveis que a técnica de estimulação magnética”, avalia Garcia Júnior.
Artigos científicos
BARBOSA, D. A. N et. al. Aberrant impulse control circuitry in obesity. Molecular Psychiatry. 13 jun 2022.
HALPERN, C. et al. Responsive nucleus accumbens deep brain stimulation restores eating control in severe obesity. Research Square. Preprint. 15 mar. 2022.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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