Dois meses foram o suficiente para perceber que não se acostumaria com o calor da cidade, então ela decidiu ir à São Paulo (SP), onde conheceu um mineiro de São Lourenço (MG), com quem teve sete filhos
Por Lays Ushirobira em IPAM Amazônia — A curiosidade para saber o que tinha além de Santarém (PA) levou Maria Odila até Manaus (AM). Dois meses foram o suficiente para perceber que não se acostumaria com o calor da cidade, então ela decidiu ir à São Paulo (SP), onde conheceu um mineiro de São Lourenço (MG), com quem teve sete filhos. No entanto, “a vida com ele não era legal” e ela nunca se esqueceu de seu rio. Foi o amor por sua terra que a levou de volta ao estado do Pará, na comunidade de Anã. E é esse amor a base para que algumas comunidades amazônidas floresçam enquanto a floresta prospera. “Quando amamos alguma coisa ou algum lugar, encontramos um jeito de viver e nos adaptar”, disse Odila, que é uma das sócias-fundadoras da Turiarte (Cooperativa de Turismo e Artesanato da Floresta), em participação no painel Amazônia Secular do seminário Fruturos – Amazônia do Amanhã, organizado pelo Museu do Amanhã com o apoio do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em 28 e 29/04.
Confira o vídeo especial do Amazoniar para o painel Amazônia Secular, do seminário Fruturos:
Ela conta que logo que chegou em Anã, onde nasceu e foi criada, foi convidada a fazer parte de uma organização das mulheres da comunidade. “Começamos a criar peixes. Éramos 25 mulheres no começo, mas os maridos não acreditaram [no potencial da atividade] e o número caiu para 15. Em 2005, pegamos a atividade para nós e hoje Anã é conhecida na região pela criação comunitária de peixes”, relatou. A partir da força de querer fortalecer o grupo, a comunidade também encontrou no turismo de base comunitária outra forma para girar a economia. “A atividade foi pensada para os povos de uma certa altura da ilha, que compensasse o extrativismo porque já não tinha mais andiroba e castanha – os que vieram antes acabaram com tudo. Assim pensamos no turismo de base comunitária, mas era um bicho que ninguém sabia se tinha sete ou 12 cabeças”, contou.
Com o apoio de um projeto da organização não-governamental Saúde e Alegria, sua comunidade participou de uma formação e pôde começar a atividade em 2009. “Era algo muito bom para nossos visitantes, porque era tudo bonito, mas estava incomodando porque não era aquilo que nós queríamos. Foi aí que começamos a entender o turismo de base comunitária”, disse. Odila contou que em 2013, quando construíram uma hospedaria, grandes empreendedores de Alter do Chão os procuraram para dizer que o negócio seria multado e fechado se não fosse legalizado. “Eu era presidente da associação e estava à frente do movimento. Procurei o Saúde e Alegria e disse: ‘vocês nos ensinaram a caminhar e estamos indo pelo caminho certo, agora quero que vocês nos ensinem como legalizar esse empreendimento’. Como associações não podem gerenciar [negócios] por não terem fins lucrativos, criamos a Cooperativa de Turismo e Artesanato da Floresta.”
Formada por artesãos, agricultores e pescadores, a cooperativa utiliza vários recursos da floresta para fazer sua arte e proporcionar a experiência turística aos visitantes. O senso de coletivo ajuda a desenvolver a economia para mais pessoas da região e a reforçar a importância de cuidar da floresta. “Já tem algumas comunidades colhendo a palha do tucumã do seu próprio plantio, mas estamos trabalhando para que todas tenham suas próprias áreas plantadas, porque de onde se tira e não repõe, a falta vem”, alertou.
Odila destacou, no entanto, que a crescente destruição da Amazônia é uma grande ameaça para essas comunidades e seu desenvolvimento econômico. “Moro num lugar protegido pela lei de 1998, quando Fernando Henrique Cardoso [então presidente do Brasil] o reconheceu como reserva, mas a pressão é muito grande. São poucos gestores e às vezes temos que chamar a polícia porque tentam invadir a área”, explicou. “Ninguém consegue olhar a nossa Amazônia como uma beleza e fonte de vida. Ela é vista como um produto para enriquecer o agronegócio do nosso país. Isso dói muito dentro de mim, porque ninguém pergunta se o amazônida quer aquilo. Eles vão chegando e plantando, e quando alguém se levanta para dizer que não queremos aquilo, nos matam. O Pará é o estado onde morrem mais lideranças comunitárias por defender a floresta e nossos direitos dos amazônidas.”
Nesse contexto, ela fez um apelo à juventude brasileira: “a Amazônia precisa muito da colaboração de vocês. No futuro, vocês vão ter oportunidades de estudar, intervir e influenciar projetos pelo desenvolvimento da Amazônia, mas que sejam pensados por nós [amazônidas]. Que nós possamos dizer como queremos viver para que a ciência nos ajude a conviver com a floresta em pé, que é nossa vida”, concluiu Odila.
A cultura da Amazônia como resistência
Para Alcilene Cardoso, advogada e pesquisadora do IPAM que também esteve no painel Amazônia Secular, é justamente a falta de amor o grande mal por trás dessa destruição da Amazônia. “Quando você tem amor e respeito pelo próximo, você não faz nem deseja o mal para ele. Precisamos amar mais e nos colocar no lugar do outro”, disse. “Não se mata um povo quando se arranca dele um braço ou uma perna. Mata-se um povo quando arranca dele sua cultura, seu modo de fazer e viver.”
Também nascida no Pará, ela contou que os amazônidas vêm perdendo algo fundamental: o direito de esperançar a construção de um futuro melhor. Para permitir isso, é preciso respeitar o tempo do outro. “Espero que a gente sempre leve esse esperançar, e que consiga frear ou acelerar quando preciso. Nosso tempo não é o mesmo do que o do outro e o tempo de cada um precisa ser muito respeitado”, falou durante o seminário.
Um exemplo que ela compartilhou com o painel foi o processo de produção da farinha. “Nós caboclos paraenses não vivemos sem farinha. É um processo que ensina muito: você separa e depois junta, e repete o procedimento várias vezes. Vai demorar uma ou duas horas? Depende – quando estiver pronta, o caboclo vai saber. Então vamos dar o tempo que precisar. Que a gente saiba respeitar em nossos projetos e intervenções enquanto governo, o tempo do outro, principalmente o tempo dos amazônidas”, explicou.
Cardoso ressaltou que todos podem contribuir para a conservação da floresta em pé e a proteção dos direitos das comunidades locais. Do lado do consumidor, ela recomendou tentar identificar a origem dos produtos. “Quando for a um supermercado, avalie: tem trabalho escravo envolvido? Aqui tem uma lágrima contida de uma mulher que não conseguiu fazer parte [do processo]? Aqui tem uma pesca predatória de alguém que invadiu uma região e tirou o peixe que faz falta para alguma família? Tudo que chega para você teve o trabalho de alguém lá atrás. Consuma consciente e ajude a valorizar tudo que esses povos estão fazendo para que tenhamos uma repartição de benefícios, um ganha-ganha de todos os lados. Isso já nos ajuda a continuar essa luta.”
A floresta pela prosperidade das comunidades amazônidas em tempos difíceis
Os quilombolas também precisam da floresta em pé. A fundadora e presidente da Associação Crioulas do Quilombo Urbano São Benedito, Keilah Fonseca, contou durante o seminário que sua organização aproveita vários recursos diferentes para fazer seu artesanato: desde garrafas pet e de vidro, até retalhos de panos e sementes dos povos indígenas. “A nossa saga como mulheres crioulas é fazer um trabalho que gere emprego e renda para as mulheres na comunidade”, contou.
“Tenho orgulho de falar que 80% das mulheres negras e feministas da comunidade têm curso de graduação. Somos nós que, na maioria das vezes, sustentamos nossas famílias”, disse. Por outro lado, ela conta que infelizmente ainda faltam oportunidades no mercado de trabalho para a maioria. “Eu trabalho na informalidade, estou desempregada, trabalho com café da manhã e almoço, e é daí que vem o sustento da minha família. Já que não existe emprego para todas, apesar da nossa formação, nós temos que nos sustentar.”
Na ocasião, ela criticou a falta de políticas públicas para proporcionar acesso a serviços públicos essenciais para aliviar e distribuir a carga de trabalho de cuidado e doméstico não remunerado. “A Associação começou com a reflexão sobre o que iríamos fazer depois da certificação [pela Fundação Palmares], porque a maioria das mulheres está desempregada, não há creches e escolas suficientes. Nós precisamos de políticas públicas voltadas para as nossas crianças, para que as mulheres possam deixar o trabalho doméstico e poder trabalhar”, destacou.
As dificuldades que as mulheres da associação enfrentam não diminuem seu espírito coletivo. Fonseca contou que os integrantes fazem um trabalho comunitário de liderança com calendário anual de atividades, que são possibilitadas pela parceria de todas as mulheres, somando experiências e valores. “Sempre falo que quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da comunidade se movimenta com ela, porque basta um grito que todas ouvem, independentemente se for negra, branca, indígena. Eu abraço a causa da Dona Odila, a causa da Alcilene, e de qualquer uma”.
Seminário Fruturos – Amazônia do Amanhã
A programação do seminário realizado pelo Museu do Amanhã contou com quatro painéis de discussões, seguindo as áreas narrativas da exposição Fruturos: Amazônia Milenar, Amazônia Secular, Amazônia Acelerada e Amazônias Possíveis. Este é o segundo texto produzido pela equipe do Amazoniar – iniciativa do IPAM para promover um diálogo global sobre a floresta amazônica e sua influência nas relações entre o Brasil e o mundo – como cobertura do seminário. Confira a cobertura do primeiro painel e acompanhe as redes do IPAM para ler as próximas!
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