Por Danilo Albergaria em Pesquisa Fapesp – Até o final deste século deve desaparecer uma porção considerável de um patrimônio da humanidade: os verbetes de uma enciclopédia oral de práticas medicinais na qual estão codificadas as utilidades terapêuticas e curativas de milhares de espécies de plantas. A perda irreparável desse conhecimento já está em curso e ocorre, em grande medida, quando línguas indígenas morrem, com efeito mais drástico do que a perda de biodiversidade. Essa é a principal conclusão dos biólogos espanhóis Rodrigo Cámara-Leret e Jordi Bascompte, em artigo publicado em junho na revista científica PNAS.
O estudo interdisciplinar combinou os dados de levantamentos de plantas medicinais de três regiões de grande diversidade cultural e biológica (a porção ocidental da Amazônia, parte dela no Brasil, uma amostragem ampla da América do Norte, sobretudo nos Estados Unidos, e Nova Guiné), com um mapeamento das línguas e troncos linguísticos indígenas dessas regiões para avaliar como o conhecimento da utilidade medicinal das plantas está distribuído entre os povos, e em que medida as línguas contêm um conhecimento singular, próprio a cada uma delas, das plantas medicinais. O artigo mostra, por exemplo, que a língua ticuna, falada por aproximadamente 50 mil habitantes da Amazônia brasileira, encapsula um conhecimento de mais de 150 utilidades medicinais de plantas que é exclusivo desse povo. A ticuna é uma língua considerada vulnerável pelo Projeto Idiomas em Risco, uma iniciativa internacional supervisionada pelo Google voltada para o levantamento e a preservação de línguas em risco de extinção.
Cámara-Leret, que integra o grupo de pesquisadores coordenado por Bascompte no Departamento de Biologia Evolutiva e Estudos Ambientais da Universidade de Zurique, na Suíça, reconhece ter sido pego de surpresa ao “descobrir que mais de 75% do conhecimento indígena nessas regiões está associado a línguas individuais”. Ou seja, pelo menos três em cada quatro utilidades medicinais de plantas presentes nos conhecimentos tradicionais indígenas estão presentes em apenas uma língua e em nenhuma outra, sem sobreposição ou redundância. “Ainda mais surpreendente, descobrimos que o conhecimento singular está associado mais fortemente a línguas do que a plantas ameaçadas”, afirma o biólogo a Pesquisa FAPESP. Isso é especialmente significativo em um contexto no qual as atenções dos esforços de preservação ambiental estão focadas na manutenção da biodiversidade, mas ainda pouco se fala da importância da preservação de diversidade biocultural.
Para chegar à conclusão de que uma determinada propriedade medicinal de uma planta é singular a uma língua, os biólogos utilizaram 20 categorias medicinais de caráter amplo, como sistema digestivo, sistema cardiovascular ou saúde dentária. Se duas línguas citam uma mesma planta como remédio para condições muito diferentes que acometem uma mesma categoria medicinal, então o conhecimento foi considerado como compartilhado entre as línguas. Por isso, a proporção descoberta de conhecimento etnobotânico linguisticamente singular é considerada conservadora pelos biólogos.
Existem mais de 7 mil línguas faladas no mundo. Cerca de 30% delas estarão extintas até o fim do século XXI. A expansão urbana, a contínua colonização, o desmatamento e a assimilação cultural são os principais fatores desse processo de extinção linguística em massa. Essa tendência é deletéria, pois conhecimentos tradicionais existem articulados às culturas, às línguas e ao próprio território dos povos que os elaboraram. “Cada idioma usa uma terminologia singular para nomear seus arredores e, quando essa terminologia começa a ser erodida, é como se um índice da biblioteca da floresta desaparecesse. Isso ocorre especialmente quando as línguas indígenas são substituídas por línguas mais dominantes que não têm uma terminologia para plantas em uma determinada região da floresta”, explica Cámara-Leret.
A perda de terminologia adaptada ao ambiente é apenas um dos aspectos do processo de perda de conhecimento etnobotânico associado à extinção linguística. A morte de uma língua e a desarticulação de uma cultura envolvem perdas de todo um processo cognitivo. “Os aprendizes aprendem oralmente com os mais velhos, e o conhecimento compartilhado abrange mitos, histórias e nomes de locais que são importantes de nomear na própria língua para compreender seu lugar no ecossistema e sua conexão com a terra”, descreve o biólogo. “Por exemplo, os rituais para se tornar um curandeiro tradicional no noroeste da Amazônia envolvem anos de isolamento durante o dia na floresta e os aspirantes devem sentar-se à noite com os mais velhos na maloca para aprender os nomes das plantas, seus usos, mitos e sua relação com outros seres e com doenças. A maioria desses rituais se perde quando as línguas deixam de ser faladas.”
Embora a morte de uma língua esteja associada à desarticulação de uma cultura e de um corpo de conhecimento tradicional, a relação entre essas dimensões de desaparecimento de experiências humanas não é linear, nem óbvia. O linguista Wilmar D’Angelis, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que coordena esforços de preservação de línguas indígenas no estado de São Paulo e no Sul do Brasil, afirma que “muitos conhecimentos ancestrais de determinados povos indígenas foram preservados porque as práticas culturais tiveram continuidade mesmo na ausência da língua ancestral, que foi abandonada em algum momento”.
Apesar de a associação não ser automática, o linguista pondera que um grande leque de conhecimentos depende mais de sua estreita relação com a língua, pois a própria expressão linguística induz à percepção de características particulares e propriedades comuns de uma determinada planta ou animal. D’Angelis conta, por exemplo, que os nomes tupis para as plantas ou para os animais sempre evocam características singulares do seu objeto referente, sejam elas morfológicas ou funcionais. “Isso contribui tanto para uma rápida identificação do elemento em si como para a percepção de características comuns entre vários elementos distintos.” O linguista exemplifica com as plantas da família das aroideáceas, que fornecem tubérculos alimentícios e são chamadas de mangará na língua tupi. Mangarataia significa “mangará que arde”: é o gengibre. Dentre as plantas medicinais, D’Angelis cita a acariçoba, comum na Amazônia e conhecida por povos indígenas por suas propriedades medicinais. O nome da planta deriva do uacari, uma espécie de macaco de face vermelha com o qual a planta está associada.
O antropólogo médico norte-americano Glenn Shepard Jr., pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, sustenta que “uma cultura pode sobreviver sem a língua, ou com a língua em estado dormente, mas é óbvio que manter a língua original preserva muito melhor os conhecimentos daquela cultura. Há vários exemplos de culturas supostamente extintas que ressurgiram”. Ele esclarece que língua e cultura costumam andar juntas, mas não são a mesma coisa. Assim como práticas podem sobreviver à morte da língua, línguas podem ser empobrecidas em sua carga cultural, o que inclui a perda de conhecimento do ambiente em que se desenvolveram. “Se o povo indígena fala a sua língua materna, sabemos que a cultura está preservada em conjunto. Se não fala a língua, o povo pode preservar a cultura de outras formas, mas é mais difícil mantê-la”, afirma.
No entanto, Shepard ressalta que “a perda da língua é o primeiro passo para a perda de conhecimento, que está também associada a uma perda ecológica”, apontando que os esforços de preservação de línguas, de conhecimentos tradicionais indígenas e de biomas estão intimamente relacionados. “Há uma sobreposição entre o mapa da diversidade linguística do Brasil e o mapa de biodiversidade. As terras indígenas preservam a língua, a cultura e a floresta em pé. A floresta não se mantém sem os povos indígenas lá, falando sua língua, preservando sua cultura e sua forma de se alimentar”, explica. Cámara-Leret reforça: “Nossos resultados indicam a necessidade de incorporar a dimensão cultural e o conhecimento indígena nos esforços atuais de conservação de biodiversidade porque a maior parte das mais bem conservadas áreas do mundo está nas terras dos povos indígenas, onde a vitalidade de suas línguas é central para a conservação”.
Línguas são janelas singulares para o mundo e encapsulam a experiência humana local de uma cultura. O estudo de cada uma das línguas permite entender melhor questões relacionadas à capacidade linguística e à própria cognição da espécie humana. Por isso, cada língua e cada cultura tem um valor intrínseco que justifica esforços para sua conservação.
Mas o estudo de Cámara-Leret e Bascompte sugere uma dimensão a mais: a extinção em massa de línguas e a consequente perda de conhecimento tradicional dificultarão a obtenção de tratamentos cujos potenciais ainda estão fora do alcance da ciência. Apenas uma porção muito pequena (6%) das espécies de plantas foi analisada para estabelecer sua efetividade medicinal.
Quando se perde o índice do acervo de plantas com potencial de utilidade medicinal contido numa língua, a perspectiva de que o conhecimento etnobotânico perdido seja redescoberto não é muito animadora. Ao passo que os povos indígenas há séculos vêm experimentando com as plantas em uma floresta com milhares de espécies “a possibilidade de redescobrir o conhecimento medicinal antes que as plantas e que as outras línguas da região também se percam pode ser pequena”, alerta Cámara-Leret. O biólogo ressalta, ainda, que a possibilidade de redescoberta se torna ainda mais tênue ao levar em consideração aspectos sofisticados como o conhecimento sobre a preparação das plantas, as dosagens, ou mesmo a combinação para obtenção de efeitos sinérgicos.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) definiu o período de 2022 a 2032 como a Década Internacional das Línguas Indígenas. Pensando em esforços de preservação linguística, Cámara-Leret recomenda “apoiar comunidades locais e criar condições favoráveis para a transmissão de linguagem de pais para filhos com programas governamentais que estimulem educação bilíngue, rádios comunitárias, e valorização das culturas indígenas em cada país”. Shepard aponta para a necessidade de atenção às cosmovisões indígenas para uma compreensão mais profunda de características sutis e geralmente ignoradas das plantas. Em artigo de 2019 na revista Anthropology Today, em parceria com o antropólogo britânico Lewis Daly, ele escreveu que “plantas e pessoas estão entrelaçadas em uma profunda parceria histórica”. Cada uma das línguas indígenas ameaçadas de extinção ilumina, de forma irrepetível, dimensões dessa parceria.
Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
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