Antigos incêndios podem estar ajudando a Amazônia a sobreviver às secas – os de hoje, nem tanto

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Por Maurício Brum em Mongabay |

  • Regiões mais ricas em carbono pirogênico parecem ter solo com maior fertilidade e capacidade de retenção de água, ajudando a floresta a passar por períodos de seca sem sofrer os danos habituais.
  • Embora os mecanismos subjacentes ainda não sejam compreendidos, os autores levantam a hipótese de que a substituição de espécies após incêndios antigos, que trouxe árvores com menor densidade de madeira, pode desempenhar um papel nessa resistência.
  • É improvável que os incêndios modernos, muito mais agressivos que as queimadas feitas de modo controlado há milênios pelas populações amazônicas, produzam efeitos semelhantes.

Incêndios florestais antigos parecem ter desempenhado um papel no aumento da resistência à seca na Amazônia, sugere um estudo recente. A pesquisa, publicada no periódico Frontiers in Forests and Global Change, concentrou-se em áreas sem incêndios recentes conhecidos, mas com altas concentrações de carbono pirogênico (PyC), um material encontrado no solo que é produzido pela queima da vegetação. A maior presença de PyC nessas áreas indica um registro de incêndios florestais ocorridos há muito tempo. Onde suas concentrações no solo eram maiores, descobriram os pesquisadores, características relacionadas à resistência à seca, como maior fertilidade e capacidade de retenção de água, também eram mais perceptíveis.

“Trabalhos recentes mostraram que a Floresta Amazônica já teve eventos de incêndio séculos ou milênios atrás, embora em uma escala muito menor do que a que se vê hoje”, diz a principal autora do estudo, Laura Vedovato, pesquisadora da Universidade de Exeter, no Reino Unido. Essa descoberta contraria a ideia de que a floresta só começou a sofrer incêndios nas últimas décadas, como as queimadas intencionais feitas por fazendeiros para a expansão da agropecuária. “Este é um estudo sem precedentes, nunca realizado em outras florestas tropicais”, disse Vedovato à Mongabay.

Distribuição das parcelas analisadas para carbono pirogênico (PyC). O tamanho dos pontos cinzentos é proporcional à concentração média de PyC no intervalo de 0 a 30 cm em cada local. Imagem: Vedovato et al.

Os pesquisadores analisaram a dinâmica da floresta – contabilizando taxonomia, crescimento florestal e mortalidade de árvores, entre outros – e coletaram amostras de solo em 95 locais diferentes na Bacia Amazônica. Depois de analisá-los quanto à fertilidade, textura e concentração de carbono pirogênico, eles combinaram as descobertas com dados sobre períodos de seca extrema nas últimas quatro décadas. “Nossos resultados indicaram que as áreas com maior concentração de PyC no solo, ou seja, com indícios de maior ocorrência de queimadas ancestrais, mantiveram a capacidade de ganho de carbono nas mesmas taxas em relação aos anos sem seca”, diz Vedovato.

Embora o mecanismo real por trás desse fenômeno permaneça desconhecido, o estudo aponta para três explicações possíveis. Como a maior presença de PyC está relacionada com o aumento da fertilidade do solo, as árvores nessas áreas podem estar morrendo e crescendo a uma taxa mais alta, lideradas por espécies com menor densidade de madeira.

“Assim, mesmo com a mortalidade de árvores em períodos de estiagem, há também o crescimento de novas árvores em um período tão curto, sem alterar o equilíbrio entre perda e ganho de carbono”, diz Vedovato.

Essa hipótese também se relaciona com a segunda, relativa à mudança de espécies arbóreas quando uma área é perturbada por incêndios, o que permite o predomínio de espécies com um período de crescimento mais rápido. A terceira teoria refere-se à maior capacidade de retenção de água das árvores para sobreviver aos períodos secos, o que também se relaciona com a presença de carbono pirogênico. “Uma ou mais hipóteses podem estar corretas”, diz Vedovato, acrescentando que são necessários mais estudos sobre os mecanismos subjacentes.

Incêndios modernos são diferentes

Essa resposta histórica aos incêndios naturais, no entanto, não é uma indicação de como a Amazônia pode se adaptar às ameaças atuais. “O regime de ocorrência dos incêndios ancestrais não pode ser comparado aos intensos e frequentes incêndios que ocorrem hoje”, diz Ted Feldpausch, professor da Universidade de Exeter, que supervisionou o estudo. “Os incêndios florestais registrados nos últimos anos ocorreram em condições diferentes daqueles de séculos atrás”, diz ele, referindo-se às queimadas feitas de modo controlado por populações humanas nos séculos anteriores à colonização portuguesa.

Embora os incêndios antigos ocorressem em intervalos de poucas centenas ou mesmo milhares de anos, hoje em dia algumas áreas da Amazônia sofrem vários incêndios na mesma década. Segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), os incêndios na Amazônia brasileira aumentaram 74% em 2020, se comparados com a virada do século.

Embora queimadas ancestrais pareçam ter aumentado a resistência à seca na Amazônia, de acordo com pesquisas recentes, o atual desmatamento causado pela ocupação humana e outras ameaças tornam a região cada vez mais vulnerável a incêndios. Foto: Cristian Braga/Greenpeace.

Sonaira Silva, professora da Universidade Federal do Acre especializada em incêndios florestais na Amazônia, que analisou o artigo a pedido da Mongabay, concorda.

“O estudo chama a atenção para o fato de que, ao contrário do que se pensa, as queimadas não são um fenômeno novo”, diz ela. “Mas o contexto atual é muito mais difícil porque temos uma sinergia de ameaças: desmatamento, um número maior de fontes de ignição, temperaturas mais quentes em geral e áreas de floresta fragmentada que ficam mais secas, mesmo que a seca não seja tão intensa como no passado.”

O resultado, diz Silva, são incêndios florestais que não só se tornaram mais frequentes, como também podem se espalhar mais rapidamente por conta da falta de umidade.

A ação humana desempenha um papel central em tornar a floresta mais vulnerável, de acordo com Philip Fearnside, biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “É um ciclo vicioso: primeiro vem a extração de madeira, depois um incêndio, depois um segundo incêndio traz ainda mais destruição, e depois de três ou quatro incêndios não podemos mais falar que existe uma floresta de verdade”, diz Fearnside.

O desmatamento provocado pelo homem contribui para a fragmentação da floresta e adiciona mais material inflamável ao meio ambiente: quando uma árvore está viva, ela pode preservar a umidade e atuar como uma barreira natural contra incêndios. Mas, quando ela é derrubada, os galhos e tocos deixados para trás secam e se tornam apenas mais combustível no caminho da destruição.

“Pode ser ainda mais perigoso do que o próprio desmatamento, porque com o desmatamento o governo ainda pode agir preventivamente”, disse Fearnside à Mongabay. “Mas se um incêndio florestal cresce além do controle, não há nada que possa ser feito para detê-lo.”

Revendo o estudo, Fearnside diz que é necessário colocar os dados em contexto para evitar interpretações errôneas de suas conclusões.

“Aqueles que leem o título podem ter uma ideia errada” sobre o que exatamente os incêndios podem fazer para aumentar a resistência à seca, diz ele. Esta posição é compartilhada pelos autores, que dizem que os resultados precisam ser considerados apenas em relação a incêndios antigos, e provavelmente não serão replicáveis no futuro, devido à forma que a natureza dos incêndios tomou nas últimas décadas.

“Os mecanismos que discutimos provavelmente não são válidos quando consideramos os incêndios modernos, mas são relevantes para ajudar a entender os impactos dos incêndios ancestrais na Amazônia”, diz Vedovato. “Os efeitos dos incêndios permanecem nas florestas por mais de duas décadas após o fato. O aumento da frequência desses incêndios não dá à floresta tempo suficiente para se recuperar e mostrar quaisquer benefícios durante as secas de curto prazo”.

Este texto foi originalmente publicado pela Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Equipe eCycle

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