Antropoceno, a era dos seres humanos, é marcado pelo aquecimento global

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Em 2007, em seu quarto relatório, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) dizia que “o aquecimento do sistema climático é inequívoco”. A quinta versão do documento, de 2013, dava um passo adiante e afirmava que “a influência humana no sistema climático é clara”. Divulgada em 9 de agosto de 2021, a primeira parte do sexto relatório de avaliação do painel (WG1-AR6), que faz um resumo do estado da arte sobre o conhecimento científico a respeito das mudanças climáticas, não deixa mais dúvidas sobre o papel da civilização contemporânea nesse fenômeno: “É inequívoco que a influência humana esquentou a atmosfera, o oceano e a superfície terrestre”. O documento também afirma que “aumentos observados nas concentrações de gases de efeito estufa (GEE) desde cerca de 1750 são inequivocamente causados por atividades humanas”. O aquecimento global é provocado pelo crescimento progressivo nas taxas atmosféricas de GEE, principal assinatura deixada no clima pelo Antropoceno, a era dos seres humanos.

Nenhuma parte do planeta está a salvo das consequências do aumento na temperatura média da atmosfera e de alterações decorrentes ou associadas a esse processo. “As mudanças climáticas já afetam todas as regiões da Terra de múltiplas maneiras. As mudanças que estamos experimentando vão se intensificar com o aumento adicional da temperatura”, comentou, durante a divulgação do relatório, Panmao Zhai, da Academia Chinesa de Ciências Meteorológicas, copresidente do grupo 1 de trabalho do AR6. Esse grupo foi o responsável pela produção da primeira parte do relatório de avaliação do IPCC, dedicado a atualizar o conhecimento científico sobre as mudanças climáticas. No primeiro trimestre de 2022, o painel deverá lançar as duas partes seguintes do AR6. O segundo documento vai tratar de impactos e vulnerabilidades causados pelas mudanças climáticas e do que pode ser feito para se adaptar a elas. O terceiro abordará formas de mitigação das mudanças climáticas.

Painel coordenado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), o IPCC não faz ou patrocina pesquisa científica. Também não sugere políticas ambientais. No entanto, divulga um resumo em linguagem acessível de seus relatórios, denominado Sumário para Tomadores de Decisão, que fornece as bases científicas sobre o clima para auxiliar os países a definirem suas ações. O IPCC reúne especialistas de diferentes áreas para compilar e analisar a produção científica com o intuito de produzir relatórios periódicos de avaliação da situação atual e de previsões sobre o futuro do clima. Elaborada ao longo de três anos, a primeira parte do AR6 foi escrita por um conjunto de 234 autores de 66 países. Outros 567 autores colaboradores também participaram da formulação do documento, cujo lançamento inicial era previsto para abril deste ano, mas foi postergado em razão da pandemia de Covid-19. O texto do relatório, aprovado pelos 195 países que participam do painel, faz menção a mais de 14 mil estudos científicos para embasar suas conclusões.

Segundo o WG1-AR6, a temperatura média da atmosfera deverá “muito provavelmente” aumentar 1,5 grau Celsius (ºC) no início da próxima década em relação ao valor registrado entre 1850 e 1900. Esse período do século XIX é considerado representativo da fase pré-industrial do planeta, quando a atmosfera não sentia efeitos significativos das atividades humanas, em especial da queima de combustíveis fósseis que liberam gases de efeito estufa. O novo prazo estimado para atingir esse aumento de 1,5 ºC é cerca de 10 anos antes do que os relatórios anteriores tinham previsto. De acordo com as definições adotadas pelo IPCC, um evento climático ou resultado de um processo é considerado “muito provável” quando a probabilidade de sua ocorrência se situa entre 90% e 100% (ver quadro sobre a linguagem adotada pelo painel). Os cinco cenários futuros projetados pelos modelos climáticos adotados pelo IPCC, desde o mais otimista até o mais pessimista, convergem para esse nível de elevação da temperatura global ainda na década de 2030.

Limitar o aquecimento global nos próximos anos a um aumento de 2ºC, preferencialmente 1,5 ºC, é a principal meta do Acordo do Clima de Paris, firmado em dezembro de 2015 no âmbito da ONU por 195 países. Esse nível de aumento de temperatura é considerado elevado, mas com potenciais impactos socioeconômicos ainda administráveis. “O relatório do IPCC deixa claro que será muito difícil alcançar essa meta se não reduzirmos drástica e rapidamente as emissões de gases de efeito estufa”, diz o físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), um dos sete pesquisadores brasileiros que participaram da elaboração do WG1-AR6 e um dos coordenadores do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG). O relatório do IPCC foi lançado no Brasil em um webinário promovido pela FAPESP também em 9 de agosto.

A Terra já está muito perto de cruzar a fronteira de 1,5 ºC de aquecimento global. Desde o período pré-industrial, a temperatura média em toda a superfície do planeta subiu cerca de 1,1 °C. É um nível de aquecimento sem precedentes ao longo dos últimos 2 mil anos, segundo o relatório. O aumento médio foi maior sobre as áreas que abrigam os continentes, onde vive a população humana, do que sobre os oceanos, respectivamente, de 1,6 °C e 0,9 ºC. As frias regiões polares, em especial o Ártico, foram as que mais se aqueceram desde o período pré-industrial, cerca de 3 ºC.

O documento também indica que, se a tendência de elevação global da temperatura do planeta não for revertida em pouco tempo, as geleiras continuarão derretendo, o nível do mar seguirá subindo, os oceanos vão se tornar mais ácidos e os chamados eventos climáticos extremos, como fortes ondas de calor, chuvas volumosas e secas severas, deverão ser ainda mais frequentes e intensos ao longo deste século. Na verdade, de acordo com estudos citados pelo IPCC, esse tipo de fenômeno, com grande potencial de causar mortes e prejuízos socioeconômicos, já se tornou mais comum e exacerbado nas últimas décadas e só tende a aumentar à medida que o planeta esquenta.

Ondas de calor extremamente fortes que ocorriam uma vez a cada 100 anos antes do século XX, quando a influência humana sobre o clima era pouco significativa, tornaram-se atualmente 4,8 vezes mais frequentes e 1,2 ºC mais quentes, segundo dados do IPCC. Se a temperatura global aumentar 1,5 ºC, esse tipo de evento extremo será 8,6 vezes mais comum e 2 ºC mais quente do que há 150 anos, prevê o painel. Mais meio grau de subida na temperatura média do planeta, atingindo uma elevação de 2 ºC, fará provavelmente com que essas ondas de calor se tornem 13,9 vezes mais frequentes e 2,7 ºC mais quentes. Caso a atmosfera terrestre aqueça 4 ºC, uma hipótese desoladora, esses episódios de canícula exacerbada tenderão a ser 39,2 vezes mais frequentes e 5,2 vezes mais quentes do que no século retrasado. Tendências semelhantes são detalhadas no documento com relação a eventos extremos relativos a chuvas e secas severas.

A ocorrência cada vez mais corriqueira de episódios superlativos do clima – como o registro de temperaturas recordes, na casa dos 50 ºC, no atual verão da América do Norte e na Europa e a maior cheia em quase 120 anos do rio Negro, no Amazonas, em decorrência de fortes chuvas ocorridas em meados deste ano – deu origem a uma nova área de pesquisa: trabalhos específicos sobre um evento extremo com o intuito de determinar se a ocorrência foi causada, ainda que em parte, por mudanças induzidas pelo homem ou por uma variação natural do clima. “Ainda há poucos estudos desse tipo sendo feitos na América do Sul, mas essa é uma área em crescimento”, comenta o climatologista José Marengo, coordenador de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que atuou como revisor-editor no mais recente relatório do IPCC (ver reportagem sobre essa área de pesquisa).

Choque de realidade

“Esse relatório é um choque de realidade”, comentou a paleoclimatologista francesa Valérie Masson-Delmotte, da Universidade Paris-Saclay, outra copresidente do grupo 1 de trabalho do IPCC, no material de divulgação do documento. “Agora temos uma imagem muito mais clara do clima no passado, no presente e no futuro. Isso é essencial para entender para onde estamos indo, o que pode ser feito e como devemos nos preparar.” O avanço na determinação do peso das atividades humanas na promoção das mudanças climáticas se deve a uma série de aprimoramentos nos estudos sobre o clima ocorridos nos últimos sete anos.

Melhores reconstituições paleoclimáticas, dados mais confiáveis e detalhados sobre a evolução das temperaturas e dos regimes de chuvas atuais e modelos computacionais mais aptos a fazer reconstruções do clima passado e projeções sobre o clima das próximas décadas – todos esses refinamentos permitiram que as conclusões do painel mais recente sejam mais incisivas do que em suas versões passadas. “Há muito menos incertezas nesse relatório sobre o que é decorrente de atividades humanas e o que é variação natural do clima”, explica a oceanógrafa Letícia Cotrim, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), uma das autoras brasileiras do WG1-AR6.

O aquecimento global é provocado pelo aumento da emissão de gases de efeito estufa, como óxido nítrico (N2O), metano (CH4) e sobretudo dióxido de carbono (CO2). O novo relatório enfatiza que, desde meados do século XVIII, a elevação nas concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera é “inequivocamente” causada por atividades humanas, em especial as associadas à queima de combustíveis fósseis. A conclusão deriva de estudos que simulam a evolução da temperatura média da atmosfera terrestre com e sem a emissão dos GEE derivados da ação do homem. Nos cenários em que ocorre emissão de gases de efeito estufa apenas por processos naturais, o planeta não esquenta, um indicador de equilíbrio no sistema climático. Quando a contribuição humana é adicionada a esse processo, a temperatura média do planeta atinge os níveis atuais. Hoje a concentração de CO2, principal GEE, é de quase 420 partes por milhão (ppm), cerca de 50% maior do que há 170 anos, no período pré-industrial.

Uma vez emitidos, os gases de efeito estufa têm três destinos possíveis: a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre. Se estocados no ar, causam o aquecimento global. Nos mares, tornam suas águas mais ácidas e ameaçam o ciclo de vida de muitas espécies. O caminho mais benigno é ser absorvido pelas plantas, via fotossíntese, e virar biomassa – por exemplo, o tronco de uma árvore. Desde a revolução industrial até hoje, 41% dos GEE foram para a atmosfera e 59% para a superfície terrestre e os oceanos. “Mas há uma tendência de a atmosfera absorver mais CO2 do que os oceanos e superfície terrestre, tanto em termos proporcionais como absolutos, se as emissões desse gás não caírem até o fim do século”, explica o climatologista Marcos Heil Costa, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), de Minas Gerais, que estuda as interações do clima com a agricultura e é um dos autores do WG1-AR6. Em um cenário pessimista projetado pelo IPCC, em que os níveis atuais de emissão de dióxido de carbono dobrariam até o fim deste século, a atmosfera passaria a estocar 54% do CO2 liberado. Em um quadro muito pessimista, em que as emissões duplicariam até meados do século, a fatia de CO2 aprisionada na atmosfera subiria para 62%.

As mudanças climáticas exacerbam o ciclo da água. Isso provoca tanto chuvas mais intensas como períodos áridos e quentes, gerando desastres naturais, como inundações, deslizamentos de terra e secas mais severas em muitas regiões. As áreas costeiras, por exemplo, verão a continuidade do aumento do nível do mar ao longo do século XXI, fenômeno que, combinado com tempestades mais intensas, promoverá erosão e inundações costeiras mais frequentes e volumosas em áreas baixas. Eventos extremos associados à elevação do nível do mar que ocorriam anteriormente uma vez a cada 100 anos podem se tornar ocorrências anuais perto do final deste século. Entre 1901 e 2018, o nível médio do mar aumentou 20 centímetros. Mas nos anos mais recentes esse ritmo tem se acelerado. Foi de 1,3 milímetro (mm) ao ano entre 1901 e 1971 e passou para 3,7 mm ao ano entre 2006 e 2018. O aquecimento progressivo do clima global ampliará o derretimento de geleiras sazonais, de gelo marinho no verão do oceano Ártico, e do permafrost – solo continuamente congelado na região ártica, que contém muito metano, gás de efeito estufa que, se liberado, acelerará ainda mais o aquecimento global.

Cada elevação de 0,5 ºC na temperatura média do planeta repercute de forma não linear na frequência e intensidade de ondas de calor e de episódios de seca ou chuvas exacerbadas. “Um aumento dessa ordem na temperatura duplica ou triplica alguns eventos climáticos extremos”, ponderou o climatologista Lincoln Muniz Alves, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), outro membro do grupo 1 de trabalho do IPCC. Alves fez parte da equipe que desenvolveu um atlas interativo, uma novidade do WG1-AR6, que pode ser acessado na internet.

Efeitos no Brasil

O relatório do IPCC não faz projeções sobre o clima específico de um país, apenas para o planeta como um todo ou dividido em regiões. Mas, a partir dessas projeções regionais, é possível ter uma noção do que a literatura científica sinaliza como as tendências atuais e futuras do clima na América do Sul e no território nacional. Em linhas gerais, há uma tendência de a temperatura média no continente continuar subindo a um ritmo mais acelerado do que a média global. O nível do mar no Atlântico sul (mas não no Pacífico) se elevou de forma mais acentuada do que a média do globo nas últimas décadas, inclinação que deve se manter ao longo deste século e favorecer a ocorrência de inundações costeiras. Se o aquecimento global aumentar pelo menos 2 ºC, as projeções para a vasta área abrangida pelo Brasil são um misto de mais chuvas concentradas e mais episódios de seca, uma espécie de gangorra climática exacerbada de efeitos potencialmente desastrosos.

Na Amazônia, as projeções sinalizam, com alto grau de certeza, uma maior ocorrência de dias sem chuvas e de secas, e, com menor nível de confiança, mais episódios de chuva extrema e inundações. No cenário mais pessimista, em que as emissões globais de CO2 dobram até 2050, mais de 150 dias por ano terão temperaturas acima de 35ºC até o fim do século. Para o Nordeste, uma região naturalmente bem menos úmida, o cenário projetado é semelhante, com destaque para um aumento na duração do período de estiagem.

No Centro-Oeste, não há dados confiáveis que sinalizem uma diminuição na quantidade de precipitação atmosférica, mas a estação chuvosa deve ter seu início atrasado. Mais eventos de chuva extrema e também de seca são esperados, além de maior propensão à ocorrência de incêndios, que devem afetar a agricultura e biomas como o Pantanal e o Cerrado. No Sudeste e no Sul, onde vive 60% da população brasileira, tem ocorrido um aumento claro no nível de pluviosidade média e de episódios extremos de chuvas desde os anos 1960, tendências que devem se intensificar nas próximas décadas caso o planeta aqueça 2 ºC. “As projeções para aumento de temperatura são sempre mais confiáveis do que as de chuva”, compara Alves. Isso porque o aquecimento do clima é um processo mais direto, que depende de menos variáveis do que a formação de nuvens e chuvas. “Modelar a formação das nuvens na atmosfera e suas interações com os demais parâmetros do clima ainda é um desafio”, comenta Marengo.

Não é por acaso que há mais e melhores informações sobre aumento de temperatura do que de pluviosidade em praticamente todas as regiões do globo. No atlas do IPCC, que divide os setores habitados dos continentes em 45 áreas, aparecem 41 regiões que tiveram aumento de ondas de calor desde 1950 até hoje. Na maior parte dessas áreas, há um grau de certeza alto ou médio de que as atividades humanas contribuíram para a ocorrência desse fenômeno. Para episódios de chuvas fortes, apenas em 19 regiões foi constatado nesse período um aumento de eventos extremos, quase sempre com baixo grau de certeza de que o homem teve algum papel em determinar essa tendência. Nas demais 26 regiões, não havia dados em quantidade ou com qualidade suficiente para estabelecer uma tendência. “O atlas deixa claro que a maior parte dos dados e estudos sobre clima se concentra nos países do hemisfério Norte. Precisamos investir mais em pesquisas sobre mudanças climáticas na América do Sul e no Brasil”, comenta Alves.

A linguagem do painel

O peso das afirmações feitas pelo IPCC é ponderado pelo emprego de duas formas de avaliação de dados e conclusões científicas, que podem ser usadas conjuntamente ou em separado. Uma na esfera mais qualitativa, que expressa o grau de confiança (ou certeza) sobre um achado, e outra de caráter mais quantitativo, baseada na probabilidade estatística de ocorrer um determinado resultado.

Há cinco graus de certeza: muito baixo, baixo, médio, alto e muito alto. Quanto maior o número de evidências sobre um tema na literatura científica e maior o grau de concordância entre os estudos, maior o nível de certeza. A chance estatística de um resultado ocorrer é expressa por meio destes termos: virtualmente certo (99-100% de probabilidade), extremamente provável (95-100%), muito provável (90-100%), provável (66-100%), mais provável do que não (50-100%) quase tão provável quanto não (33-66%), improvável (0-33), muito improvável (0-10%), extremamente improvável (0-5%), excepcionalmente improvável (0-1%).

Equipe eCycle

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