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Esse tipo de evento extremo tem se tornado mais frequente, intenso e duradouro nas últimas décadas

Por Marcos Pivetta – Revista Pesquisa FAPESP | As ondas de calor estão se tornando mais frequentes, mais intensas e mais duradouras. É assim em praticamente todo o mundo e a América do Sul e o Brasil não são exceção. Artigo publicado em fevereiro deste ano na revista Frontiers in Climate produziu uma série de indicadores que dão uma medida da escalada desse tipo de evento extremo no Brasil, Paraguai, nordeste da Argentina e sul da Bolívia.

A partir de dados dos serviços meteorológicos nacionais, os pesquisadores calcularam a incidência, a potência e a duração das ondas de calor em 10 cidades, cinco delas do Brasil (Manaus, Rio Branco, Brasília, Cuiabá e São Paulo), no período entre 1979 e 2023. Em todas as localidades, esse tipo de evento apresentou viés de alta em 2023, o segundo ano mais quente no planeta desde meados do século XIX, período considerado como representativo da era pré-industrial. Por dias, as temperaturas atingiram picos entre 35 graus Celsius (ºC) e 40 ºC.

Das cidades brasileiras analisadas no trabalho, Manaus, Rio Branco e Brasília foram as que apresentaram indicadores com maior aumento em termos de incidência do fenômeno climático. Nas capitais do Amazonas e do Acre, houve, respectivamente, 17 e 22 ondas de calor em 2023, praticamente o dobro da média anual registrada ao longo dos 45 anos do estudo. Na capital federal, a frequência dos episódios de calor elevado e persistente quase triplicou. No ano retrasado, houve 17 ondas de calor, ante uma média histórica de 5,9 eventos por ano. Em 2023, Cuiabá teve 14 ondas, São Paulo, 15, respectivamente, dois e três episódios extras em relação à média anual observada durante o quase meio século de dados produzidos pelo trabalho (ver quadro sobre as cidades brasileiras abaixo). Em quatro das outras cinco cidades sul-americanas (a argentina Las Lomitas, a paraguaia Mariscal Estigarribia, e as bolivianas San Ignacio de Velasco e San Jose de Chiquitos), a incidência de ondas de calor foi ainda maior, com pelo menos 23 eventos desse tipo em 2023.

Imagem: Reprodução Revista Pesquisa FAPESP

“As ondas de calor são um fenômeno natural, mas as mudanças climáticas aumentam sobretudo sua intensidade e duração”, diz o climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), principal autor do artigo. Em 2023, os eventos prolongados de calor extremo se estenderam por um mínimo de 4,7 dias em Brasília e 7,4 dias em Manaus, valores acima da média histórica das duas cidades, que era igual e se situava em 4,2 dias. Marengo está terminando um estudo semelhante, agora com dados de 2024, o ano mais quente da história recente, e os resultados apontam, como era de se esperar, na mesma direção.

O sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de 2021, indica que a intensidade e a frequência de dias mais quentes, inclusive das ondas de calor, estão aumentando desde os anos 1950 em escala global (os dias de frio acentuado estão diminuindo). Essa tendência é clara em mais de 80% do planeta.

Alguns trabalhos recentes sugerem que a América do Sul está entre as regiões mais suscetíveis à escalada dos eventos extremos de calor. Estudo publicado em abril de 2024 na Nature Reviews Earth & Environment mostra, por exemplo, que o continente, especialmente sua porção centro-norte, foi a área de terra firme do planeta que mais registrou ondas de calor em 2023. Essa parte da América do Sul teve entre 110 e 150 dias expostos a ondas de calor, mais de três vezes a média anual do período entre 1990 e 2020. A África foi o segundo continente com mais ondas de calor no ano retrasado.

Na América do Sul, durante esses dias seguidos de calor intenso em 2023, as temperaturas estiveram entre 0,5 ºC e 1 ºC acima do esperado no Peru, norte da Bolívia e Brasil, segundo o estudo. No Chile, no sul da Bolívia, Paraguai e Argentina, o aumento foi maior, entre 1 ºC e 3 ºC. “No Brasil, as áreas mais expostas às ondas de calor, inclusive no inverno e no início da primavera, foram a Amazônia, parte do Pantanal e o Sudeste”, comenta a climatologista Renata Libonati, coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ). “A situação foi ainda pior em 2024.” Ao lado de pesquisadores de outros continentes, a brasileira foi uma das autoras do artigo e, nesse momento, finaliza um novo trabalho, com a mesma equipe internacional, com dados de 2024.

Um dia muito quente, ainda que acima do esperado, não configura uma onda de calor. Embora não haja consenso absoluto sobre como definir esse tipo de fenômeno extremo, um ponto em comum de todas as abordagens é que uma onda de calor deve apresentar temperaturas muito acima da média histórica, ou de algum outro valor de referência, durante pelo menos três dias consecutivos. Algumas definições são mais rígidas na questão da duração e adotam cinco dias seguidos de temperaturas muito elevadas como o mínimo necessário para caracterizar o fenômeno.

Vários estudos científicos, como o da Frontiers in Climate, usam o conceito de onda de calor como sendo um período de ao menos três dias seguidos com temperatura máxima superior a 90% dos registros históricos ao longo de um período de 30 anos de uma localidade. Às vezes, o valor da temperatura mínima diária também é levado em conta para classificar esse tipo de evento extremo. “Por essa definição, não há um número mágico que nos permita dizer que há uma onda de calor sempre que a temperatura se mantém, por exemplo, 4 °C acima de um certo valor”, comenta Marengo.

Os serviços nacionais de meteorologia e de clima tendem a usar um conceito de onda de calor diferente do empregado pelos trabalhos científicos. “Adotamos a norma da Organização Meteorológica Mundial (WMO), em que uma onda de calor se configura pela persistência, ou seja, ocorre quando as temperaturas máximas diárias ultrapassam em pelo menos 5 °C a média mensal durante, no mínimo, cinco dias consecutivos”, explica a meteorologista Danielle Barros Ferreira, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). “Por exemplo, a média da temperatura máxima na cidade de São Paulo no mês de fevereiro é de 29 ºC. Portanto, para um evento ser uma onda de calor é necessário que as temperaturas máximas permaneçam no mínimo cinco dias com valores de 34 ºC ou mais.” A média da temperatura máxima é calculada a partir da chamada normal climatológica, um período de 30 anos considerado como representativo das condições atmosféricas recentes de uma região. No caso do Inmet, que passou a contabilizar ondas de calor apenas em janeiro de 2023, a normal climatológica atual abrange o período de 1991 a 2020.

As diferentes definições do conceito de onda de calor explicam números discrepantes entre estudos que tentam flagrar a dimensão desses eventos extremos e, por vezes, limitam a comparação de seus resultados. A ausência de séries históricas mais prolongadas e buracos nos dados existentes também dificultam determinar com precisão qual era a frequência e a intensidade desse fenômeno no passado mais remoto. Um relatório divulgado no fim de 2023 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) é um dos poucos trabalhos que analisaram as ondas de calor no Brasil ao longo de um período mais longo, de 60 anos. O trabalho adotou uma metodologia semelhante à descrita no artigo coordenado por Marengo, mas definiu uma onda de calor como um período mais longo, com pelo menos seis dias seguidos com temperaturas máximas elevadas.

A partir de dados de 1.252 estações meteorológicas espalhadas pelo país, o estudo do Inpe concluiu que houve, entre 1961 e 1990, uma média de 7 dias por ano com ondas de calor no Brasil. Entre 2011 e 2020, o número subiu para 52 dias por ano. “Ao longo das últimas décadas, houve um aumento gradual das ondas de calor em praticamente todo o Brasil”, comenta o climatologista Lincoln Muniz Alves, do Inpe, um dos autores do trabalho. “Apenas a região Sul, a metade sul do estado de São Paulo e o sul de Mato Grosso do Sul não apresentaram essa tendência.”

Chafariz em dia quente de novembro de 2023 no Vale do Anhangabaú, em São Paulo | Foto: Paulo Pinto/Reprodução Agência Brasil

O mecanismo central que gera, por dias, temperaturas muito acima do esperado é conhecido. É o chamado bloqueio atmosférico. Um sistema de alta pressão, que empurra o ar de cima para baixo, fica parado por dias sobre uma região e altera toda a circulação atmosférica local. A anomalia impede a penetração de frentes frias, que normalmente trazem chuvas. “Uma bolha de ar quente se forma sobre essa área”, compara o meteorologista Tércio Ambrizzi, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “Nessas condições, é comum ocorrer o que chamamos de um evento extremo composto, com uma onda de calor associada a uma seca prolongada.”

O aquecimento global aumenta a ocorrência de bloqueios atmosféricos em certas regiões do planeta. Isso em parte explica a disseminação das ondas de calor. Há também fatores regionais, como o fenômeno El Niño, uma oscilação natural e periódica do clima caracterizada pelo aquecimento anormal das águas superficiais da porção centro-leste do oceano Pacífico. O El Niño eleva as temperaturas na América do Sul e altera o padrão de chuvas. Em 2023, quando apareceu com força, o fenômeno foi apontado como uma das causas das grandes secas e do calorão na Amazônia naquele ano. O grau de urbanização de uma região também favorece a ocorrência de eventos extremos ligados a altas temperaturas. Cidades tomadas por concreto, cimento e asfalto são mais quentes do que zonas rurais e trechos permeados por áreas verdes. Esse é o conhecido efeito ilha de calor.

Os episódios prolongados de temperaturas extremamente elevadas não causam apenas desconforto térmico. Provocam também prejuízos econômicos e sociais. No início deste ano, por exemplo, aulas escolares foram interrompidas por alguns dias em Porto Alegre e no Rio de Janeiro devido a temperaturas persistentes na casa dos 40 ºC. “Não estamos preparados para lidar com as ondas de calor, ainda mais por sermos um país tropical, em que parece natural ou normal os dias serem quentes”, comenta Libonati. “Mas as ondas de calor têm um efeito silencioso e podem levar à morte, sobretudo crianças, idosos e gestantes.”

Não há perspectiva de esse cenário mudar tão cedo. Os últimos 10 anos, de 2015 a 2024, foram os 10 mais quentes desde que começaram as medidas sistemáticas da temperatura média do planeta, em meados de século XIX. Durante todo o ano passado, o aquecimento global foi, pela primeira vez na história recente, 1,5 ºC maior do que o valor de referência do período pré-industrial. Nesse contexto, mais e mais fortes as ondas de calor são esperadas. “Temos de limitar o aquecimento global e minorar o máximo possível os efeitos dessa situação”, pondera Marengo.

Este texto foi originalmente publicado pela Revista Pesquisa FAPESP, de acordo com a licença CC BY-SA 4.0. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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