Estudos traçam um cenário preocupante para a biodiversidade recifal nas próximas décadas, com possível perda de espécies e mudanças ecossistêmicas profundas
O agravamento do aquecimento global tem implicações trágicas para os recifes de coral no Brasil e no mundo. Mesmo que a humanidade, por meio de um esforço coletivo de transformações sociais, políticas e econômicas sem precedentes, consiga segurar o aquecimento em 2 graus Celsius (ºC) até o final deste século — como objetiva o Acordo de Paris —, as mudanças climáticas e oceânicas causadas por esse aumento de temperatura ainda terão potencial para exterminar quase 100% dos recifes de coral de águas tropicais existentes no oceano, segundo pesquisadores. Em outras palavras: os recifes de coral, como os conhecemos hoje, podem deixar de existir como ecossistemas funcionais no planeta Terra já nas próximas décadas, com consequências gravíssimas para a biodiversidade marinha e para os milhões de pessoas ao redor do mundo que dependem dela para a sua sobrevivência.
Para os cientistas que trabalham com o tema, isso não é novidade; já faz alguns anos que pesquisadores vêm alertando sobre a vulnerabilidade dos recifes de coral às mudanças climáticas, sobre o aumento dos eventos de branqueamento (quando os corais ficam brancos, em função da elevação da temperatura da água) e sobre o risco de um colapso generalizado desses ecossistemas ao redor do mundo, se a tendência atual de aquecimento global não for rapidamente revertida. Uma série de estudos e relatórios publicados recentemente, porém, torna esse alerta mais claro, detalhado e urgente do que nunca.
O sexto Relatório de Análise (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC), divulgado no início deste mês, informa que a temperatura média de superfície da Terra já aumentou 1,1 ºC desde o início da era industrial, em função de atividades humanas, e é muito provável que esse aumento ultrapasse 2 ºC já nos próximos 20 a 40 anos, se as coisas seguirem como estão. A possibilidade de frear o aquecimento em 1,5 ºC é pequena, mas ainda existe, dependendo de reduções drásticas e imediatas nas emissões de gases de efeito estufa oriundas de atividades humanas para a atmosfera.
“Dois graus de aquecimento, para os recifes de coral, é genocídio. Você entra num estado de stress térmico constante; e aí a mortalidade vai aumentar expressivamente. Não tem coral que aguente”
Meio grau a mais no termômetro, neste caso, representa uma diferença enorme: com 2 ºC de aquecimento, cerca de 99% dos recifes de corais de águas quentes (tropicais) do mundo deverão desaparecer, comparado a 70% a 90%, no cenário de 1,5 ºC, segundo um relatório especial do IPCC, publicado em 2018. “Dois graus de aquecimento, para os recifes de coral, é genocídio”, resume o oceanógrafo Miguel Mies, pesquisador associado do Instituto de Oceanografia da USP (IO) e coordenador de pesquisas do Projeto Coral Vivo. Nesse cenário, eventos globais de branqueamento em massa de corais, que até recentemente costumavam ser esporádicos, passarão a ocorrer todos os anos a partir de 2045, segundo projeções de um relatório especial do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), publicado em novembro de 2021. “Você entra num estado de stress térmico constante; e aí a mortalidade vai aumentar expressivamente. Não tem coral que aguente.”
É um processo em andamento. Estudos sugerem que metade da cobertura de corais do planeta já desapareceu nos últimos 30 anos.
“Agora, mais do que nunca, os ecossistemas de recifes de coral são uma prioridade ambiental global, exigindo atenção imediata, dadas as ameaças do desenvolvimento insustentável e das mudanças climáticas”, diz um relatório da Sociedade Internacional de Recifes de Corais (ICRS), divulgado em julho, com o objetivo de subsidiar tecnicamente as próximas discussões sobre o tema no âmbito das Nações Unidas. “O próximo ano e a próxima década oferecem, provavelmente, a última chance para que entidades internacionais, nacionais, regionais e locais trabalhem de forma sinérgica para mudar a trajetória dos recifes de coral de ‘rumo ao colapso mundial’ para ‘caminhando para uma recuperação lenta, mas constante’.”
Um relatório conjunto, divulgado em junho pelo IPCC e pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), também aponta os recifes de coral como um dos ecossistemas mais ameaçados do planeta, cuja proteção é prioritária tanto para preservação do clima quanto da biodiversidade global.
Cenário nacional
“O aquecimento global está aí, acontecendo, e nós temos que ter uma estratégia de sobrevivência, tanto para nós mesmos quanto para as outras espécies”,
No Brasil, os impactos das mudanças climáticas sobre os recifes começaram a se expressar de forma mais drástica nos últimos dez anos, em consonância com a tendência mundial de aumento na frequência, duração e intensidade dos eventos de branqueamento em massa. Ainda que os corais brasileiros pareçam ser naturalmente mais resistentes e resilientes do que os de outras regiões do planeta (resultando em taxas menores de mortalidade por branqueamento, pelo menos até agora), as previsões para as próximas décadas são tão preocupantes aqui quanto no resto do mundo.
Certos de que as mudanças climáticas e ambientais irão se agravar bastante, ainda, até o final deste século (mesmo que o teto de 2 ºC de aquecimento do Acordo de Paris seja respeitado), muitos cientistas estão empenhados em projetar como essas mudanças deverão afetar os recifes de coral brasileiros, na expectativa de que, com esse conhecimento em mãos, seja possível adotar estratégias mais efetivas de prevenção e mitigação desses impactos. “O aquecimento global está aí, acontecendo, e nós temos que ter uma estratégia de sobrevivência, tanto para nós mesmos quanto para as outras espécies”, ressalta ao Jornal da USP o professor Tito Lotufo, do IO, especialista em biodiversidade e ecologia recifal.
Uma pesquisa conduzida em seu laboratório buscou modelar exatamente isso: como três espécies-chave de corais construtores de recifes no Brasil (Mussismilia hispida, Montastraea cavernosa e Siderastrea sp.) deverão responder às mudanças climáticas que estão por vir até 2100, considerando três possíveis cenários de emissões (um bem otimista, um intermediário, e outro, bem pessimista). Os resultados mostram que todas elas sofrerão alterações significativas nas suas áreas suscetíveis de ocorrência, “independentemente do cenário”, segundo o biólogo Silas Principe, aluno de doutorado de Lotufo, no Laboratório de Biologia Recifal do IO-USP, e primeiro autor do trabalho, recentemente publicado na revista Frontiers in Marine Science. “A situação é muito crítica”, alerta ele.
Biodiversidade recifal ameaçada
Mudança no número de espécies de corais construtores de recifes prevista para 2100, considerando três espécies*, em três cenários de aquecimento global**
“Quando você aumenta a temperatura, isso tem um efeito cascata em todo o ambiente; muda tudo, porque uma variável está presa à outra”
As projeções levam em conta uma série de fatores ambientais que influenciam a capacidade desses corais de sobreviverem e se desenvolverem num determinado local, como temperatura, salinidade, transparência e pH da água — fatores que serão alterados, de uma forma ou de outra, pela progressão do aquecimento global nas próximas décadas. “Quando você aumenta a temperatura, isso tem um efeito cascata em todo o ambiente; muda tudo, porque uma variável está presa à outra”, explica Principe.
As três espécies foram selecionadas em função da sua importância para a construção de recifes de coral e outros ambientes recifais na costa brasileira. A mais impactada, segundo as previsões, seria a Mussismilia hispida, uma espécie de coral-cérebro endêmica do Brasil (que só existe aqui), com perdas significativas de habitat em todos os cenários avaliados — inclusive o mais otimista. Num cenário mais amplo, o estudo prevê que algumas áreas deverão se tornar até mais convidativas a algumas dessas espécies, potencialmente abrindo novos habitats para elas, enquanto que outras áreas, onde elas já ocorrem hoje, se tornarão mais hostis ou até mesmo inabitáveis. A região mais impactada deverá ser o Banco dos Abrolhos, no sul da Bahia, que abriga a maior concentração de recifes de coral e biodiversidade marinha do Atlântico Sul. No cenário mais pessimista, as três espécies ficam impossibilitadas de sobreviver ali.
Construtores de recifes
Mesmo a perda de uma única espécie pode abalar significativamente as estruturas (físicas e ecológicas) de um ecossistema recifal, alertam os pesquisadores. Especialmente no caso dessas espécies construturas, que são as responsáveis, literalmente, por construir os recifes e dar a eles uma estrutura tridimensional, capaz de abrigar diversas outras formas de vida. E especialmente, também, no caso do Brasil, que possui um número muito restrito desse tipo de coral.
Ainda que haja uma expansão das áreas suscetíveis de ocupação em algumas regiões, os cientistas alertam que não há nenhuma garantia de que as espécies afetadas serão capazes de migrar, se estabelecer ou se desenvolver de forma satisfatória nesses novos habitats. Em outras palavras: o fato de uma área passar a oferecer condições mais adequadas para o desenvolvimento de uma determinada espécie não significa que um novo recife de corais vai se formar ali para substituir o que foi perdido em outro lugar — até porque essas estruturas levam séculos ou milênios para serem construídas. Além das questões climáticas e oceanográficas, há também uma série de fatores locais, como pesca predatória, poluição e turismo descontrolado, que impactam a capacidade de sobrevivência desses corais e precisam ser controlados, para garantir que eles tenham uma chance mínima de resistir aos efeitos devastadores do aquecimento global.
Estudos publicados recentemente por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) também projetam um cenário dramático, com impactos sistêmicos das mudanças climáticas sobre toda a biodiversidade marinha associada a recifes de coral no Brasil nas próximas décadas. “Os recifes não vão desaparecer; a estrutura física deles continuará lá — pelo menor por enquanto —, mas com muito menos vida ao redor, como se fossem cidades fantasmas”, diz o professor Guilherme Longo, coordenador do Laboratório de Ecologia Marinha da UFRN.
Impacto profundo
Os impactos das mudanças climáticas sobre os oceanos são muitos. Além do aumento de temperatura e aumento da frequência de ondas de calor marinho, um problema que afeta diretamente os corais é a acidificação da água do mar, causada pela absorção de dióxido de carbono atmosférico pelo oceano. (Felizmente para nós, seres humanos, o oceano absorve naturalmente grande parte do excesso de CO2 que os seres humanos lançam na atmosfera, caso contrário a taxa de aquecimento global já seria muito maior. Mas isso tem consequências perversas para a vida marinha e, em especial, para os recifes de coral.)
Essa acidificação causa, ao final de uma série de reações químicas, uma redução na quantidade de carbonato disponível na água do mar para os corais construírem seus esqueletos de carbonato de cálcio, que são a base estrutural dos recifes. Consequentemente, os corais diminuem sua taxa de crescimento — ou param de crescer — e ainda podem ter seus esqueletos lentamente “corroídos” pelo pH mais ácido da água, fragilizando o recife como um todo e tornando-o mais vulnerável à destruição por tempestades e outras atividades de impacto.
Segundo um estudo de referência, publicado em 2007 por pesquisadores australianos, na revista Science, as áreas favoráveis à formação de recifes de coral nesse quesito praticamente desaparecem do oceano a partir de uma concentração de 500 partes por milhão (ppm) de CO2 na atmosfera. (Atualmente, essa concentração está em torno de 410 ppm, segundo o último relatório do IPCC, comparado a 280 ppm na era pré-industrial.)
Outro estudo, que acaba de ser publicado na revista Scientific Reports, prevê que 10% a 82% da superfície do oceano deverá sofrer “mudanças extremas” nas suas condições de temperatura, pH e concentração de aragonita (a forma específica de carbonato que é utilizada pelo corais) até 2100, dependendo das concentrações de CO2 na atmosfera. Mais do que isso: entre 35% e 95% dos “climas oceânicos” existentes hoje poderão desaparecer por completo do planeta.
“Climas novos, sem análogos na história evolutiva recente, podem deixar as espécies em um cenário de ‘adaptação ou morte’. Além disso, novos climas podem causar uma reorganização das comunidades, incluindo novas associações de espécies, desagregação da comunidade, novas comunidades, extinção e outras surpresas ecológicas inesperadas”, escrevem os autores do estudo, das universidades Northeastern e de Maryland, nos EUA.
Águas inóspitas
Quanto maior a concentração de CO2 na atmosfera, menor a disponibilidade de carbonato no oceano; elemento essencial para a formação e consolidação dos recifes de coral.
Os números brancos mostram a concentração de CO2 na atmosfera, em partes por milhão (ppm). Azul e roxo representam áreas com uma saturação mínima de aragonita (3,25) necessária para o crescimento de recifes de corais de águas rasas (pontos rosas). – Aragonita é a forma na qual os corais mineralizam carbonato de cálcio para construir seus esqueletos. Acima de 500 ppm, as áreas propícias à formação de recifes de coral quase que desaparecem.
Operação resgate
Com tantas adversidades potencialmente catastróficas pela frente, o esforço para resguardar os recifes de coral da destruição climática pode parecer uma missão impossível; mas cientistas e ambientalistas estão longe de jogar a toalha.
“Enfrentar o desafio de garantir um futuro com recifes de coral funcionais é assustador, porém factível”, diz o relatório da ICRS, assinado por 17 especialistas, de diversos países — incluindo a brasileira Raquel Peixoto, professora licenciada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atualmente na Universidade King Abdullah de Ciência e Tecnologia (KAUST), na Arábia Saudita. As prioridades, segundo o documento, são: reduzir a ameaça das mudanças climáticas globais (por meio da redução de emissões de gases de efeito estufa); melhorar as condições locais de conservação (com redução da poluição, da pesca predatória e de outros fatores de pressão); e “investir na ciência da restauração e na restauração ativa de recifes de coral”.
“Não podemos reparar todos os danos do passado nos próximos dez anos. No entanto, evitando danos irreversíveis, podemos lançar as bases para o progresso futuro e começar a reparar a degradação desses ecossistemas extremamente valiosos”, diz o relatório. “Há um consenso crescente de que as abordagens atuais de pesquisa e práticas de conservação não são mais suficientes, e os cientistas dos recifes de coral estão cada vez mais em busca de inovações para melhorar as perspectivas para os recifes de coral.”
Vários esforços de restauração de recifes de coral já estão em curso ao redor do mundo, envolvendo diferentes estratégias e com diferentes taxas de sucesso. Entre elas, o transplante de colônias de coral cultivadas em aquários para recifes na natureza (como se fossem mudas de plantas num projeto de reflorestamento — com a ressalva de que os corais são animais, não vegetais); a liberação de larvas de corais sobre um ecossistema recifal danificado (como se faz com larvas de peixes numa represa, por exemplo); ou a instalação de recifes artificiais submersos, para facilitar o crescimento de novas colônias. Outras estratégias, ainda experimentais, incluem melhoramento genético e inoculação de corais com microrganismos benéficos (probióticos), para torná-los mais resistentes a ameaças diversas.
Seja qual for a estratégia, o sucesso dela a médio e longo prazo dependerá de um controle das ameaças climáticas e dos impactos locais causados pelo homem. Afinal de contas, não adianta restaurar um prédio apenas para ele ser demolido de novo no ano seguinte. “Implementar ações ousadas para reduzir os estressores antrópicos como parte de uma ampla estratégia de gestão é essencial para melhorar as condições do recife necessárias para que a restauração do recife seja bem-sucedida”, diz um relatório especial do Pnuma sobre o tema, publicado em janeiro.
É um investimento que vale a pena: presentes em mais de 100 países, os recifes de coral fornecem sustento direto para mais de meio bilhão de pessoas ao redor do mundo e têm um valor econômico global estimado em US$ 10 trilhões ao ano, considerando todas as atividades econômicas associadas (como o turismo e a pesca) e os serviços ecossistêmicos essenciais que eles fornecem ao ser humano (como produção de alimento e proteção da costa), segundo pesquisadores.