Ambientalistas responsáveis por duas das mais renomadas entidades conservacionistas de animais silvestres do Brasil estão em estado de alerta. Apreensões recentes de araras-azuis-grandes (Anodorhynchus hyacinthinus) e micos-leões-dourados (Leontopithecus rosalia) trouxeram novamente o fantasma do tráfico de fauna para as mesas de trabalho do Instituto Arara Azul e da Associação Mico-Leão-Dourado (AMLD). O mercado ilegal desses animais esteve entre as principais causas que, até a década de 1980, quase levaram à extinção essas espécies.
O problema do tráfico desses animais nunca desapareceu, mas foi bastante reduzido com um intenso trabalho promovido por essas ONGs para sensibilizar o poder público e as comunidades que vivem nas regiões onde habitam a ave e o pequeno primata. As instituições conseguiram aglutinar vários atores sociais na proteção de duas espécies que se tornaram símbolos da biodiversidade brasileira.
O aumento das apreensões de araras-azuis-grandes com traficantes de fauna após a saída da espécie da Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção, em 2014, deixou a pesquisadora e presidente do Instituto Arara Azul, Neiva Guedes, em alerta. “A punição prevista para o tráfico de animais de espécies em extinção é mais rigorosa. No contexto do tráfico de araras-azuis, estamos falando de grupos especializados, com poucas pessoas envolvidas. Portanto, a saída da espécie da lista facilitou a vida desses traficantes”, afirma Neiva.
Outra questão destacada pela ambientalistas é a mensagem passada para a população e aos órgãos de fiscalização quando uma espécie deixa de ser classificada como ameaçada de extinção. “A saída da lista não é um incentivo ao tráfico, mas passa-se a fazer “vista grossa” por causa do raciocínio de que, se houve aumento do número de araras-azuis, não é preciso mais tanto empenho dos órgãos de fiscalização e da população mobilizada para vigiar as aves”, salienta.
A Anodorhynchus hyacinthinus estava nas duas listas anteriores de espécies da fauna ameaçadas de extinção do Ministério do Meio Ambiente, a de 1989 e a de 2003. Na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação para a Natureza (IUCN, na sigla em inglês), a espécie ainda consta como ameaçada, estando na categoria “vulnerável”. Para a Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), a arara-azul-grande está relacionada no Apêndice 1, o que significa que o comércio internacional dessas aves está proibido, exceto quando a transação for para fins não comerciais.
Ainda em 2014, recorda Neiva, logo após o anúncio da atual lista nacional de espécies ameaçadas, que não inclui a arara-azul-grande, policiais apreenderam uma fêmea adulta e dois ovos na região do município de Bela Vista (MS), na fronteira com o Paraguai. A ave acabou morrendo e os ovos não puderam ser aproveitados para reprodução, pois não houve cuidados durante o transporte até o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras), em Campo Grande.
Outro caso que chamou a atenção da ambientalista foi registrado em 20 de outubro de 2017, quando uma chinesa de 25 anos acabou detida ao desembarcar no aeroporto de Taipé, capital de Taiwan, com 49 ovos de araras-azuis-grandes escondidos em uma bagagem de mão com dispositivo térmico – os ovos estavam com embriões. A mulher afirmou ter um tio residente no Paraguai, onde teria embarcado. Esse chinês seria um dos principais responsáveis pelo envio de araras, papagaios, tucanos e até aves de rapina para seu país de origem.
Com a apreensão de ovos em Taiwan em 2017, investigações foram realizadas para tentar identificar a forma como traficantes chineses de aves estariam, a partir do Paraguai, agindo em território brasileiro. As informações levantadas indicam que Bela Vista, cidade do Mato Grosso do Sul situada junto à vizinha paraguaia Bella Vista Norte, seria o ponto de travessia de ovos e animais para fora do país. As áreas urbanas dos dois municípios são separados pelo Rio Apa e ligadas por uma ponte.
O protagonismo de Bela Vista na rota de tráfico de araras-azuis foi reforçado este ano. Em 25 de setembro, dois paraguaios foram surpreendidos nessa cidade por uma equipe da Polícia Militar transportando uma arara-azul fêmea adulta dentro de um saco. A dupla, que reside em Bella Vista Norte e estava em um carro sem placas, informou ter capturado a ave em uma fazenda do lado brasileiro. Ela foi solta após ter sido examinada (vídeo abaixo).
Além da intensificação do tráfico, a captura de fêmeas adultas reforçou a preocupação de Neiva. Tradicionalmente, os traficantes de araras-azuis-grandes trabalham com ovos e filhotes, pela facilidade em transportar. “Agora estão pegando de tudo. Ao retirar uma fêmea em idade reprodutiva, perde-se várias gerações da espécie. As fêmeas demoram de sete a nove anos para começar a se reproduzir e o farão por uns 28 anos. O impacto é muito maior se comparado ao roubo de ovos”, salientou.
A Polícia Militar Ambiental do Mato Grosso do Sul afirmou não ser comum o tráfico de araras-azuis-grandes na região de Bela Vista. De acordo com o tenente-coronel Ednilson Paulino Queiroz, do Batalhão de Polícia Militar Ambiental do Mato Grosso do Sul, “o fato de estarem levando somente um animal em período reprodutivo significa que não são elementos voltados para tráfico da espécie. Até porque eram paraguaios e para traficar a espécie não precisariam entrar no Brasil, tendo em vista que a ave existe lá.”
A Polícia Federal e o Ibama foram consultados sobre o problema e não se manifestaram.
Dedicada desde 1989 à conservação das araras-azuis-grandes, Neiva tem razão para estar preocupada quando o assunto é o tráfico da espécie. Até a década de 1980, estima-se que mais de 10 mil araras-azuis foram retiradas da natureza para abastecer a demanda do comércio ilegal de fauna, com destaque ao mercado internacional. Essa exploração e a transformação do habitat dessas aves em áreas agricultáveis, pastagens e em cidades, além da caça para coleta de penas para artesanato indígena, fizeram com que a espécie, que originalmente era encontrada por quase todo o Brasil, entrasse em forte declínio populacional.
Em 1987, estimou-se a existência de 2.500 a 3 mil araras-azuis-grandes vivendo livres no Pantanal brasileiro e em áreas vizinhas do Paraguai e da Bolívia, no norte do Brasil (Pará) e no Maranhão, Bahia, Piauí, Tocantins, Goiás e Minas Gerais. No início da década de 1990, esse número era de 1.500 para o Pantanal. E, para piorar a situação, essas aves têm uma baixa taxa de natalidade. Essa característica fez com que a espécie não conseguisse manter quantitativamente sua população frente à velocidade de retirada de animais que estava sendo imposta pelo homem e à alteração de seu habitat.
Com um trabalho de conservação intenso no Pantanal, onde está a maior população de araras-azuis-grandes, estima-se que hoje vivam livres cerca de 6.500 exemplares da espécie. Apesar do aumento da quantidade de aves, Neiva afirma que a retirada da espécie da lista de fauna ameaçada foi uma “jogada de governo” que a surpreendeu. “A lista brasileira estava aumentando muito durante seu processo de elaboração, então precisavam fazer uma reavaliação de quais espécies poderiam ser retiradas. Aí lançaram a lista dando a notícia boa da saída de algumas espécies ”, explicou.
Neiva afirma que está chegando o momento de fazer uma nova revisão da lista de espécies ameaçadas e a arara-azul-grande deverá voltar a integrá-la. Ela relata que o recente aumento do desmatamento, as mudanças climáticas e as queimadas deste ano gerarão fortes impactos negativos na conservação da ave, que agora também volta a ser assombrada pelo tráfico de fauna.
Assim como aconteceu com as araras-azuis-grandes, os micos-leões-dourados quase foram extintos no sáculo passado. Na década de 1960, estimativas indicavam a existência de somente 200 desses primatas vivendo livres na natureza. A derrubada da Mata Atlântica fluminense e a exportação de animais para criação doméstica e zoológicos foram identificadas como as principais causas do problema.
De acordo com o secretário-executivo da Associação Mico-Leão-Dourado, Luis Paulo Ferraz, a articulação internacional de conservacionistas e zoológicos para a soltura de micos-leões-dourados que viviam em cativeiro na natureza, desenvolvida a partir de 1984, foi fundamental para reduzir o tráfico da espécie. “O manejo da espécie em cativeiro, que incluía a cessão de animais de um zoológico para outro, contribuiu para reduzir também os preços e o comércio pelo tráfico”, explicou.
Após décadas de trabalho intenso, que incluiu as solturas e intensificação na fiscalização, o problema do comércio ilegal deixou de estar entre as principais preocupações dos conservacionistas que atuam com o mico-leão-dourado. Atualmente, o foco, inclusive da AMLD, é a recuperação do habitat da espécie, que hoje conta com cerca de 2.500 animais vivendo livres na natureza. A meta a ser atingida é 25 mil hectares de florestas protegidas e conectadas.
Ferraz afirma que ainda é cedo para afirmar que está ocorrendo um aumento no tráfico de micos-leões-dourados. “Os casos recentes nos deixam preocupados com a possibilidade de que um processo como esse possa voltar, principalmente no contexto atual, com o crescimento da pobreza e da violência, a crise econômica e a fragilização dos órgãos ambientais e de fiscalização. A política desse governo não contribui para a proteção dos recursos naturais”, afirma.
Diferentemente do que ocorria no passado, em que o tráfico de micos-leões-dourados era voltado para o mercado externo, as recentes apreensões indicam a prevalência do comércio dentro do Brasil.
Em 25 de julho de 2017, a PM Ambiental paulista encontrou 19 pequenos primatas, entre eles dois micos-leões-dourados, em um imóvel no município de Embu das Artes. Uma mulher foi detida e houve a apreensão de listas de fornecedores e compradores de animais, aparato para microchipagem e notas fiscais falsificadas. No mesmo ano, um casal da espécie foi encontrado em um pet shop de Maringá (PR), onde estava sendo vendido.
Desmatamento e invasões por grileiros de trechos do Parque Natural Municipal do Mico-Leão-Dourado, localizado em um distrito de Cabo Frio (RJ), têm causado problemas para o grupo desses pequenos primatas que vive no local. De acordo com a prefeitura, “em seis meses, foram encontrados quatro micos adultos mortos, todos com sinais de maus-tratos, sendo que um deles foi morto com um tiro. Os animais foram mortos com a intenção de eliminar a fiscalização do local e, com isso, facilitar a invasão da área para parcelamento de lotes.”
No meio desse conflito entre o poder público e os invasores, já houve registro de captura de micos para tráfico. Em 15 de agosto de 2020, uma denúncia anônima informou a prefeitura que haveria dois animais em um imóvel próximo ao parque e que eles seriam levados para venda na conhecida feira do município fluminense de Duque de Caxias – um dos principais centros de tráfico de fauna da região.
Fiscais da prefeitura e policiais militares foram ao local indicado e encontraram os micos. Um deles morreu durante a operação. Dois homens foram detidos e 50 pássaros também acabaram apreendidos.
Em 17 de setembro, uma operação organizada pelo Ministério Público de Minas Gerais contra o tráfico de fauna no Estado apreendeu 116 animais, incluindo três micos-leões-dourados que estavam em um zoológico irregular em Caratinga (MG). Um quarto animal fugiu, sendo capturado em outubro.
A Polícia Federal informou não ter investigações em curso envolvendo tráfico de micos-leões-dourados. O Ibama não se manifestou. A Polícia Militar do Rio de Janeiro esclareceu não ter realizado apreensões de animais da espécie nos últimos dois anos.
“Não é uma situação que nos permita afirmar que estamos vivendo uma nova onda de tráfico, mas essas diversas ocorrências nos deixaram preocupados, especialmente no atual contexto social, econômico e político do Brasil. Nada disso acontece de forma isolada”, avalia Ferraz.
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