Áreas privadas de conservação no Cerrado poderiam preservar até 25% dos hábitats

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Por Sarah Schmidt em Pesquisa Fapesp | As reservas legais e Áreas de Proteção Permanentes (APP) que ficam dentro de propriedades privadas do Cerrado brasileiro poderiam proteger até um quarto da área dos hábitats de 103 espécies de animais ameaçadas de extinção, como o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e a onça-pintada (Panthera onca). É o que sugere um estudo de pesquisadores brasileiros publicado nesta quinta-feira, 20/04, na revista Science. “A pesquisa dimensiona, pela primeira vez, o potencial que essas áreas privadas têm de auxiliar na manutenção da biodiversidade”, observa o ecólogo Paulo De Marco Júnior, da Universidade Federal de Goiás (UFG), principal autor do artigo. Os dados também apontaram áreas prioritárias para restauração, localizadas, em sua maioria, na região sul do Cerrado, no estado de São Paulo.

Segundo determina a Lei de Proteção da Vegetação Nativa do Brasil, de 2012, que substituiu o antigo Código Florestal, além de as propriedades rurais privadas precisarem manter uma porcentagem de vegetação nativa – no Cerrado, esse total varia de 20% a 35% –, também devem declarar onde elas estão, com dados georreferenciados, por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Há ainda a obrigação de que essas áreas sejam restauradas, caso estejam deterioradas.

Essas informações são importantes especialmente em um cenário acelerado de desmatamento da vegetação nativa do segundo maior bioma do país. Neste século, com base em dados de 2021, ele ocorre a um ritmo de cerca de 0,5% de sua área ao ano, duas vezes superior ao observado na Amazônia. As terras desmatadas são transformadas em vastas pastagens e plantações de soja, milho, algodão e cana que estão alterando a ecologia e o clima do ecossistema, o que pode se tornar irreversível em algumas regiões. O Cerrado está hoje, nos meses de estiagem, até 4 graus Celsius (°C) mais quente do que nos anos 1960, além de mais seco. Em algumas regiões, também vem sofrendo queimadas mais intensas, duradouras e frequentes do que algumas décadas atrás.

Com base nas informações do CAR, os pesquisadores se debruçaram sobre dados de quase 685 mil propriedades. O estudo contou com colaboradores das universidades de Brasília (UnB), de Alcalá (Espanha), Estadual do Kansas (Estados Unidos), do Instituto Nacional de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e das organizações não governamentais Aliança da Terra e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

Imagem de satélite mostra o rio Tocantins (à dir) com a área urbana de Babaçulândia (Tocantins) em branco, áreas de pastagem em verde claro e floresta em verde escuro

Na primeira fase de análise, os pesquisadores somaram todas as áreas privadas de preservação que existem hoje no Cerrado, segundo o CAR, e simularam um cenário ideal em que elas estariam restauradas, conforme prevê a lei. Depois, sobrepuseram dados de modelagem matemática que projeta a probabilidade de distribuição das espécies em todo o bioma, com base nas condições climáticas, topográficas e dados de ocorrência das espécies. Para isso, adotaram como unidade de análise porções de terra maiores: células poligonais de 10 quilômetros (km) por 10 km. Nessa primeira etapa, 15% dos hábitats de animais ameaçados estariam dentro das propriedades privadas.

Em seguida, usando dados do Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas), eles descontaram as áreas em que as espécies ocorreriam se não estivessem ocupadas por atividades humanas como urbanização ou mineração. Neste segundo cenário, excluindo esses espaços, as áreas de proteção dentro de terras privadas se tornariam ainda mais relevantes, chegando a somar 25% dos hábitats para essas espécies ameaçadas.

“Esses dados são importantes porque a proteção da biodiversidade recai principalmente sobre o poder público, em diferentes esferas. Mas a pesquisa indica que o setor privado, principalmente os proprietários rurais, precisa participar mais desse processo de conservação ao cumprir o que a lei determina”, avalia o biólogo Ricardo Bomfim Machado, da UnB, que não integrou o grupo de pesquisa. “Esse dado é ainda mais urgente quando olhamos para os últimos quatro anos e vemos que a taxa de desmatamento no bioma voltou a crescer, superando 1 milhão de hectares por ano”, destaca.

O pesquisador é autor, com a bióloga Ludmilla Aguiar, de um comentário na mesma edição da Science analisando os principais resultados do estudo e contextualizando o cenário de destruição acelerada em que o Cerrado se encontra. “As propriedades privadas podem ser aliadas para que o mundo atinja a meta mundial estabelecida de proteger ao menos 30% da biodiversidade até 2030”, afirma Machado ao se referir ao acordo estabelecido na última Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP15), realizada em dezembro de 2022 em Montreal, no Canadá.

Os capins do Cerrado matogrossense alimentam extensos rebanhos de gadoJorge Ba / Wikimedia

Áreas prioritárias para a conservação
Em uma segunda etapa das análises do estudo conduzido por De Marco Júnior, os pesquisadores avaliaram as consequências caso as áreas que estão degradadas, agora dentro das reservas privadas, fossem de fato restauradas. A ideia foi sugerir zonas prioritárias para começar o processo de restauração, com base em sua relevância para a conservação das espécies mais ameaçadas e no tamanho da área protegida. Eles chegaram a 192 pontos prioritários. Os dados sugerem que, na meta mais ambiciosa, a restauração de 50% delas protegeria o hábitat de 49 espécies – quase metade de todas aquelas avaliadas. “A maior parte dessas áreas está no estado de São Paulo, onde há muitas espécies ameaçadas, por estarem em propriedades degradadas. Recuperar uma parte delas poderia gerar um grande efeito de conservação”, avalia o ecólogo.

Os pontos prioritários somam 145 mil hectares degradados que poderiam ser recuperados, com técnicas de restauração assistida, que usa poucas intervenções, a um custo estimado de US$ 60 milhões, o que corresponderia a aproximadamente 0,02% das arrecadações com exportações do agronegócio brasileiro em 2021, segundo destaca o estudo.

“Restaurar e usar de maneira sustentável as reservas legais de ecossistemas não florestais é um grande desafio, para o qual ainda buscamos caminhos”, afirma a engenheira florestal Giselda Durigan, do Instituto de Pesquisas Ambientais de São Paulo (IPA-SP), que não participou do estudo. Quando concedeu entrevista a Pesquisa FAPESP, por telefone, ela participava de um workshop na chapada dos Veadeiros, em Alto Paraíso de Goiás, discutindo justamente essa questão com participantes da academia, técnicos e integrantes do governo. “As técnicas que vêm sendo testadas experimentalmente estão muito longe de recriar os hábitats dos animais ameaçados. Restaurar o Cerrado é muito diferente e muito mais difícil do que restaurar florestas tropicais”, observa ela.

Segundo a pesquisadora, adotar técnicas de restauração assistida, quase natural, como cercar uma área para que o gado não entre ou aplicar herbicida nos eucaliptais de modo que novos exemplares dessas árvores não se desenvolvam, abrindo espaço para a rebrota da vegetação nativa, pode ser uma boa saída. O estudo da Science indica essa alternativa para os pontos prioritários de restauração.

Em Minas Gerais também é comum encontrar vacas em áreas degradadas de CerradoRafael Ribeiro / Wikimedia

“Temos visto que a regeneração natural funciona bem para áreas antes usadas para pastagem e silvicultura, como nas plantações de pinus e eucaliptos. Nesses casos, devagar o Cerrado vai voltando”, diz Durigan. Já para as amplas áreas usadas para a agricultura, a situação é mais complicada porque o solo é bastante modificado. “As plantas do Cerrado gostam de solo ácido, pobre em nutrientes. As plantações e intervenções no solo mudam totalmente sua característica. Quando é preciso restaurar, as sementes nativas têm dificuldade de se estabelecer e a restauração é muito difícil.”

Para o agrônomo Luciano Verdade, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena-USP), que também não participou do estudo, a pesquisa liderada por De Marco mostra um caminho que pode ser usado para o poder público para monitorar as áreas de conservação nas propriedades privadas e reforça a necessidade de se pensar em políticas públicas que incentivem esses produtores a perceberem os benefícios de cuidar desses espaços.

“O trabalho reforça o conceito de interdependência em um conflito que se supunha ser inevitável entre conservação e produção biológica. A conservação hoje depende dessas paisagens agrícolas, assim como as paisagens agrícolas dependem das áreas de conservação para serem sustentáveis. Elas se beneficiam de todos os serviços ecossistêmicos que as áreas preservadas trazem, como polinização”, observa. De Marco concorda: “Garantir a manutenção das áreas de conservação privadas pode ser uma complementação importante para o que já é feito em unidades de conservação públicas”, finaliza.

Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Equipe eCycle

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