Reaproveitamento de rejeitos da mineração, entulho de construção e demolição e outros resíduos reduz consumo de brita, areia natural e derivados de petróleo na pavimentação
Uma pista experimental de 425 metros (m) de extensão teve sua construção concluída em março na mina do Cauê, da mineradora Vale, em Itabira (MG). Nos próximos dois anos funcionará no local um campo de testes para avaliar o uso de uma areia, obtida a partir do reaproveitamento de rejeitos da mineração de ferro, como agregado para a pavimentação asfáltica. Agregados são materiais, como pedra britada, pedregulho, cascalho, rocha moída e areia, utilizados como base na construção civil. O uso da areia proveniente da mineração para essa finalidade pode estimular a economia circular com o reaproveitamento de um material que tradicionalmente é depositado em barragens ou em pilhas a seco de rejeitos e reduzir a necessidade de mineração de brita e areia natural. Economia circular é um modelo econômico que valoriza a redução do uso, a reutilização e a reciclagem de recursos naturais.
Segundo a Associação Nacional das Entidades de Produtores de Agregados para Construção (Anepac), cada quilômetro (km) de estrada pavimentada consome em média 9,8 mil toneladas (t) de agregados. “Numa avaliação preliminar, é possível substituir 7 mil t de agregados a cada km por areia de mineração”, estima o engenheiro civil Sérgio Pacifico Soncim, do curso engenharia da mobilidade, da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), responsável pelos testes em Itabira.
A Anepac calcula que em 2022 o Brasil deverá extrair 400 milhões de t de areia e 392 milhões de t de brita para atender um consumo de 692 milhões de t de agregados. A areia é o segundo recurso natural mais explorado no mundo – perde apenas para a água. A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula uma extração de 40 a 50 bilhões de t por ano, com grande impacto sobre ecossistemas ribeirinhos e marinhos.
Por outro lado, a areia representa 80% dos rejeitos da etapa final de beneficiamento do minério de ferro, a chamada concentração, em que o ferro é separado de impurezas. Na Vale são gerados 55 milhões de t de areia por ano. “Desde 2014 estudamos como aproveitar o material. Seu uso na construção civil permite ganho ambiental e gera valor para a companhia”, diz André Vilhena, gerente de Novos Negócios da Vale.
O aproveitamento da areia de minério como agregado para pavimentação surgiu por meio de uma parceria com a Unifei em 2017 e já demandou mais de R$ 7 milhões em investimentos. A primeira tarefa foi determinar a caracterização dos rejeitos do minério de ferro. Nessa etapa, constatou-se a necessidade de melhorar as propriedades físico-químicas dos rejeitos.
Segundo a engenheira Laís Resende, responsável técnica pela pesquisa na Vale, durante o processo de beneficiamento do minério de ferro são gerados os rejeitos arenosos. Para transformar esse material em areia, foram criadas rotas de processo que incluem etapas de concentração, classificação e redução de umidade. A areia produzida pela Vale tem mais de 92% de sílica na composição e sua aplicação pode aumentar a vida útil de alguns materiais, como o pavimento viário.
A areia produzida apresenta uniformidade granulométrica. “É um material com controle de qualidade maior do que a areia extraída de rios, que costuma ter parcelas significativas de resíduos alimentares e solos decompostos. Esses materiais orgânicos podem reduzir a qualidade das aplicações”, afirma Resende.
Testes feitos na Unifei mostraram que a areia da mineração, por sua uniformidade e alto teor de sílica, proporciona um aumento de até 50% em parâmetros de desempenho que estimam a vida útil de uma estrada em comparação com a areia convencional. Também reduz em 6% a demanda por cimento asfáltico de petróleo, um derivado de petróleo usado como agente aglutinador dos agregados na camada superficial da pavimentação, a faixa de rodagem.
Uma pista rodoviária é composta de várias camadas de pavimentação. A formação mais comum tem quatro camadas: subleito, sub-base, base e revestimento, que pode ser asfalto ou concreto (ver infográfico abaixo). A pista de 425 m em Itabira servirá para avaliar em condições reais os resultados obtidos em laboratório e para determinar a composição mais adequada de areia de minério no mix de agregados de cada camada.
“A pista foi dividida em quatro subtrechos, cada um com uma solução diferente na sua composição”, explica Soncim. Foram instalados 96 sensores, entre medidores de deformidade, pressão, temperatura e umidade, submetidos ao tráfego constante de veículos com cargas pesadas. Os estudos são conduzidos pela Unifei em parceria com o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ). As instituições integram a Rede de Tecnologia em Asfaltos da Petrobras. Os resultados serão compartilhados com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
A expectativa na Vale é de que o teste em condições reais confirme os resultados dos ensaios laboratoriais realizados na Unifei. Em abril, foi divulgado um estudo feito pela mineradora em parceria com as universidades de Queensland, na Austrália, e de Genebra, na Suíça, que apontou, da perspectiva técnica, a viabilidade de utilizar a areia de mineração na pavimentação asfáltica e na fabricação de tijolos.
Outros agregados
Assim como a mineração, a indústria siderúrgica gera resíduos que estão sendo aproveitados. O principal destino é a construção civil, principalmente para a produção de cimento, mas uma parte também é usada na pavimentação. Em seu relatório de sustentabilidade 2020, o Instituto Aço Brasil, entidade que reúne empresas do setor, informa que a produção de cada tonelada de aço bruto dá origem a cerca de 600 quilos de resíduos, sendo que 65% é material proveniente de altos-fornos e de aciarias e tem potencial de aproveitamento como agregado para a construção. Em 2021, o Brasil produziu 36,2 milhões de t de aço bruto, com a geração de aproximadamente 14 milhões de t de agregados siderúrgicos.
Os materiais mais empregados no mundo como substitutos de agregados naturais na pavimentação são os resíduos de demolição da construção, o chamado entulho, e material fresado, nome dado à capa asfáltica deteriorada que é removida dos pavimentos por máquinas fresadoras. No Brasil, porém, esses materiais ainda são pouco utilizados.
“Há desconhecimento e preconceito em relação ao uso de resíduos”, afirma a engenheira civil Liedi Légi Bariani Bernucci, diretora-presidente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), do governo paulista, e ex-coordenadora do Laboratório de Tecnologia de Pavimentação (LTP) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). “Acredita-se erroneamente que é um material de baixa qualidade que vai gerar obras ruins, que irão apresentar problemas em pouco tempo”, diz a engenheira, que integra o Conselho Superior da FAPESP. “Devidamente tratado, retirando-se sobras de madeira, gesso e metal, os resíduos de construção são tão eficientes como o material natural.”
Segundo Bernucci, o problema não está nas construtoras, que têm informação sobre a qualidade dos reciclados, mas no despreparo técnico de alguns gestores públicos, responsáveis pela contratação da pavimentação. “O construtor segue o edital de contratação do serviço. São poucos os técnicos no serviço público capazes de estruturar um edital que estimule o uso de material reciclado e reduza o impacto ambiental da obra”, conta.
Dois tipos de revestimento são usados na faixa de rodagem das vias: um flexível, feito com asfalto de petróleo, e outro rígido, de concreto de cimento Portland. No Brasil, como na maioria dos países, prevalece em mais de 95% das obras o revestimento asfáltico, que tem custo de implementação mais baixo, manutenção mais simples e maior disponibilidade de prestadores de serviços qualificados. O revestimento de concreto, contudo, apresenta maior durabilidade. É projetado para uma vida útil média superior a 20 anos, enquanto a duração do revestimento flexível é de 10 a 15 anos.
Não há consenso entre especialistas sobre as aplicações de um ou outro revestimento, mas a maioria aponta para um maior uso do concreto em vias que recebem tráfego pesado, como corredores de ônibus e estradas, e locais de difícil manutenção, e a prevalência do asfalto nas demais vias. Para a engenheira civil Kamilla Vasconcelos Savasini, atual coordenadora do LTP e professora associada do Departamento de Engenharia de Transportes da Poli-USP, asfalto e concreto empregam insumos que geram grande impacto ambiental em seus processos produtivos. O impacto maior do asfalto ou do concreto depende de uma analise do ciclo da cadeia produtiva de cada obra, que varia conforme a disponibilidade regional de insumos, a localização, as características das vias que serão pavimentadas, entre outras variáveis.
O consumo de asfalto no país chegou a 1,6 milhão de t em 2021, segundo a Petrobras, abaixo da média anual antes da pandemia de Covid-19, na casa de 2 milhões de t. De acordo com Savasini, cada quilômetro de pavimentação asfáltica de 10 centímetros de espessura em uma faixa única de rodagem com 3,5 m de largura consome cerca de 50 t de asfalto. “A redução do impacto ambiental de uma obra rodoviária ou urbana pode ocorrer pela reutilização de materiais, pelo desenvolvimento de tecnologias capazes de substituir insumos de grande impacto, como os derivados de petróleo, e pela redução das distâncias de transporte dos materiais”, diz a pesquisadora.
Centros de pesquisas nos Estados Unidos e na Europa dedicam-se a estudar bioligantes, produtos químicos oriundos de fontes renováveis capazes de substituir o asfalto de petróleo na função de agente aglutinador dos agregados na faixa superficial da pavimentação. Os resultados ainda são incipientes.
Com apoio da FAPESP, Savasini coordena uma pesquisa voltada à sustentabilidade na pavimentação asfáltica, tendo como um dos objetivos o desenvolvimento de bioligante como possível alternativa ao ligante asfáltico derivado de petróleo. A equipe do projeto vem investigando diferentes biomassas encontradas no país.
O Laboratório de Tecnologia de Pavimentação da Poli-USP participou há alguns anos de pesquisa com um bioligante obtido de um subproduto importado da madeira de pinus capaz de substituir o asfalto tradicional. O bioligante foi desenvolvido com a paranaense Greca Asfaltos e a paulista Quimigel, especializada em aditivos asfálticos. O novo produto foi testado em 2017 na BR-050, que liga Brasília a Santos (SP). O resultado foi divulgado na revista Construction and Building Materials, em 2021.
“A eficiência do bioligante está comprovada, mas não há viabilidade econômica para sua produção no Brasil”, lamenta Wander Omena, gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da Greca. A produção do bioligante testado em 2017, explica, depende de uma substância obtida em biorrefinaria a partir do processamento do licor negro, um resíduo da indústria de celulose. “Não temos biorrefinaria para isso no Brasil e a importação do insumo tem preços proibitivos”, diz Omena.
A Greca é a responsável por introduzir no país, há 21 anos, o asfalto-borracha, feito com pó de pneus. A origem da inovação é norte-americana, mas naquele país o asfalto usa pó de borracha em até 10% do seu peso, enquanto a versão brasileira utiliza 15%. Outra inovação nacional foi a adição de aditivos para estabilizar a viscosidade do material. A borracha eleva a durabilidade do asfalto. Segundo estudo do Laboratório de Pavimentação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a mistura é capaz de diminuir em 5,5 vezes a propagação de trincas, reduzindo a necessidade de serviços de reparação.
Outra vantagem é a promoção da economia circular na indústria de pneus. Cada quilômetro de pavimento de 7 m de largura feito com a mistura usa mil pneus descartados. A Greca alcançou em 2021 a marca de 13 mil km de pistas recapeadas com o asfalto-borracha e 13 milhões de pneus reaproveitados. Somando as obras de outros fornecedores de asfalto-borracha, o total chega a 17 mil km de pistas. É uma abrangência ainda pequena, diante dos 221 mil km de rodovias pavimentadas do país.
São principalmente concessionárias privadas que usam o material. Em São Paulo, as vias Anchieta e Imigrantes, que ligam a capital ao litoral sul, foram totalmente recapeadas com o asfalto-borracha e a concessionária EcoRodovias está adotando o material como padrão no recapeamento das rodovias que administra. As concessionárias CCR e Arteris também usam o produto.
O preço do asfalto-borracha é cerca de 15% superior ao convencional, mas a durabilidade é maior. Na opinião de Omena, o principal empecilho para uma adoção mais ampla do material em obras públicas é o desconhecimento técnico por parte da maioria dos contratantes. No exterior, a formulação brasileira do asfalto-borracha já foi regulamentada na China e está sendo avaliada para uso em países europeus.
Projetos
1. Reologia e química de ligantes asfálticos e bioligantes: ferramentas para a compreensão do comportamento mecânico, envelhecimento e deterioração dos revestimentos de pavimentos (nº 17/25708-7); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Kamilla Vasconcelos Savasini (USP); Investimento R$ 1.107.576,41.
2. Caracterização multi-escala de misturas asfálticas recicladas para rodovias sustentáveis (nº 19/08883-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Kamilla Vasconcelos Savasini (USP); Investimento R$ 40.808,00.
Artigo científico
ESPINOSA, L. V. et al. Multi-scale study of bio-binder mixtures as surface layer: laboratory evaluation and field application and monitoring. Construction and Building Materials. v. 287, 122982. 14 jun. 2021.
Este texto foi originalmente publicado pela Revista Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.