Atingidos por agrotóxicos não conseguem reparação na Justiça, aponta dossiê inédito

Compartilhar

Por Júlia Rohden, da Agência Pública | Trabalhadores rurais contaminados por agrotóxicos enfrentam dificuldades para denunciar e comprovar danos, enquanto os responsáveis pelas intoxicações — na maioria das vezes, empresas e fazendeiros — seguem impunes. Essa é uma das conclusões do dossiê “Agrotóxicos e Violação dos Direitos Humanos no Brasil”, realizado pela Terra de Direitos e Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos. A pesquisa analisa legislações atuais sobre aplicação de agrotóxicos e aponta as lacunas na Justiça para quem denuncia violações. Ao todo, o dossiê avalia 30 casos de intoxicações em comunidades camponesas, de agricultores familiares, quilombolas e indígenas de todo o país.

“Cabe à comunidade afetada o ônus de buscar o acesso à Justiça, buscar a reparação e correr atrás de todo o arsenal probatório para comprovar os danos que sofreu. Ou seja, todo esse ônus fica ao encargo das próprias vítimas e não dos agentes violadores”, resume a advogada e coordenadora da pesquisa, Naiara Bittencourt, em entrevista para Agência Pública. “Dos 30 casos que avaliamos, apenas 13 foram judicializados, um número bastante baixo porque trouxemos justamente os casos mais conhecidos. Se até nesses casos há baixa judicialização, significa que tem um problema de acesso à Justiça”, complementa.

Entre as situações da pesquisa, em apenas três casos as vítimas foram parcialmente reparadas. Em nenhum deles houve a reparação integral dos danos causados pela contaminação, nem em casos mais antigos e com ampla repercussão, como a morte de Vanderlei Matos da Silva que trabalhava com agrotóxicos na empresa Del Monte Fresh Produce, no Ceará. Apesar da Justiça reconhecer aos familiares o direito a indenizações por danos morais e materiais, a pesquisa aponta que a empresa vem buscando artifícios jurídicos para não pagar os valores devidos à família, mesmo 14 anos após a morte.

Outro exemplo recente são as comunidades tradicionais cercadas por soja em Buriti (Maranhão) que receberam “banho de agrotóxico” em abril de 2021. Apesar da ampla repercussão midiática, o exame de corpo de delito e o exame toxicológico nas vítimas só aconteceu cerca de 30 dias depois do avião lançar agrotóxico em cima das casas.

Leia a entrevista a seguir.

O dossiê traz análise da legislação e também de 30 casos que envolvem comunidades tradicionais e trabalhadores rurais. As vítimas conseguiram denunciar as intoxicações? E qual foi a resposta da Justiça nesses casos? 

Nós analisamos 30 casos em todos os estados brasileiros. Desses 30, 12 afetaram os camponeses e agricultores familiares, três afetaram povos indígenas, três comunidades quilombolas, três outras comunidades tradicionais, três trabalhadores rurais, dois ocasionaram mortandade de abelhas, dois afetaram escolas rurais e dois atingiram populações urbanas.

Nós percebemos que em pouco mais de um terço dos casos analisados houve responsabilização dos violadores, ou seja, menos da metade, e em nenhum deles as vítimas foram totalmente reparadas. Em alguns casos até houve uma reparação parcial, mas em nenhum deles houve uma reparação integral de todos os danos.

Trabalhadores rurais contaminados por agrotóxicos enfrentam dificuldades para denunciar e comprovar danos, enquanto os responsáveis pelas intoxicações — na maioria das vezes, empresas e fazendeiros — seguem impunes. Essa é uma das conclusões do dossiê “Agrotóxicos e Violação dos Direitos Humanos no Brasil”, realizado pela Terra de Direitos e Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos. A pesquisa analisa legislações atuais sobre aplicação de agrotóxicos e aponta as lacunas na Justiça para quem denuncia violações. Ao todo, o dossiê avalia 30 casos de intoxicações em comunidades camponesas, de agricultores familiares, quilombolas e indígenas de todo o país.

“Cabe à comunidade afetada o ônus de buscar o acesso à Justiça, buscar a reparação e correr atrás de todo o arsenal probatório para comprovar os danos que sofreu. Ou seja, todo esse ônus fica ao encargo das próprias vítimas e não dos agentes violadores”, resume a advogada e coordenadora da pesquisa, Naiara Bittencourt, em entrevista para Agência Pública. “Dos 30 casos que avaliamos, apenas 13 foram judicializados, um número bastante baixo porque trouxemos justamente os casos mais conhecidos. Se até nesses casos há baixa judicialização, significa que tem um problema de acesso à Justiça”, complementa.

Entre as situações da pesquisa, em apenas três casos as vítimas foram parcialmente reparadas. Em nenhum deles houve a reparação integral dos danos causados pela contaminação, nem em casos mais antigos e com ampla repercussão, como a morte de Vanderlei Matos da Silva que trabalhava com agrotóxicos na empresa Del Monte Fresh Produce, no Ceará. Apesar da Justiça reconhecer aos familiares o direito a indenizações por danos morais e materiais, a pesquisa aponta que a empresa vem buscando artifícios jurídicos para não pagar os valores devidos à família, mesmo 14 anos após a morte.

Outro exemplo recente são as comunidades tradicionais cercadas por soja em Buriti (Maranhão) que receberam “banho de agrotóxico” em abril de 2021. Apesar da ampla repercussão midiática, o exame de corpo de delito e o exame toxicológico nas vítimas só aconteceu cerca de 30 dias depois do avião lançar agrotóxico em cima das casas.

Ou seja, há uma grande dificuldade de acesso à justiça e dificuldade de denúncias por essas coletividades.

Quais são as principais dificuldades para denunciar?

Nós tínhamos a hipótese, que foi confirmada pela pesquisa, de que cabe à comunidade afetada o ônus de buscar o acesso à Justiça, buscar a reparação e correr atrás de todo o arsenal probatório para comprovar os danos que sofreu. Ou seja, todo esse ônus fica ao encargo das próprias vítimas e não dos agentes violadores. Isso é muito grave.

Há uma série de dificuldades de encaminhamento ou judicialização, após feita a denúncia. Nos 30 casos que avaliamos, apenas 13 foram judicializados, um número bastante baixo porque trouxemos justamente os casos mais emblemáticos, mais conhecidos. Se até nesses casos há uma baixa judicialização, significa que tem um problema de acesso à justiça. 

Conversando com as comunidades afetadas encontramos dificuldades como a ausência de fiscalização dos órgãos ou instituições que são acionadas. A comunidade denuncia, mas há dificuldade de fiscalização in locu. Depois, há dificuldade na produção de provas e as provas organizadas pelas vítimas são consideradas insuficientes para a reparação do dano ou para a responsabilização dos agentes violadores. Em alguns casos há demora na realização dos laudos, quando o atendimento só acontece dias ou semanas depois do fato, o que também dificulta a produção de provas. Percebemos dificuldade da população local quando são atendidas nas unidades de saúde, às vezes o laudo médico não consta que houve uma intoxicação por agrotóxicos, o que gera uma subnotificação e dificuldade de comprovar esses danos depois. 

Vemos também, nos casos que foram judicializados, a morosidade do sistema de justiça. Analisamos alguns casos antigos e ainda não tiveram desfecho de reparação das vítimas mesmo dez, quinze anos depois da ocorrência.

As vítimas muitas vezes não conseguem identificar quais foram os agentes que violaram seu direito. Identificam quando é o fazendeiro ao lado, ou o vizinho, mas em alguns dos casos, especialmente quando é feita a pulverização aérea, essa identificação não é tão simples.

Também percebemos um grave medo de denunciar. Há casos com ameaça. Vemos comunidades vulneráveis tendo que denunciar pessoas com grande poder econômico e político na região, o que também gera medo.

Nessa questão do medo de denunciar, qual seria um exemplo dos casos que analisaram?

Na Paraíba, trabalhadores rurais afetados há bastante tempo por pulverização aérea fizeram uma manifestação, fecharam uma rodovia para denunciar a pulverização, e três dessas pessoas foram criminalizadas por protestar.

Também tem um caso grave e muito conhecido no Ceará, do trabalhador Zé Maria que foi assassinado por denunciar a contaminação de agrotóxicos em Limoeiro do Norte. O nome dele inclusive batiza a lei estadual que proíbe a pulverização de agrotóxicos por via aérea.

No dossiê vocês mencionam duas comunidades tradicionais no Maranhão que receberam a “chuva de agrotóxicos” e assentados da reforma agrária no Rio Grande do Sul que tiveram suas produções agroecológicas contaminadas por agrotóxicos. São dois casos recentes onde houve demora para a realização de exames técnicos nos locais. A demora é comum? E qual impacto na impunidade dos responsáveis?

É absolutamente comum. Nesses dois casos tiveram decisões judiciais interessantes que proíbem a pulverização aérea em determinado polígono das regiões, tanto em Buriti (Maranhão), quanto em Nova Santa Rita (Rio Grande do Sul). Veja, são dois casos em que houve problemas também na demora e na realização de laudos para produção de prova. Percebemos que o atendimento é normalmente insuficiente, por vários fatores, como falta de recurso do órgão, ou de pessoal, de orçamento, de gerenciamento, mas a fiscalização e o atendimento não ocorrem em tempo hábil, o que inviabiliza também a prevenção de danos.

O caso no Rio Grande do Sul se refere à dificuldade de produção de provas do laudo agropecuário, porque houve dano por pulverização aérea de agrotóxicos na produção do arroz. A fiscalização agropecuária aconteceu duas semanas depois do fato e depois de chuva, mesmo assim foram coletadas algumas amostras. As amostras foram levadas para Santa Maria, onde foi encontrado o 2,4-D, e o Ministério da Agricultura também coletou algumas amostras. Essa amostra era de maracujá e saiu do Rio Grande do Sul até um laboratório em Goiás que informou que não tinha capacidade de analisar todos aqueles aspectos. A amostra foi enviada para Minas Gerais e depois para Pernambuco. Foram três laboratórios. Ou seja, o maracujá que era uma amostra importante para o caso rodou o país. E o que aconteceu? A amostra foi perdida no meio do caminho, ninguém sabe onde está. Perdemos uma prova importantíssima pela falta de laboratórios credenciados. 

No caso do Maranhão, houve dificuldade no atendimento à saúde da população afetada. Nós recebemos já no dia fotos de problemas de pele, pessoas contaminadas, animais que foram a óbitos. No entanto, o exame de corpo delito nas pessoas e o exame toxicológico só ocorreu trinta dias depois do fato. Esse fato já era conhecido pelas autoridades públicas, foi prontamente denunciado formalmente, e teve o atendimento apenas trinta dias depois. Houve não só dificuldade na produção de provas, ou seja, os laudos ficaram incompletos, mas também essas pessoas não foram atendidas como deveriam ser, imediatamente após o ocorrido.

E esses dois casos tiveram uma repercussão midiática forte e apoio jurídico de advogados populares. Imagina se não houvesse esse apoio jurídico e a repercussão midiática…

Os dois casos são de pulverização aérea e, na análise que o dossiê apresenta, 70% das contaminações foram decorrentes desse tipo de aplicação de agrotóxicos. Essa é uma forma de aplicação que vem sendo debatida, inclusive com o estado do Ceará e alguns municípios criando legislações específicas para proibir. Por que a pulverização aérea aparece com tanta frequência relacionada aos casos de contaminações de comunidades?

Temos percebido a pulverização aérea como a forma mais perigosa e que ocasiona mais danos às comunidades vizinhas ou próximas da aplicação, seja pela deriva acidental ou até intencional, porque em alguns casos a pulverização aérea foi utilizada como arma química para dispersão territorial das populações.

De forma geral, há um regramento grande sobre a pulverização aérea, como portarias, normativas do Ministério da Agricultura ou da Agência Nacional de Aviação Civil. Embora se tenha uma série de requisitos, há uma dificuldade muito grande de fiscalizar. As comunidades não sabem quando vão ocorrer as aplicações e essas pulverizações muitas vezes apresentam alguma irregularidade: uma mistura que não estava autorizada, o produto não era para pulverização aérea ou foi desrespeitada a distância mínima. Isso é recorrente nos casos de pulverização aérea. Inclusive, na última sexta-feira, foi aprovada uma resolução do Conselho Nacional de Direitos Humanos que estabelece uma série de condições até para mitigar os danos provocados pela pulverização aérea.

Você comentou recentemente e a pesquisa também menciona o uso de agrotóxicos como “armas químicas ou instrumentos de desterritorialização”. O que isso significa e quais exemplos temos na prática? 

Quando o agrotóxico é utilizado como arma química ou instrumento de desterritorialização perde a função agrônoma de manejo ou de controle de produção agrícola e passa a ter o viés de atingir a população próxima ao local com o objetivo de causar algum dano para expulsar. O agrotóxico é uma substância química perigosa com potencial de causar danos e é utilizado justamente para que fique insustentável a permanência no território. Vimos alguns casos, mas há dois muito significativos. Um foi no acampamento Helenira Resende, no Pará, onde houve uma ocupação pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e houve pulverização de agrotóxico em cima das pessoas para que saíssem daquela terra. No caso de Buriti, no Maranhão, também há indícios de que houve uma tentativa de expulsão territorial porque há conflitos naquela região e as aeronaves pulverizaram em cima da população.

Outra história analisada no dossiê é do trabalhador cearense Vanderlei Matos da Silva que morreu por exposição constante a agrotóxicos, em 2008. Vocês relatam que a Justiça reconheceu à família o direito à indenização por danos materiais e danos morais. Esse caso é uma exceção no Brasil? 

O fato do Vanderlei só teve essa possibilidade de reparação parcial da família após o óbito, porque houve uma grande coletividade envolvida, especialmente instituições públicas de pesquisa e organizações do Ceará. O Vanderlei da Silva era um agricultor e começou a trabalhar em uma empresa de fruticultura que produzia abacaxi para exportação. Ele trabalhou durante três anos nessa empresa na parte de almoxarifado químico que era um galpão coberto. Segundo o que foi constatado na ação trabalhista ajuizada pela família, o Vanderlei costumava usar equipamento de proteção individual, máscaras e fazia todos os cuidados recomendados pela empresa, mas, em 2008, foi internado e depois de três meses faleceu aos 31 anos. O diagnóstico foi de insuficiência aguda e hemorragia digestiva alta. Foi identificado um nexo de causalidade entre a função que ele ocupava nessa empresa de produção de agrotóxicos e a intoxicação.

A Universidade Federal do Ceará estava realizando pesquisas na região, o que também possibilitou que houvesse um aprofundamento toxicológico, de laudo, e por isso esse caso é exceção no sentido em que houve a comprovação do nexo de causalidade.

E, no fim, essa ação trabalhista foi exitosa, foram mantidos os direito aos danos morais e materiais para família e a esposa também teve direito a receber uma pensão vitalícia, mas nada repara a morte desse trabalhador. No entanto, até hoje a empresa vem colocando instrumentos jurídicos para não pagar os valores devidos. O valor integral a que a família tem direito ainda não foi recebido, até hoje, lembrando que ele faleceu em 2008.

No âmbito das legislações, o dossiê aponta o Projeto de Lei 1459/2022, apelidado de PL do Veneno, como mais um fator de risco na violação de direitos humanos em casos de contaminação por agrotóxicos. Por que? O que esse projeto, caso aprovado, pode trazer para comunidades tradicionais, moradores de zonas rurais e trabalhadores do campo?

Hoje temos na legislação algumas garantias, especialmente no registro de agrotóxicos, e temos uma série de violações como mostramos na pesquisa. Se o Senado aprovar, o Pacote do Veneno vai flexibilizar dimensões normativas. Na lei de agrotóxicos atual há uma proibição de registro de agrotóxicos que sejam carcinogênicos, que tenham características teratogênicas, que causam distúrbios hormonais ou danos ao aparelho reprodutor. O Pacote do Veneno vai alterar essa dimensão taxativa de proibição de registros para a vedação de produtos que causam somente “riscos inaceitáveis”. Mas existiria algum risco aceitável? O que é um risco aceitável? Isso é muito grave à saúde humana e ao meio ambiente. Se já temos uma série de intoxicações causadas pelos produtos que estão no mercado, imagina facilitando o registro de produtos ainda mais perigosos.

O Ministério da Agricultura teria maior poder em relação ao órgão de saúde e de meio ambiente, o que pode facilitar o registro de produtos perigosos. O PL prevê registros temporários de agrotóxicos de forma muito usual, pode se tornar regra que produtos que não passaram por todas as etapas de registro sejam autorizados temporariamente. Ou seja, nem há dimensão do que esses produtos podem causar, sem cumprir o princípio de prevenção. 

E quando falamos de trabalhadores, como no caso do Vanderlei, que trabalhava em uma empresa química de agrotóxicos, os produtos que forem fabricados no Brasil também teriam dispensa de registro se forem apenas exportados e não utilizados no país. Ou seja, não vai precisar passar pelas etapas de análise de risco. Como fica a saúde dos trabalhadores que estão ali inalando os químicos nos galpões, nos tanques de mistura?

Este texto foi originalmente publicado pela Agência Pública de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Thaís Niero

Bióloga marinha formada pela Unesp e graduanda de gestão ambiental. Tentando consumir menos e melhor e agir para alcançar as mudanças que desejo ver na sociedade.

Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.

Saiba mais