Por Dimas Marques, da Mongabay | Nas regiões cortadas pelos 30 mil quilômetros de trilhos instalados no país, os atropelamentos são o problema que mais chama a atenção.
Os impactos da operação das ferrovias brasileiras sobre a fauna silvestre são pouco conhecidos por pesquisadores, operadores do sistema e pelo próprio governo. Nas regiões cortadas pelos 30 mil quilômetros de trilhos instalados no país, os atropelamentos são o problema que mais chama a atenção.
“As ferrovias, em geral, estão em ambientes com acesso mais restrito, pouco visíveis para nós, e isso acaba omitindo a visualização dos impactos associados a elas”, explica a bióloga Bibiana Terra Dasoler, pesquisadora do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NERF-UFRGS).
Apesar da falta de informações sobre as consequências para a fauna da operação ferroviária no Brasil, está em curso no país a ampliação desse modal de transporte. Há novas ferrovias em construção e, após a entrada em vigor no final de 2021 da medida provisória que instituiu a possibilidade da outorga por autorização (processo menos burocrático que o de concessão), o Ministério da Infraestrutura recebeu 76 pedidos para construção e operação de 19 mil quilômetros de novas ferrovias privadas.
Há poucos estudos no Brasil sobre os impactos gerados pela supressão da vegetação, fragmentação de habitat, efeito barreira (quando a estrutura dos trilhos e o espaço desmatado dificultam ou impedem o deslocamento dos animais) e as poluições sonora e do solo.
Assim como acontece com as rodovias, os atropelamentos chamam mais a atenção e começam a ser estudados tanto por pesquisadores como por operadores e gestores da malha ferroviária nacional. Entretanto, diferentemente do que já se fez para as estradas, em que se calculou ocorrer a morte por atropelamento de 475 milhões de vertebrados anualmente (Centro Brasileiro de Ecologia de Estradas), ainda não se tem noção do número de animais que perde a vida nos impactos com os trens no país.
O biólogo e mestre em Análise e Modelagem de Sistemas Ambientais pela Universidade Federal de Minas Gerais, Rubem Dornas, ressalta ser comum o pensamento de que morrem menos animais por atropelamento nas ferrovias do que em rodovias. Além da falta de pesquisas, a passagem dos trens de forma mais espaçada reforça essa impressão.
“Contrariamente ao que se pensava em relação às ferrovias serem menos impactantes do que as rodovias, os monitoramentos mais recentes têm observado um número alto de fatalidades de animais”, afirma Dornas, que dedicou seu mestrado a descobrir a quantidade de sapos-cururu (Rhinella gr. marina) mortos em uma ferrovia na Amazônia brasileira e chegou ao impressionante número de 10 mil por ano.
Dornas trabalhou com os dados de um inusitado método para monitoramento de fauna em trechos longos de ferrovias. Equipes de biólogos andaram por 871 dos 892 quilômetros da Estrada de Ferro Carajás, no Pará e Maranhão, usada para escoamento de minério de ferro. O trecho que corta a Floresta Nacional de Carajás foi o único não visitado por causa da falta de autorização.
A realização do monitoramento a pé permitiu localizar animais pequenos, normalmente não vistos quando a busca é realizada com as equipes em veículos motorizados. Os biólogos receberam a missão de observar o espaço entre trilhos e uma faixa lateral da ferrovia com cerca de três a cinco metros para cada lado. O cálculo da estimativa de sapos-cururus mortos trabalhou com a totalidade de animais encontrados (9.091 carcaças) e com o tempo que as carcaças persistiam na via férrea (38 dias, em média), o que resultou em 10.233 mortes por ano.
Mas nem todos os sapos mortos haviam sido atropelados. A pesquisa identificou que, além dos atingidos pelos trens, havia anfíbios que morreram por dessecação (perda total da água) e barotrauma (mudança brusca de pressão causada pela passagem de veículos em velocidade alta). Os animais mortos pela perda de água do organismo indicaram que a estrutura dos trilhos funcionou como uma barreira, impedindo a travessia completa e os mantendo expostos a temperaturas que podem chegar a até 51o C.
“O efeito barreira é o impacto que aparenta ser o mais diferente em relação às rodovias. Normalmente, em estradas, não há um empecilho para que os animais atravessem toda a largura da pista, permitindo a eles cruzar de um lado para o outro. Contudo, os trilhos se constituem como uma estrutura vertical que impede a travessia normal, especialmente para animais de pequeno porte com dificuldade em saltar”, explica Dornas.
A empresa de mineração Vale, responsável pela Estrada de Ferro Carajás, informou ter um programa específico para monitorar e avaliar a fauna ao longo da ferrovia, o que permite a implementação de medidas para redução de atropelamentos e outros impactos negativos. “Atualmente, existem 61 passagens de fauna em locais específicos da ferrovia, que atuam como controles de mitigação e são resultado do monitoramento realizado ao longo do tempo”, destacou a Vale por meio de nota.
No ramal ferroviário de 101 quilômetros que liga uma das jazidas de minério de ferro da Vale, em Canaã dos Carajás, à Estrada de Ferro Carajás, em Parauapebas, foram construídos os dois primeiros viadutos vegetados para animais silvestres do Brasil. Em reportagem anterior, a Mongabay destacou a importância dessas estruturas para manter a conectividade entre fragmentos de vegetação conservada e reduzir o efeito barreira e os atropelamentos de fauna.
Em 2020, a pesquisadora Dasoler, do NERF-UFRGS, concluiu seu estudo sobre atropelamentos de mamíferos nos 750 quilômetros da Malha Norte, uma ferrovia que corta o Centro-Oeste do Brasil, passando perto de 79 importantes áreas protegidas e servindo para o escoamento principalmente de grãos. O trabalho estimou que 4.286 animais com peso entre um e 260 quilos morreram atingidos por trens entre janeiro de 2015 e novembro de 2016.
Dasoler trabalhou com dados da Rumo Logística, empresa que tem a concessão de exploração da ferrovia. Assim como Dornas, ela levou em consideração a quantidade de animais encontrados por monitoramentos realizados a pé e utilizando veículos.
Dos 1.950 animais mortos encontrados, 1.459 eram de tatus-peba (Euphractus sexcinctus). Entre as 21 espécies registradas, havia também 217 antas (Tapirus terrestris), 45 tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), 22 lobos-guará (Chrysocyon brachyurus) e uma onça-parda (Puma concolor).
Segundo Dasoler, os números encontrados por ela e por Dornas indicam que os atropelamentos de fauna em ferrovias são bastante significativos. “A malha rodoviária é muito maior que a ferroviária no Brasil, então, em um primeiro momento, podemos pensar que os impactos de rodovias são maiores. Mas temos que avaliar proporcionalmente”, salientou a pesquisadora.
Em Mato Grosso, começou a ser construída a primeira ferrovia no Brasil já concebida para reduzir impactos sobre a fauna silvestre. Ligando Cuiabá aos municípios de Rondonópolis e Lucas do Rio Verde, a Ferrovia de Integração Estadual da empresa Rumo Logística terá 743 quilômetros de extensão, passando por 16 municípios. A inovação no projeto está na elaboração de um estudo preditivo de atropelamento de animais.
De acordo com Paula Prist, bióloga, pesquisadora e sócia-diretora da ViaFauna Estudos Ambientais, a Rumo procurou a empresa para a elaboração de um estudo que ajudasse na prevenção de atropelamentos de fauna na nova ferrovia. “Propusemos o uso de modelos preditivos, uma ferramenta estatística que é muito utilizada no meio acadêmico, tanto no Brasil quanto no exterior, e que poderia ser útil para a situação”, relatou.
As análises preditivas são realizadas com funções matemáticas que trabalham um grande conjunto de dados, permitindo a identificação de padrões que identificam tendências futuras. “Utilizamos os dados de animais atropelados coletados entre 2013 e 2017 de uma ferrovia que está no mesmo bioma e possui fauna e paisagem similares”, explica Prist. A ferrovia utilizada como referência para o estudo preditivo é a mesma em que Dasoler fez sua pesquisa sobre atropelamentos de mamíferos.
O modelo preditivo indicou as zonas críticas de fatalidades para a fauna em geral e para antas (Tapirus terrestris) e queixadas (Tayassu pecari), espécies ameaçadas de extinção e cujo atropelamento na região é comum. Além de indicar os locais com maior potencial de ocorrer atropelamentos, o trabalho da ViaFauna indicou a instalação de passagens inferiores e superiores de fauna e o cercamento em cada um dos trechos de alto risco.
A Rumo Logística informou que a nova ferrovia terá 155 passagens de fauna, dentre passagens inferiores, passagens suspensas para animais arborícolas e um viaduto vegetado — o primeiro em Mato Grosso. A empresa também afirmou que irá instalar 126 quilômetros de cercas para o direcionamento dos animais até as estruturas de travessia. Durante a construção da linha férrea e durante sua operação, está previsto um sistema de monitoramento para localizar os casos de atropelamento e providenciar atendimento a animais feridos.
“Um modelo é um modelo. Não podemos esperar que os modelos vão zerar os atropelamentos nos empreendimentos que serão construídos, pois isso é praticamente impossível, por diversos fatores. Mas se conseguirmos tentar prevenir e evitar o máximo de atropelamentos, já saímos ganhando”, afirma Prist.
A aplicação de modelos preditivos de atropelamentos de fauna não é uma exigência dos processos de licenciamento ambiental das ferrovias. Segundo Dornas, esses processos amadureceram nos últimos anos, apesar de ainda ser possível observar tomadas de decisão não baseadas em evidências. “Esse é um conflito não muito fácil de ser resolvido, em função do próprio rito de licenciamento, que é complexo e está sujeito a intervenções políticas”, salienta.
Dasoler considera que os inventários de fauna realizados nos estudos de impacto ambiental (EIA) apresentados nos licenciamentos apresentam as espécies que ocorrem no local do empreendimento, mas não quantificam o impacto do empreendimento sobre a fauna.
O biólogo e responsável técnico da Cruzeiro do Sul Consultoria Ambiental, Reginaldo Cruz, que trabalha com ferrovias, afirma que os processos de licenciamento ambiental desses empreendimentos seguem extremamente deficientes. “Os estudos, de forma geral, não trazem informações acerca da sensibilidade e fragilidades dos ambientes interceptados, tornando-se dispensáveis ou não aplicáveis”, conclui.
Apesar de um certo pessimismo sobre a efetividade dos processos de licenciamento ambiental quando o foco é fauna silvestre, Cruz considera haver um interesse grande do órgão ambiental em avançar nos estudos e melhorar o processo. “Somos todos cidadãos com o mesmo interesse, me parece: melhorar a infraestrutura de logística no país da forma mais sustentável possível, com preservação do meio ambiente e, quando possível, correção de passivos ambientais.”
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais