O setor é essencial para a construção da Terceira Via para o desenvolvimento da Amazônia, baseado na economia verde
“Um desafio disruptivo para a engenharia brasileira.” É assim, em poucas palavras, que o cientista e engenheiro Carlos Nobre, colaborador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e portador de um currículo quilométrico, nacional e internacional, em temas principalmente ligados a questões ambientais, classifica o estudo pioneiro Amazônia e Bioeconomia – Sustentada em ciência, tecnologia e inovação, do qual foi coordenador técnico(*), recentemente lançado pelo Instituto de Engenharia (IE).
O desafio é construir a Terceira Via Amazônica, caminho que representa a oportunidade de “desenvolver uma ‘economia verde’ que aproveite todo o valor de uma ‘floresta produtiva permanente’ para, com a ajuda de novas tecnologias físicas, digitais e biológicas já disponíveis ou em evolução, estabelecer um novo modelo de desenvolvimento econômico socialmente inclusivo”, prega Carlos Nobre.
E acrescenta: “Durante pelo menos duas ou três décadas, apenas duas vertentes eram pensadas como possíveis, a primeira via, que afirma que há a necessidade de isolar completamente e garantir a preservação de grandes extensões da floresta, e a segunda via, baseada em uso intensivo de recursos naturais, por meio das atividades e serviços da pecuária, agricultura, mineração e geração de energia“.
Por que a proposta do IE é um desafio disruptivo para a engenharia brasileira?
A resposta está no estudo: “A bioeconomia se baseia na utilização de conhecimento e recursos de base biológica, da engenharia e da manufatura. É uma economia que por definição propõe o desenvolvimento baseado numa industrialização que depende da saúde das florestas e dos rios. Portanto, atuar no movimento de reindustrialização da economia – com base na biodiversidade – para o desenvolvimento de uma indústria avançada, competitiva globalmente e com maior margem para os produtos é uma pauta fundamental para o País, que depende diretamente de várias áreas e, em especial, da engenharia. A pobreza na região é uma ameaça real à floresta e com forte potencial de inviabilizar uma solução em escala que traga valor à floresta ‘em pé’. A multiplicação de empregos, que é intrínseca à atividade de engenharia, beneficia e gera o desenvolvimento das populações locais e combate a pobreza.
O pioneirismo do estudo do Instituto de Engenharia está em organizar uma proposta ampla, articulada e multidisciplinar para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Muito se tem falado sobre o problema das queimadas na Amazônia, sobre os problemas que causam ao País no seu relacionamento internacional e sobre o potencial biotecnológico desprezado na região. O estudo mostra como dar um passo à frente nesse debate, trabalhando com o conceito ampliado de bioeconomia, que engloba a biotecnologia, os biocombustíveis e a bioecologia. E ressalta os passos essenciais para a sua consecução:
- O reconhecimento da centralidade estratégica da bioeconomia para o Brasil,
- A necessidade de governança voltada para o projeto,
- O desenvolvimento do sistema de CT&I,
- O fortalecimento das instituições de ensino e pesquisa,
- A criação de hub de excelência em CT&I da Amazônia,
- O acompanhamento da evolução populacional.
Pergunta o estudo: “Estima-se que hoje 29,3 milhões de pessoas vivam na Amazônia Legal brasileira, com parte significativa abaixo da linha da pobreza. Como será a região quando chegar aos 40 milhões, 50 milhões de habitantes? Replicaremos os movimentos de favelização de outras regiões? Qual desenvolvimento os amazônidas querem para a região?
“O nosso país precisa imaginar, discutir e escolher que desenvolvimento quer e pode fazer acontecer, principalmente usando de forma sustentável os recursos encontrados na Amazônia”, diz Eduardo Lafraia, até recentemente presidente do IE.
“ O Brasil tem potencial para ser um dos países mais competitivos globalmente”
Com mais de um século de existência, o Instituto de Engenharia tem em seu DNA o compromisso de promover o desenvolvimento e, por consequência, a engenharia e o avanço científico e tecnológico do País. Com este caderno especial o Instituto de Engenharia busca indicar caminhos e condições para que o Brasil amplie seu protagonismo na nova bioeconomia. Este desenvolvimento será resultado da industrialização derivada do conhecimento, da tecnologia e da biodiversidade brasileira, em especial a encontrada na floresta amazônica.
Em primeiro lugar, torna-se importante observar que há diferentes definições de bioeconomia. A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) define bioeconomia de uma maneira ampla como produção, utilização e conservação de recursos biológicos, incluindo conhecimento associado, ciência, tecnologia e inovação, para o fornecimento de informações, produtos, processos e serviços para todos os setores econômicos visando uma economia sustentável.
Atualmente o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações define bioeconomia como “o conjunto de atividades econômicas baseadas na utilização sustentável e inovadora de recursos biológicos renováveis (biomassa), em substituição às matérias-primas fósseis, para a produção de alimentos, rações, materiais, produtos químicos, combustíveis e energia produzidos por meio de processos biológicos, químicos, termoquímicos ou físicos, promovendo a saúde, o desenvolvimento sustentável, o crescimento nacional e o bem-estar da população”.
No caso específico do Brasil, cuja matriz energética é comparativamente menos emissora de gases de efeito estufa, a atenção deve estar prioritariamente voltada para eliminação completa do desmatamento e para inovações que permitam 1) a restauração florestal, e 2) a modernização das práticas de agricultura e pecuária de forma a aumentar a produção com a diminuição da área plantada.
É importante destacar que uma das razões porque o Brasil tem uma economia de baixa emissão (relativamente a países industrializados) é por usar um elemento da bioeconomia em escala nunca usado no mundo, o etanol de cana-de-açúcar, como combustível automotivo. Em 1975, quando o mundo ainda não falava de bioeconomia, o planejamento governamental ousado, a engenharia e a ciência brasileiras criaram o maior programa do mundo de substituição de petróleo, o Proálcool. Com o avanço dessa nova bioeconomia, que busca a descarbonização, o Brasil tem potencial para ser um dos países mais competitivos globalmente. No cenário pessimista, essas inovações serão feitas por empresas, institutos de pesquisa e universidades internacionais sem a participação efetiva da indústria e da ciência brasileira. Caso isso ocorra, mais uma vez restará ao Brasil o papel de exportar commodities e importar tecnologia, serviços e produtos de alto valor agregado.
No contexto ecológico da Amazônia, considerando sua imensa biodiversidade, o conceito da FAO de bioeconomia deve ser expandido para considerar o uso sustentável dos recursos biológicos com a floresta em pé visando à preservação dos ecossistemas terrestres e aquáticos, incluindo a valorização dos conhecimentos tradicionais. Ao mesmo tempo, devemos, juntamente com a implementação de uma bioeconomia voltada para as características únicas da Amazônia, também fazê-la ser circular desde o início, isto é, uma inovadora bioeconomia circular baseada na rica biodiversidade da floresta amazônica. É essencial e necessário que a sociedade e o governo brasileiro estejam cientes de que, em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, praticamente todos os países desenvolvidos estão criando as condições para que significativos investimentos sejam feitos para o desenvolvimento de conhecimento e tecnologias inovadoras no setor da bioeconomia. É relativamente simples prever que em poucos anos os resultados mais importantes estarão nas nações que tiverem sido mais rápidas em formular e colocar em prática suas estratégias para a bioeconomia.
“Produzir para conservar, conservar para produzir”
Tive a oportunidade de voar de helicóptero sobre a floresta amazônica quando fiz uma reportagem sobre as minas de ferro de Carajás, da Vale do Rio Doce em 1981. É um mar de verde a perder de vista, por mais que se voe sobre ela. Gigantescas também são as escavadeiras que retiram das minas o minério de ferro, que o Brasil tanto exporta. Você se sente um pigmeu ao lado dos pneus das escavadeiras. Me lembro que me senti um explorador inglês no Oriente, daqueles que usam bermudas, meias compridas e capacetes, ao tomar coquetéis enfeitados com frutas, num arranjo bem tropical, no hotel para hóspedes em Carajás.
Lembrei-me dessa história ao conversar por uma hora, por telefone, com o cientista Carlos Nobre, para me informar mais sobre o estudo Amazônia e Bioeconomia, do Instituto de Engenharia, do qual ele foi um dos coordenadores. Com sua fala mansa, Nobre, que mora em São José dos Campos, no interior de São Paulo, descreve as mazelas que assolam e destroem a nossa Amazônia e, com entusiasmo, o potencial econômico e social que a região tem se a bioeconomia passar a ser o instrumento para seu desenvolvimento. E conta fatos e histórias que pouco circulam fora do mundo dos especialistas em Amazônia.
Fiquei sabendo, por exemplo, que o presidente da Colômbia, o advogado com especialização em Filosofia e Humanidades, Iván Duque Marquéz, é adepto da bioeconomia para o desenvolvimento da Amazônia colombiana. Na última reunião de Davos, ao tratar da região amazônica, Marquéz defendeu o lema “Produzir para conservar, conservar para produzir”, criado pela respeitada geógrafa brasileira Berta Becker, em 2008, dentro do conceito por ela defendido de agregar valor ao coração da floresta – que diferença das ideias que circulam pelo Planalto Central…
Nobre me perguntou se eu sabia quais eram os maiores países exportadores de madeira. Claro, eu não sabia. Pois o primeiro é a Suécia, onde árvores demoram até 70 anos para amadurecer em função do clima frio. São produtos industrializados de madeira, mercado em que uma empresa como a Ikea, tem presença global. O segundo é a Itália, que importa a madeira que industrializa, especialmente sob a forma de móveis com o criativo design da península.
Enquanto isso, o Brasil exporta toras de madeira, extraídas num processo que ele caracteriza como “criminoso”, em que 80% do volume derrubado é ilegal. Quanto o País ganharia se essa madeira fosse industrializada pelo próprio Brasil? Nobre relata que há modelos sustentáveis para a exploração comercial da madeira, como o conhecido por “mosaico” em que as espécies que serão derrubadas são cercadas por mata preservada, ou o modelo agroflorestal de alta densidade, com espécies de maior volume com capacidade para rebrotar.
Quanto à continuação da exploração mineral, especialmente ouro, Nobre julga que ainda é preciso estudar bem, pois é uma atividade altamente poluidora, prejudicando bastante as áreas indígenas. A pecuária, na região, é de baixíssima produtividade, segundo ele, produz 90 kg de carne por ano enquanto no modelo intensivo, em outros países, se chega a 300 kg por ano. “Na verdade, a presença do boi na região serve mais para demarcar a propriedade, é um símbolo da posse da terra, pois o real proprietário vive bem longe de lá”, relata.
Nobre acredita que um programa de desenvolvimento baseado na bioeconomia elevará o nível econômico da população da região, caracterizada por um IDH muito baixo. Cita a exploração do açaí, que rende R$ 1 bilhão por ano e elevou para a classe média a população que vive em torno da atividade. E a possibilidade de exploração de frutas que o manancial da biodiversidade local oferece pode multiplicar enormemente essa transformação social. Para ele, a exploração econômica das frutas da região poderá dar resultados mais rapidamente do que a produção de fármacos via biotecnologia, pois esses processos são bem mais lentos.
A destruição da floresta amazônica já atingiu 808 mil km², somando-se a essa área 400 mil km² de áreas degradadas, chegando a uma perda de 1,2 milhão de km², nas contas de Nobre. Já que comecei este texto falando de minhas aventuras em Carajás, volto ao tema. Nobre ressalva que a Vale toma o cuidado de recompor as áreas das minas de ferro depois de exauridas, mas ao longo de sua ferrovia Carajás a São Luís, a capital do Maranhão, brotam usinas de processamento de ferro que induzem ao desmatamento em seu contorno.
Quem sabe, a médio prazo, a produção na Amazônia, baseada na bioeconomia, particularmente no Estado do Amazonas, possa substituir com vantagens a da Zona Franca de Manaus, centrada em produtos eletroeletrônicos, cujos componentes são importados, que gera 80 mil empregos, mas consome anualmente R$ 30 bilhões em subsídios…com a imensa vantagem de preservar a floresta.
Fonte: Luiz Roberto Serrano em Jornal da USP