Por Malena Stariolo em Jornal da Unesp | Embora as chuvas fortíssimas tenham ganhado destaque nos últimos dias, as elevadas temperaturas também têm chamado atenção das autoridades públicas e da população neste ano de 2023. Na cidade do Rio de Janeiro, a chamada sensação térmica bateu nos 58ºC no último dia 4. Dez dias depois, em Brasília, a temperatura chegou a 32,4ºC, marca considerada a mais quente de fevereiro nos últimos três anos pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Com as temperaturas cada vez mais altas, os moradores das cidades são os primeiros a sofrer e sentir as consequências do efeito das “ilhas de calor”, fenômeno que ocorre quando a temperatura em uma área urbana aumenta em relação aos seus arredores.
O efeito das ilhas de calor é causado pela combinação de concentração de asfalto e concreto numa dada área, escassez de áreas verdes e poluição atmosférica. A interação destes fatores resulta na retenção do calor naquela área, impedindo sua liberação e ensejando o aumento da temperatura na região. Acreditava-se que esse efeito seria ainda maior no caso das grandes metrópoles. Porém, pesquisadores da Unesp têm mostrado que cidades médias e pequenas também geram ilhas de calor, que podem chegar a atingir magnitudes próximas às observadas nas grandes cidades.
Margarete Amorim, professora do Departamento de Geografia, câmpus Presidente Prudente, comenta que, apesar de cidades grandes concentrarem áreas maiores de construções, assim como um maior número de pessoas, sua extensão também faz com que existam áreas chamadas de “ilhas de frescor”, nas quais as temperaturas são mais amenas, o que cria uma distribuição maior das temperaturas. “Nessas cidades a gente não tem uma única ilha de calor, a gente tem um arquipélago de calor”, explica. Nas cidades grandes, a extensão das ilhas de calor é muito maior do que nas de médio e pequeno porte. “Nas cidades médias e pequenas, o calor está ali, porém em uma extensão territorial menor. Isso abre a possibilidade de que sejam aplicadas medidas para amenizar as ilhas de calor, algo muito difícil de ser feito em cidades grandes”, destaca Amorim.
Notando a falta de estudos que analisassem a presença e a magnitude das ilhas de calor em cidades menores, Amorim tem dedicado os últimos quatro anos ao projeto “Cidades, clima e vegetação: modelagem e políticas públicas ambientais”, coordenado por ela, com o objetivo de analisar como as ilhas de calor são geradas em cidades de pequeno e médio porte. Ela diz que existem duas técnicas principais para a coleta de dados. A primeira envolve a medição da temperatura do ar por meio de sensores instalados em diferentes pontos da cidade, que registram as informações ao longo do tempo. O outro modo é o uso de carros com sensores acoplados, em que o veículo percorre um trajeto que atravessa diversas regiões da cidade, enquanto o sensor coleta as informações.
O projeto teve início em 2018 com financiamento do Programa CAPES/Cofecub e desenvolveu estudos nas cidades de Jacareí (SP), Presidente Prudente (SP), Maringá (PR), Três Lagoas (MS), Sinop (MT) e Rennes, na França, via parceria com o pesquisador Vincent Dubreuil, da Universidade de Rennes II. A partir de um levantamento dos aspectos geográficos de cada região, como as áreas de relevo, a presença de rios, a amplitude de regiões verdes e com o levantamento de dados sobre a variação da temperatura do vento, os pesquisadores foram capazes de traçar as características das ilhas de calor de cada cidade e notaram que a magnitude delas era equivalente às ilhas geradas em grandes cidades.
“Hoje se fala muito das mudanças climáticas globais, e tem se dado pouca atenção a mudanças na escala local”, comenta Amorim. Ela relata que, em alguns estudos, já foram registradas temperaturas em áreas urbanas que chegam a estar 9ºC acima do que em áreas do entorno rural. “Nós estamos olhando para as mudanças no nível das cidades, onde vive a maioria da população brasileira, e que já vem sofrendo com esse aumento da temperatura mesmo antes de se falar de mudanças climáticas globais”, diz.
Segundo dados do IBGE, estima-se que 84,7% da população brasileira vive em áreas urbanas e, portanto, sofre diretamente com as consequências das ilhas de calor que, juntamente com a poluição atmosférica, impactam diretamente no bem-estar e na saúde das pessoas. A alta nas temperaturas também implica um aumento no consumo de energia elétrica e coloca em evidência a disparidade social. “Quem pode pagar acaba colocando climatizadores internos nos ambientes. Quem não tem condições para fazer isso está sofrendo cada vez mais com situações de estresse térmico”, comenta a geógrafa. Ela lembra que o uso de climatizadores contribui para a intensificação das ilhas de calor, uma vez que os aparelhos esfriam o ambiente interno, liberando ar quente para o meio externo.
O mapeamento, porém, extrapola os limites do projeto: ao longo dos últimos 20 anos Amorim orientou graduandos, pós-graduandos e pós-doutorandos interessados em aprender os procedimentos e metodologias desenvolvidos pelo seu grupo de pesquisa. Dessa forma, a geógrafa conta que já foram mapeadas mais de 30 cidades, principalmente nos estados de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná. Uma dessas pesquisas é a de Leandro de Godoi Pinton, professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, que trabalhou junto com a professora Amorim e mais duas orientandas no estudo das ilhas de calor formadas em Sacramento, uma cidade no interior de Minas Gerais. “A maior contribuição do estudo foi apresentar evidências de que cidades pequenas situadas no Triângulo Mineiro podem ter um padrão de aquecimento tão intenso quanto cidades maiores do Brasil e do mundo”, comenta Pinton, que coordena um projeto para estudar as ilhas de calor em cidades de pequeno e médio porte no Triângulo Mineiro.
A cidade, de aproximadamente 26 mil habitantes, está localizada na fronteira entre Minas Gerais e São Paulo, próximo de Franca. Como os autores indicam, Sacramento tem características semelhantes às de outras cidades do interior brasileiro: um centro antigo, construído com materiais pesados, ruas asfaltadas e poucas árvores; bairros periféricos com uma maior densidade populacional e com casas muito próximas umas das outras, nas quais moram pessoas de baixa renda; e bairros periféricos mais recentes, com um espaçamento maior entre as casas e com maior presença de áreas verdes, ocupados por pessoas de classes média e alta. As áreas rurais de Sacramento foram bastante alteradas pela ação humana; hoje, são poucas as regiões que ainda apresentam as características da savana, sua vegetação original.
Para analisar as ilhas de calor da região, o grupo dividiu a cidade por setores, conforme as características de cada espaço, para identificar quais áreas apresentavam maiores chances de elevação de temperatura. A divisão utilizada se chama Zonas Climáticas Locais, e serve para categorizar as diferentes áreas da cidade conforme a quantidade de pessoas presentes no lugar, a presença e o tipo de áreas verdes, os materiais de construção utilizados nas casas e na infraestrutura da cidade e o adensamento de construções grandes e pequenas. A partir do mapeamento, o grupo utilizou um carro com um sensor acoplado, que seria responsável por registrar os dados de temperatura. “Essa é uma estratégia clássica no campo da Climatologia Urbana chamada de ‘transectos móveis’. Além disso, nós realizamos o cruzamento desses registros com os dados das condições atmosféricas regionais, com as características da estrutura e da cobertura da superfície dos bairros e com variáveis das formas de relevo local”, explica Pinton. O cruzamento de informações foi necessário para que o grupo conseguisse caracterizar com mais detalhes as ilhas de calor e as influências humanas em sua formação.
Amorim comenta que, para o levantamento, era importante que o tempo estivesse estável. “As ilhas de calor são diagnosticadas em condições de atmosfera estável, sem vento, sem chuva. Nós só conseguimos registrar e perceber as diferenças de temperatura quando está tudo parado e, principalmente, durante a noite, porque a cidade tem a capacidade de segurar o calor por mais tempo quando comparado às áreas rurais”, explica a professora. Segundo ela, os padrões de temperatura do local podem ser alterados pela chuva ou por eventos atmosféricos instáveis, o que torna impossível identificar as ilhas de calor.
Em Sacramento, foram realizadas seis coletas de dados durante a temporada úmida e sete durante a temporada seca. Em cada coleta, o carro fez dois percursos, de maneira a cobrir a maior quantidade de áreas de interesse possível: o primeiro foi da região sul à região norte, cobrindo 10,2 km, enquanto o segundo percurso foi de leste a oeste, ao longo de 9,2 km. Para saber com exatidão a variação da temperatura e conseguir comparar esses resultados com o de outras cidades, Amorim explica que é feita uma medida de base na área rural da cidade, local onde as características são as mais próximas possíveis da vegetação original. “Nós usamos o registro do meio rural, que passa a ser nossa referência e, a partir dele, calculamos o que chamamos de intensidade das ilhas de calor. Ou seja, qual é a diferença entre os bairros e o nosso ponto zero. Isso permite uma padronização e a comparação entre cidades com características climáticas diferentes” explica a professora.
Contrariando a expectativa dos pesquisadores, as medições revelaram que as temperaturas mais elevadas não estavam no centro de Sacramento, e sim nas regiões periféricas, onde se observou um maior adensamento de construções. A geógrafa explica que, além de uma quantidade maior de materiais que armazenam calor, o relevo da cidade também ajuda a explicar esse fenômeno. “O centro de Sacramento está em uma área de fundo de vale, o que, do ponto de vista físico, fornece condições para diminuir a temperatura. Por isso uma coisa acaba compensando a outra”, comenta. Ela ressalta que, exatamente por conta de particularidades como essa, uma etapa importante de cada estudo envolve o mapeamento de todas as características geográficas da área estudada. “Devido ao impacto do relevo sobre a temperatura, cada cidade vai apresentar um perfil diferente com relação aos locais de maior ou menor temperatura” diz.
Apesar disso, a cidade de Sacramento apresenta ilhas de calor de magnitude semelhante à de grandes cidades, com variações que chegam a uma média de 3.7ºC. Nos locais de maior intensidade, a variação de temperatura chegou a 4ºC. Bogotá, capital da Colômbia, tem 7,181 milhões de habitantes, porém a variação de temperatura das ilhas de calor na cidade tem, em média, 1,9ºC. Já Dublin, capital da Irlanda, conta com aproximadamente 544.107 habitantes e uma variação de temperatura de 3.9ºC. Pinton comenta que as evidências obtidas são essenciais para combater os impactos negativos do efeito das ilhas de calor, “especialmente para uma região do interior do Brasil com tendência de aumento do estresse térmico como resultado do crescimento urbano e com a ocorrência mais frequente de eventos extremos de calor”, explica o professor.
As ilhas de calor são uma realidade cada vez mais presente e que, segundo estimativas, serão intensificadas nos próximos anos. Dados do primeiro Relatório de Avaliação Nacional (RAN1) do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) indicam que, até 2100, as temperaturas médias de todas as regiões no país irão aumentar entre 1ºC e 6ºC. Essa realidade chama a atenção para a necessidade de desenvolver e aplicar políticas públicas de adaptação às mudanças climáticas. No caso das ilhas de calor, entre as principais soluções para amenizar seu impacto está o reflorestamento e os programas de arborização, a pavimentação das ruas com materiais permeáveis e a utilização de materiais com menor capacidade de armazenamento de calor.
Amorim destaca que suas pesquisas visam ampliar o conhecimento sobre esses fenômenos em regiões até agora pouco estudadas, assim como aprimorar técnicas e metodologias para a coleta de dados sobre a variação de temperatura. “Ao longo dos anos, nós aperfeiçoamos os procedimentos de coleta para entregar para a população, para o poder público e para a própria academia resultados mais cuidadosos e detalhados, a fim de identificar exatamente onde, nessas cidades, as alterações são observadas”, diz. A pesquisadora ainda aponta que é responsabilidade do poder público agir diante dos novos desafios e das evidências que são levantadas, de maneira a garantir uma melhor qualidade de vida para os habitantes das cidades e promover um futuro mais sustentável.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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