Pouco compreendido pela ciência e carregado de estereótipos no imaginário comum, o autismo faz parte da vida de estudantes que chegam à universidade e cursam graduação e pós-graduação. O último Censo da Educação Superior de 2019, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostra que eles são pouco mais de 1.500 matriculados em cursos de graduação espalhados pelo País. Número que pode estar subestimado devido à dificuldade de diagnóstico e falta de acesso aos serviços de saúde especializados.
“É importante que as pessoas entendam cada vez mais sobre autismo, para que sejam menos capacitistas com autistas e não os subestimem”, alerta Priscila*, que tem 28 anos e cursa mestrado no Instituto Oceanográfico (IO) da USP. Ela obteve o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) aos 27, mas suspeitava desde a pré-adolescência. “Eu não escondo que sou autista. Colegas e professores sabem. Até agora, tive a sorte de todos na Universidade serem bem abertos para aprender e entender minhas necessidades, mas tenho consciência de que nem sempre é assim. Muitas pessoas mantêm ideias erradas sobre o autismo e tratam autistas de forma infantilizada e preconceituosa. Isso acontece comigo no dia a dia, em todos os ambientes.”
Apesar da experiência pessoal positiva no ambiente acadêmico, a estudante considera que falta inclusão nas aulas. “Alguns professores não entendem certas demandas simples de pessoas neurodiversas, ou características, como a dificuldade de olhar nos olhos durante as explicações”. Ela conta que já teve problemas por sua forma diferente de assistir às aulas. “O professor achou que eu não estava prestando atenção e eu tive que explicar que me concentro melhor desta forma.”
Giulia Jardim Martinovic foi diagnosticada aos 5 anos de idade e diz que a vida de um estudante autista no ensino superior não é fácil. “Quando entrei na faculdade, em 2019, senti falta de apoio específico e vi amigos autistas desistindo de se formar.” Ela cursa a graduação em Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e relata ter ouvido histórias de discriminação no ambiente universitário. “Um rapaz me contou uma experiência muito ruim, em que um professor disse que a universidade não era lugar para ele, que ele deveria procurar um curso técnico.”
Outro estudante, Gabriel*, de 24 anos é mestrando em Filosofia, também na FFLCH, e recebeu o diagnóstico no ano passado. Ele acredita que um cenário de verdadeira inclusão dos neurodiversos exige que alunos, professores e coordenação aprendam mais sobre o autismo. “Os esforços de conscientização geral podem colaborar muito para melhorar as experiências dos autistas na universidade.”
Foi pensando nessa importância de conscientizar a comunidade acadêmica sobre a neurodiversidade e necessidades de alunos autistas — além da criação de estruturas de apoio a essas necessidades — que Giulia resolveu fundar o Coletivo Autista da USP (CAUSP), do qual Priscila e Gabriel são membros. O maior objetivo da organização é ampliar a permanência estudantil de estudantes com o transtorno.
De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o TEA é um distúrbio do neurodesenvolvimento, com três níveis de suporte: (1) leve, (2) moderado e (3) severo. Apesar dessa divisão, o autismo é um espectro, o que significa que, embora existam características gerais, o TEA não pode ser lido de uma forma linear — cada autista é único. Universitários autistas, de acordo com o CAUSP, são sobretudo dos níveis 1 e 2 de suporte.
As características do TEA dizem respeito principalmente à capacidade de cognição, linguagem e socialização, e envolvem, em graus variáveis: dificuldade de entender nuances sociais, dificuldades com comportamentos não verbais, dificuldades para manter e compreender relacionamentos, dificuldade com mudanças, dificuldade na coordenação motora, e sensibilidade alta em um ou mais sentidos.
De acordo com o Coletivo Autista, os estereótipos do autista “gênio” ou “incapaz” não dão conta da realidade, uma vez que existem todos os tipos de inteligências para alguém dentro do espectro, “tanto condições paralelas como altas habilidades e superdotação, quanto um QI médio, alto ou baixo, ou mesmo a deficiência intelectual”.
É importante lembrar que o TEA é considerado uma deficiência e, por isso, os autistas são PCD (Pessoas Com Deficiência) e devem ter assegurados todos os direitos da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Giulia conta que foi a vontade de que autistas não apenas ingressassem na Universidade, mas também se formassem, que a fez criar o Coletivo. “Meu sonho é ver autistas médicos, psicólogos, professores, jornalistas etc. Queremos essas pessoas porque elas pensam de uma forma muito original, fora da caixinha, e eu acho que o mundo será um lugar bem melhor com mais autistas se formando.”
Criado no dia 12 de maio, o Coletivo, cujos membros são alunos que não necessariamente possuem o transtorno, conta com mais de 35 voluntários de diversas unidades da USP, que organizam as atividades do grupo. Atualmente, possuem mais de 1.300 seguidores no Facebook e também no Instagram.
Além de se colocar como um espaço onde estudantes autistas podem se encontrar e se integrar a redes de apoio, o Coletivo vai oferecer acompanhamentos pensados a partir das necessidades dos alunos com TEA, para ampliar sua permanência na USP. São as mentorias, tutorias e o apoio psicológico, que começam em agosto.
As atividades, por enquanto em formato on-line, vão dar suporte tanto em conteúdos didáticos específicos dos cursos — como biologia, cálculo, escrita acadêmica, latim, etc. — quanto aconselhamentos em relação a planos de estudos, questões burocráticas, carreira e mercado de trabalho. O grupo de apoio psicológico conta com graduandos em Psicologia e uma psicóloga formada. O Coletivo também está produzindo cartilhas e publicando conteúdos sobre autismo em suas redes sociais, como entrevistas com autistas não-binários e artes informativas.
Giulia destaca que o Coletivo Autista da USP é pioneiro no Brasil. “Pelas nossas pesquisas, não existe nenhum coletivo autista que apoie a permanência universitária, isso porque a maioria dos programas voltados a autistas é para crianças. Queremos nos expandir, e esse processo já começou com unidades na UFRJ, UFSC, UFRGS e Mackenzie.”
A iniciativa já rendeu premiação no Prêmio Diversidade USP, promovido pelo coletivo PoliPride da Escola Politécnica (Poli) da USP, com um 2º lugar geral e em 1º lugar na categoria Acesso, Inclusão e Permanência de grupos minoritários na USP.
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