Rebanhos migram para a floresta desde a década de 1970 com apoio do governo, e número de bois na Amazônia Legal já é três vezes maior que o de habitantes; pesquisadores apontam soluções para acabar com o desmatamento no setor
Por Marina Rossi, da Repórter Brasil | Uma invasão nem tão silenciosa vem tomando a Amazônia nas últimas décadas. Trata-se de uma marcha bovina rumo ao noroeste brasileiro, que começou na década de 1970 e se acelerou nos últimos anos, a ponto de os estados da Amazônia Legal abrigarem hoje três vezes mais cabeças de gado (89 milhões) do que habitantes (29 milhões).
Na prática, há boas chances de que o seu churrasco tenha relação direta com o desmatamento da Amazônia, já que 43% de toda população bovina do país está ali. Se nada for feito, o crescimento da pecuária na região pode desmatar por ano 10 mil km² – ou seja, até 2030, uma área equivalente à da Irlanda, segundo cálculos feitos por Paulo Barreto, pesquisador associado do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Para fazer a conta, Barreto considerou a atual e significativa presença de gado na região, o crescimento da demanda por carne e o nível de produtividade dos pastos brasileiros – considerado baixo pelo pesquisador e autor do estudo “Políticas para desenvolver a pecuária na Amazônia sem desmatamento”.
“A produção de carne bovina em larga escala na Amazônia é um fenômeno moderno”, escreve o pesquisador, pouco antes de explicar por que um país continental cria parte relevante de seu rebanho destruindo a maior floresta tropical do mundo. “Entre a década de 1970 e o fim da década de 1980, o governo federal estimulou a ocupação da Amazônia por meio de projetos de colonização que incluíram a abertura de estradas, o deslocamento de famílias, crédito rural subsidiado e incentivos fiscais para empresas que investiam na região”, explica.
Nas décadas seguintes, a ida de pecuaristas para a floresta se acelerou por conta do aumento da demanda internacional por carne, mas também por incentivos dos governos democráticos. “O governo brasileiro subsidiou a consolidação e expansão da indústria frigorífica, inclusive na Amazônia, para ganhar mercado internacional. Entre 2008 e 2017, a pecuária bovina contou com subsídio médio de R$ 12,3 bilhões por ano, incluindo a isenção de impostos estaduais e federais, além de incentivos, anistias e perdões de dívidas”, afirma.
‘Mais do que carne, o que muitos dos grandes pecuaristas estão produzindo na Amazônia é terra’, diz Raoni Rajão, da UFMG
Como resultado da demanda internacional e das políticas públicas, o Brasil aumentou as exportações de carne de 5% da produção em 2000 para 26% em 2019. Entre 1974 e 2019, o rebanho bovino na Amazônia Legal cresceu quase dez vezes. “Essa região foi responsável por 93% do crescimento do rebanho brasileiro entre 1990 e 2019”, completa o pesquisador.
Além dos incentivos fiscais, outras características da região amazônica colaboram para a invasão de bovinos. “A Amazônia tem muita área plana e muito espaço, algo essencial para a pecuária”, explica Richard Smith, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). O clima também favoreceu esse fenômeno. “A raça zebu [a principal que compõe o rebanho brasileiro] vem da Índia, uma região muito quente, e se adaptou muito bem na Amazônia”.
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Carne ‘contaminada’ com ilegalidades
Além do desmatamento, a transformação da Amazônia em pasto costuma vir acompanhada de queimadas, conflitos com povos originários e grilagem de terras (roubo de terras públicas). Levantamento do Ipam mostra que áreas de pasto ocupam 75% do que foi desmatado nas terras públicas da Amazônia, boa parte resultante de grilagem, contaminando o setor com ilegalidade.
“De maneira genérica, mais do que carne, o que alguns pecuaristas estão produzindo na Amazônia é terra”, diz Raoni Rajão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador na Wilson Center, em Washington DC. “Compra-se terra ali por um preço baixo, fazem pasto para limpar a área e a vendem por até cinco vezes mais do que o preço original. É um negócio lucrativo”, diz.
“A pecuária é uma atividade fácil para domar a terra, pois o gado pode ser criado em áreas com baixa infraestrutura, o que facilita a especulação [imobiliária]”, explica Barreto.
Com terra barata e pouca fiscalização, a ocupação da Amazônia avança sem barreiras nem leis que combatam as ilegalidades, a exemplo das frágeis punições aos infratores, acrescenta o procurador do Ministério Público Federal Daniel Azeredo. “A terra pública invadida não é tomada de volta. Nos últimos 20 anos, todos os governos criaram leis no sentido de regularizar essa grilagem de terras”.
Há 13 anos, Azeredo foi um dos que costurou um acordo com grandes frigoríficos do país – especialmente JBS, Marfrig e Minerva – para tentar acabar com o desmatamento no setor. O programa Carne Legal, ou TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) da Carne, como ficou conhecido, foi assinado em 2009, quando os frigoríficos se comprometeram a comprar somente de produtores que não cometam desmatamento ilegal, que tenham suas propriedades inscritas no CAR (Cadastro Ambiental Rural), não tenham ocorrência de trabalho escravo e nem de invasão a unidades de conservação ambiental, terras indígenas e quilombolas.
Mais de uma década depois do acordo, Azeredo diz que ainda há três furos importantes no programa. “O primeiro é a ‘lavagem do gado’, isto é, muitos animais são criados em uma fazenda que não responde aos critérios estabelecidos pelo TAC, mas seus criadores os transferem a uma fazenda ‘limpa’ antes de vender ao frigorífico”. A segunda questão, ele pontua, é o vendedor indireto, ou aquele que faz a cria e a recria do boi. “Temos casos em que o gado transita por três fazendas antes de chegar ao frigorífico e não sabemos por onde ele esteve antes de chegar até lá”.
Por último, o CAR é autodeclaratório, o que, de acordo com Azeredo, abre margem para falsificações das informações. “Se um produtor teve desmatamento em uma área de sua fazenda em 2015, ele é vetado pelo frigorífico. O que ele faz? Retifica essa área desmatada do CAR, como se ela não fizesse mais parte da sua propriedade”.
Por estas manobras dos pecuaristas, Azeredo diz que é preciso avançar para um sistema de rastreabilidade completa, em que seja possível acompanhar a vida do animal do nascimento ao abate. “O mercado europeu trabalha com isso, com a identificação geográfica, mostrando, por exemplo, que o certificado de origem de um queijo ou um vinho agrega valor ao produto”. Aqui no Brasil, a ausência de vontade política é o maior empecilho para que essa rastreabilidade seja implementada, ele diz.
Aumento da produtividade
A morosidade no avanço de mecanismos capazes de fiscalizar, rastrear e garantir que a carne que chega às prateleiras seja efetivamente livre de desmatamento coloca em xeque toda a cadeia de produção. Enquanto JBS, Minerva e Marfrig prometem levar ao consumidor um bife com desmatamento zero ainda nesta década, todas as fragilidades expostas do setor da carne vão na contramão dessa meta. Levantamento da Repórter Brasil mostrou que os sistemas usados pelos frigoríficos para rastrear a origem do boi ainda são passíveis de fraudes e têm diversas pontas soltas.
As falhas, no entanto, podem ser corrigidas. “O Brasil não precisa mais criar pasto para aumentar sua produção. A Embrapa já desenvolveu tecnologia para ocupar grandes áreas degradadas”, diz Richard Smith, do Ipam. Para ele, esse é um ponto-chave da discussão.
Um caminho para tentar limpar a carne do desmatamento passaria, segundo os especialistas, pela recuperação dos pastos degradados, a rastreabilidade do boi e o aumento da produtividade. “Na prática, isso significa que, ao invés de soltar o gado em uma área gigante e deixá-lo livre para pastar ali, é preciso investir no pasto rotacionado”, diz Barreto. “Ou seja, manejar o boi para áreas em que o capim está no momento ideal para a pastagem, enquanto em outras partes do terreno o pasto está em diferentes etapas do crescimento”.
Outra solução seria aumentar as fiscalizações. “Quando o governo foi duro com o desmatamento, especialmente durante os anos em que Marina Silva era ministra do Meio Ambiente [2003-2008], os fazendeiros foram atrás de melhorar a sua produtividade”, diz Barreto.
O mercado, para o pesquisador, é também capaz de pressionar os produtores a seguirem um caminho sustentável. Ele menciona que fundos de investimentos e bancos internacionais já deixaram de investir em frigoríficos brasileiros pelo não cumprimento de metas ambientais, assim como o varejo, especialmente o europeu, já boicotou a carne brasileira pela mesma razão.
“Não vamos aderir à OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico] enquanto não reduzirmos o desmatamento. Se o mundo disser ‘não compro [carne] se for do desmatamento’, pode funcionar”.
Este texto foi originalmente publicado pelo Repórter Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.