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Ayurveda é uma ciência de cura natural que surgiu na Índia há mais de cinco mil anos

Para explicar o que é a Ayurveda, como aplicá-la no dia a dia e qual é sua relação com a sustentabilidade, entrevistamos a praticante e estudante de Ayurveda há sete anos, Camila Leite. Confira a entrevista:

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Portal eCycle: Camila, o que é Ayurveda?

Camila: A Ayurveda é uma ciência de cura milenar tradicional da Índia que existe há mais de cinco mil anos. Em sânscrito, Ayurveda significa “ciência (veda) da vida (ayur)”. Assim como outras formas de conhecimento de cura natural, a Ayurveda percebe o complexo corpo-mente-espírito de forma integrada, de modo que o que acontece no corpo físico, mental ou espiritual afeta mutuamente os demais. Seu diferencial com relação às outras ciências de cura natural é a forma como percebe o lugar do ser humano na vida. Cada indivíduo é visto de forma única, com uma constituição única e singular, ocupando um lugar específico dentro do jogo da vida, com um propósito também específico. Conhecer e atender a esse propósito é o que traz a autorrealização e a felicidade.

A constituição física e psicológica aparecem como instrumentos desenhados para facilitar com que esse lugar seja ocupado. Cada um carrega marcas, tendências e inclinações para atender ao seu propósito.

Os estados de saúde e doença, de acordo com a Ayurveda, são manifestações que surgem com o intuito de fazer aflorar os aspectos necessários para o indivíduo ocupar seu lugar no mundo. A saúde aparece como um meio, e não um fim em si mesma. A saúde que temos proporciona a energia necessária para ocupar o nosso lugar e manifestar nosso propósito.

Nessa perspectiva, devemos nos perguntar para que desejamos ter saúde e o que queremos atingir com ela. Estamos conscientes do que viemos fazer aqui e de como usaremos nossa energia?

A Ayurveda possui uma profundidade com respeito ao significado da nossa existência, indo além do restabelecimento da saúde. Essa ciência não apenas promove a cura, mas principalmente concebe um sentido para a vida.

Portal eCycle: Qual a relação da Ayurveda com a ioga?

Mulher meditando
Imagem de JD Mason no Unsplash

Camila: A Ayurveda e a ioga têm bastante complementariedade entre si. Gosto de dizer que elas são ciências irmãs. Elas vêm do mesmo berço filosófico, que são os vedas – sendo a Ayurveda um ramo terapêutico da ioga. Ela serve à ioga facilitando a autorrealização do ser humano por meio da cura e da saúde.

eCycle: Como se constrói a saúde por meio da Ayurveda?

Temperos
Imagem de Andy Holmes no Unsplash

Camila: Para a Ayurveda, a saúde é entendida como nutrição e metabolismo. Ela percebe o ser humano como um organismo sensível e sensorial; dotado de cinco sentidos por meio dos quais é construída a realidade no plano material.

É por meio desses sentidos que conseguimos nos deslocar na matéria, perceber a vida, os outros, a nós mesmos; e construir nossa realidade. Somos sensíveis porque estamos num mundo onde há estímulos. Então precisamos receber esses estímulos, captá-los, processá-los e, a partir desse processamento, viver.

No mundo contemporâneo, há um grau exacerbado de estímulos; somos bombardeados por eles a todo instante. De acordo com a neurociência, recebemos 11 milhões de bytes de informação por segundo. Desses 11 milhões de bytes, percebemos somente 40 bytes – uma quantia muito ínfima em comparação ao total recebido.

E quando digo “perceber” quero dizer que recebemos o estímulo e sentimos que fomos afetados por ele; o recebemos, processamos, e, por fim, o sentimos. Boa parte dos estímulos nos afetam e não notamos, deixando impressões e resíduos em nossos corpos que nos impactam de formas variadas.

É por isso que o uso correto dos sentidos está na base da promoção da saúde na Ayurveda. É preciso aprender a fazer o uso correto dos sentidos, aprender a equalizar os estímulos que chegam, recolher os sentidos de modo a não se deixar afetar pelas impressões causadas por estímulos negativos e procurar se nutrir de estímulos positivos, se colocando em situações onde é possível recebê-los.

Na cultura ocidental, temos a ideia de que nutrição e metabolismo envolvem apenas o alimento físico. Para a Ayurveda, nutrição e metabolismo também envolvem a mente e o espírito. Tudo o que encontra nossos corpos é tido como alimento, pois invariavelmente vai nos nutrir, seja positiva ou negativamente. E tudo o que recebemos de negativo ou positivo precisa ser metabolizado.

Dessa forma, é preciso aprender a escolher o que queremos captar de estímulo. Essa escolha nem sempre está ao nosso alcance, principalmente para quem mora nos centros urbanos, onde os estímulos são grandes estressores.

Mas é possível ter formas de amenizar e neutralizar os impactos destes estímulos de acordo com o nosso modo de vida. Nosso corpo tem uma habilidade de se autorregular ante os estímulos estressores do meio, a depender da intensidade do estressor e do estado de saúde do corpo (influenciado pela genética, o karma, os hábitos e estados de pensamentos e emoções).

São estressores: clima, vírus, bactérias, ruídos, luzes, estilo de vida, alimentos, pessoas, lugares, pensamentos e emoções. Quando metabolizamos esses estressores, o corpo volta à homeostase, atingindo seu estado de equilíbrio original.

Dessa forma, as atividades que realizamos, nosso trabalho, as pessoas com quem convivemos e nos relacionamos, o que comemos, pensamos e sentimos, tudo isso nos afeta e está ao nosso alcance de ser alterado. Nosso modo de vida é o que mais tem potencial de nos regular.

A saúde é determinada por aquilo que fazemos cotidianamente e o que mais impacta é o que fazemos com mais frequência no nosso dia. Isso diz respeito a todos os âmbitos da vida. Eu posso fazer atividade física, por exemplo, ter uma alimentação muito regrada e saudável, mas ter algum padrão de comportamento nocivo no trabalho ou nos relacionamentos, e isso é suficiente para me fazer adoecer.

eCycle: O que são os doshas?

Mano esquerda aberta com a palma para cima
Imagem de Mat Reding no Unsplash

Camila: Para falarmos de doshas, primeiro precisamos falar dos elementos. Na perspectiva da Ayurveda, todas as formas de vida são compostas pelos cinco elementos: terra, água, fogo, ar e éter. Eles se juntam em pares formando três tipos constitutivos, os doshas.

Em sânscrito, dosha significa “humor biológico”. Dessa forma, podemos dizer que temos três tipos de humor biológico que determinam nossa constituição física e psicológica, que se dividem em vata, pitta e kapha:

Vata

O vata é a junção do ar e do éter; é o ar que se move no espaço. Representa o movimento no corpo. É responsável pela interface do sujeito com o mundo e regula o sistema nervoso e a respiração.

Pitta

O pitta é a junção do fogo e da água; é o calor na forma líquida. É responsável pelos processos digestivos e metabólicos e regula todas as transformações bioquímicas do corpo.

Kapha

O kapha é a junção da água e da terra; é a água na forma sólida. Representa a força que constitui o corpo. É responsável pela estrutura e regula a absorção e incorporação dos nutrientes.

Todos nós temos esses três humores atuando no organismo, mas em cada um predomina um ou mais deles – o que configura nossa constituição original de nascimento, física e psicológica. Ao longo da vida, pela ação dos estímulos estressores, vamos nos desequilibrando e nos afastando do nosso dosha original.

A mente possui papel central nessa mudança da constituição. Segundo a Ayurveda, a mente é o repositório das impressões advindas dos sentidos, uma entidade formada pelo contexto social. Nesse sentido, as impressões mais importantes vêm das nossas relações, já na infância, com os pais, onde começamos logo cedo a nos habituar a determinadas impressões e associações – pessoas, alimentos, lugares, e todos os estímulos que estamos expostos.

As impressões e associações às quais nos habituamos dão a tônica de toda atividade mental, tendo muita influência sobre nossa constituição.

A mente fica condicionada a essas impressões e passa – ao mesmo tempo que está se movendo para o exterior e se ligando ao mundo – a se mover constantemente de forma obsessiva no caminho da sua própria memória, que é a forma com que ela se identifica e constitui sua identidade, seu senso de “eu”.

Dentre essas impressões estão principalmente os sentimentos, emoções e crenças, que se fundem a atitudes e hábitos. Esse conjunto constitui nosso modo de ser e viver no mundo, nos afetando enquanto sujeitos.

É no processo do início das associações que começamos a viver de uma forma diferente do que é a nossa constituição original, nos habituando às impressões do nosso meio. Aqui há um ponto de congruência com o estudo da Psicologia, também parte essencial da Ayurveda.

É por isso que viver bem – com saúde e propósito, como falamos – requer conhecimento de si. Quem sou eu e que lugar ocupo nesse mundo? Voltamos para as mesmas perguntas. Precisamos saber quem somos e resgatar nossa constituição original. Gosto de abordar o conhecimento do próprio dosha como um processo de autoconhecimento. É muito valioso quando cada um vai em busca de se conhecer. Muito mais do que quando o terapeuta ou o médico diz “você é isso, então faz aquilo”. Na medicina convencional, o médico dá o diagnóstico e prescreve; a pessoa não consegue se empoderar e ter autonomia sobre as questões do próprio corpo.

O diferencial da abordagem da Ayurveda é tomar as rédeas da vida, empreender o resgate de si pelo autoconhecimento e ampliação da percepção de si mesmo, sobre quem sou e o que estou fazendo. É saber ocupar o próprio lugar no mundo de modo a se autorrealizar.

Saber o próprio dosha pode ser uma ferramenta útil, mas na minha abordagem terapêutica, prefiro falar de algo que é anterior a isso, que é o modo como vivemos – nossa qualidade de vida.

Desfazer os condicionamentos da mente e empreender o resgate de si requer antes uma vida exterior em ordem e equilíbrio e a regulação no contato e interface com o mundo. Ao mesmo tempo, o caminho na busca pela qualidade de vida e de uma relação mais harmônica com o mundo aparece como uma via de mão dupla para o autoconhecimento, pois implica saber perceber a si mesmo e os próprios hábitos para poder transformá-los, ao mesmo tempo em que essa transformação propicia a ampliação da consciência e da percepção de si.

eCycle: O que são as energias vitais?

Flor de lótus
Imagem de Saffu no Unsplash

Camila: As energias vitais são os correspondentes dos doshas a nível sutil. Elas são três: prana, tejas e ojas.

Essas essências vitais controlam as funções do corpo e da mente e, diferente de como é com os doshas – cujo aumento leva à doença -, o aumento das energias vitais leva à saúde.

A principal energia vital é o prana, que é o correspondente sutil do dosha vata.

O vata também aparece como principal dosha, sendo conhecido como o senhor das doenças. Ele é o ar e o éter, o movimento no corpo. Então, quando ele se desequilibra, impulsiona os outros doshas. O vata está por trás da maioria das doenças e tende facilmente a se desequilibrar no mundo agitado que vivemos. Já o prana é a força vital que anima o corpo e está na base dos doshas, de modo que a saúde depende da sua presença em nossas vidas.

O aumento do elemento ar na forma de vata gera desequilíbrio, mas esse mesmo aumento do elemento ar na forma de prana gera equilíbrio. O prana é a qualidade positiva de vata. É preciso conhecer vata e prana para lidar com eles de forma correta.

eCycle: O que são os gunas?

Campo
Imagem de Jake Givens no Unsplash

Camila: Os gunas são qualidades. Também são três: sattva, rajas e tamas. Eles são a qualidade da energia que compõe as impressões. Tudo no mundo é energia que está dotada de uma qualidade, que são essas três.

Sattva

  • Sattva é o domínio da harmonia.

Rajas

  • Rajas é o domínio da ação.

Tamas

  • Tamas é o domínio da inércia.

Os três oscilam e têm cada um sua função. A respeito de tamas, que é a estagnação, você pode pensar: “nossa, que ruim, viver estagnado”. Mas tamas tem sua utilidade, pois a estagnação é o que nos ajuda a dormir a noite, por exemplo.

Pela manhã, já temos um pouco mais de rajas, que é a energia da ação.

Então existe uma dança entre os gunas, os doshas e as energias vitais. Todos são importantes e possuem uma função. Geralmente rajas e tamas predominam, em função da forma como vivemos. Mas o ideal, na Ayurveda, é que predomine sattva, num estilo de vida saudável, equilibrado e harmonioso.

Para resumir e simplificar, os doshas correspondem ao nível físico, as essências vitais, ao nível sutil e os gunas, ao nível causal – corpo, mente e espírito, respectivamente. Os três estão interligados, se afetam mutuamente, e possuem níveis de nutrição. De modo geral, são nutridos pelo regime alimentar, pelo sono, pelo exercício físico, pelas impressões (a harmonia da mente, dos sentidos e das experiências), pela absorção da verdade (o autoconhecimento), pelo pranayama e pelo uso de mantra e meditação. São esses fatores que determinam a qualidade da nossa saúde e da nossa vida, para uma existência sattvica.

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Como viver a Ayurveda no dia a dia?

Mulher meditando
Imagem de Jared Rice no Unsplash

Camila: Com toda essa teoria pode parecer complexo vivenciar os ensinamentos da Ayurveda no dia a dia. Na verdade, existe um grau de detalhamento na percepção da vida, mas também existe um grau de simplicidade que está no aqui e no agora, no plano mais palpável, que é a forma como vivemos nossa vida, nossos hábitos e tendências.

Vejo algumas pessoas contra-argumentarem que a Ayurveda não é aplicável. Mas isso não é verdade. Tem graus e graus de aplicabilidade. Tem pessoas que conheceram seu dosha, querem viver de acordo com ele e ficam sofrendo com isso. Mas como eu disse, a prática dos conhecimentos da Ayurveda é anterior a ser um determinado dosha. É compreender a vida e se perceber nela. É buscar responder às perguntas: como estou vivendo? Quem sou eu? E buscar o autoconhecimento e a percepção de si para viver bem e melhor, dentro da sua realidade e possibilidades.

O que a Ayurveda tem a ver com sustentabilidade?

Mão
Imagem de rafael albornoz no Unsplash

Camila: Para mim, sustentabilidade e Ayurveda têm tudo a ver. Inclusive meu caminho de encontro à Ayurveda foi por meio da sustentabilidade. Estudei Gestão Ambiental e, nesse caminho, fui levada à Ayurveda.

Ayurveda é viver de forma equilibrada e harmônica com o meio – interior e exterior – consigo próprio e, consequentemente com o exterior e com aqueles que estão ao seu redor, inclusive a natureza. A sustentabilidade não é diferente.

Quando falamos em sustentabilidade pensamos numa transformação coletiva, na forma com que estamos lidando com os nossos recursos, com nossos resíduos. De modo geral, falar em sustentabilidade é pensar na forma como estamos lidando com a natureza. Mas para termos essa mudança precisamos, necessariamente, de mudanças individuais.

Começamos no um a um para haver uma mudança global. A beleza da Ayurveda é trazer a percepção e a responsabilidade para cada um, e, aos poucos, transformar toda a realidade em que vivemos.

Imagine todos vivendo de forma saudável e equilibrada? Isso significa não ter doença, exploração, pobreza. Nesse caso, poderíamos dizer que estamos vivendo de modo sustentável. Falar em sustentabilidade é o mesmo que falar de uma vida que se sustenta por si mesma, em equilíbrio e autorregulação.

Camila Leite compartilha seus aprendizados para a restituição da saúde e bem-estar por meio de métodos chamados Desenho de Rotina e massagem Abhyanga. Além de sua atuação na Ayurveda, Camila Leite é estudante de psicologia. Saiba mais como ela agrega o autoconhecimento na sua prática terapêutica em seu site pessoal: www.camilaleite.com


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