Em entrevista à Mongabay, a antropóloga Beatriz Matos, viúva do indigenista Bruno Pereira, conta de suas atribuições no cargo que assumiu em 14 de fevereiro deste ano à frente do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas
Por Carolina Conti em Mongabay Brasil |
- Ela fala sobre seu retorno recente ao Vale do Javari, onde conheceu Bruno, e do desafio de reverter o passado recente de destruição e negligência dos direitos indígenas.
- Também explica como se dá o mapeamento de povos isolados no Brasil e sobre como o departamento vem se estruturando para desempenhar esse trabalho junto da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
- Segundo Beatriz, a prioridade do momento é “trabalhar para garantir segurança e proteção aos indígenas e suas terras”.
“Um dos dias mais importantes da minha vida”, foi assim que a antropóloga Beatriz Matos descreveu a visita recente que fez ao Vale do Javari, em fevereiro deste ano, em seu primeiro dia à frente do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas.
Oito meses após o assassinato de seu companheiro, o indigenista Bruno Pereira, e do jornalista Dom Phillips, ela voltou ao lugar junto da ministra Sônia Guajajara para tornar clara a posição prioritária desta gestão: a de que o Estado vai acompanhar de perto a situação local e trabalhar para garantir segurança e proteção aos indígenas e suas terras.
Em entrevista exclusiva à Mongabay, Beatriz conta de suas atribuições no cargo, fala da situação dos povos isolados e de recente contato no país e partilha memórias da sua parceria – pessoal e também de causa – com Bruno.
Mongabay: Quando foi a sua primeira visita ao Vale do Javari e qual o impacto desse lugar na sua vida?
Beatriz Matos: A primeira vez que eu pisei na Terra Indígena, concretamente, foi em 2004. Eu trabalhava no CTI [Centro de Trabalho Indigenista], que estava organizando cursos de formação de professores. Fui participar de um deles, junto aos Matis e aos Marubo. Desde então, eu comecei a fazer um trabalho de acompanhamento das escolas indígenas nas aldeias. Eu estava sempre lá, ou morando ou indo uma vez por ano, ou a cada dois anos. Depois eu fiz o mestrado no Museu Nacional no Rio de Janeiro e a pesquisa de campo era no Javari também, com o povo Matsés, assim como o doutorado.
Em algumas épocas eu morei efetivamente no Vale. Eu e Bruno temos uma casa lá, na estrada entre Benjamin Constant e Atalaia do Norte, mas tem muito tempo que eu não vejo a casa.
Mongabay: Você voltou ao Vale do Javari recentemente, em 27 de fevereiro, pela primeira vez depois do assassinato do seu companheiro, Bruno Pereira, e do jornalista Dom Phillips. Agora como responsável pelo departamento de povos isolados e de recente contato. Como foi essa visita?
Beatriz Matos: Foi bem importante, do ponto de vista do trabalho, porque a ideia da ministra Sônia era que a gente marcasse essa posição de que agora o Estado vai estar presente, de que estaremos acompanhando a situação do Vale do Javari de perto. De que há uma preocupação com aquele lugar, mas também com outras Terras Indígenas que estão nessa situação de muita insegurança no entorno, com questões envolvendo crimes e ilegalidades que acabam ameaçando os povos indígenas da região em seus próprios territórios.
E esse foi o meu primeiro dia de trabalho no Ministério, concretamente. Então, foi muito simbólico nesse sentido.
Em termos pessoais, também foi muito emocionante, porque aquele é um lugar onde eu trabalho há muitos anos. Há muitas pessoas lá que são meus amigos, com as quais eu tenho relação de longa data. São pessoas que eu não tinha visto depois da morte do Bruno e que queriam me ver, que queriam me dar um abraço e eu abraçá-las, pessoas que a gente conhecia ou que conhecemos, eu e ele, juntos, lá.
Também foi incrível estar no Vale do Javari com a ministra indígena, do Ministério dos Povos Indígenas, sinalizando todo um novo tempo, uma esperança muito grande. E, claro, havia muita lembrança ali. Foi lá que eu e Bruno nos conhecemos, então foi forte em todos os sentidos. Um dos dias mais importantes da minha vida.
Mongabay: Conte um pouco sobre as atribuições do Departamento de Proteção Territorial e Povos Isolados e de Recente Contato e qual a pauta prioritária neste momento.
Beatriz Matos: Estamos estruturados para cuidar dessas duas pautas: a proteção dos territórios indígenas e as políticas para povos isolados e povos de recente contato.
Em abril, completamos dois meses aqui e, atualmente, nos voltamos muito a essas ações de desintrusão das Terras Indígenas que estão acontecendo. Também vimos acompanhando uma retomada de políticas que foram desestruturadas no último governo, como as ações da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), que vem fazendo diagnósticos da situação nas bases de proteção, do trabalho dos funcionários, de como está isso nos territórios.
Há um enfoque grande na Terra Indígena Yanomami, que é uma operação complexa e que precisa ter continuidade. Quando ela estiver, de fato, livre dos invasores, haverá ainda um longo trabalho de recuperação. Então, é necessário estarmos perto, assim como a Funai, nesse trabalho indigenista, propriamente dito, de acompanhamento da situação nas comunidades.
A sensação que dá é como se estivéssemos juntando os cacos, vendo as ruínas, o que sobrou e o que vai ter que ser reconstruído. É fundamental agora, para a gente, garantir a segurança nas Terras Indígenas, porque elas estão bastante deflagradas. A negligência do governo passado permitiu que ficassem invadidas, que certas regiões fossem tomadas por pessoas que não são dos territórios indígenas. Existe também uma relação com o tráfico de drogas em alguns lugares, então tem uma situação que requer, inclusive, muita consulta.
A gente está começando a estruturar planos de consulta para as populações indígenas afetadas, para conversarmos e entendermos quais são as prioridades de cada território, isso é muito importante.
Mongabay: Para que um leigo possa entender: como é feito o mapeamento dos povos isolados e de recente contato?
Beatriz Matos: O Brasil tem uma política do não-contato, que foi estabelecida no final da década de 1980, segundo a qual, a partir da referência da presença de um povo, são feitos estudos de monitoramento através, por exemplo, de expedições em terra e via satélite para entender o lugar que determinado grupo ocupa no território, por onde caminha…
Esses estudos são realizados justamente para ter indicativos do que precisa ser protegido. É decretada, então, uma portaria de restrição de uso, que determina um certo território no qual não se pode ter estranhos, a não ser pessoas que trabalham no órgão indigenista para fazer esse acompanhamento.
Não se tem mais aquela ideia de fazer o contato com determinada população. Você faz através de estudos, de uma metodologia que foi sendo desenvolvida pela própria Funai, por essas pessoas que trabalham nessa área do órgão. Uma vez determinado esse território, dessa maneira, não-direta, você restringe seu uso para uma futura demarcação.
Mongabay: Quem são os povos isolados? E quem são os povos de recente contato?
Beatriz Matos: É importante frisar, antes, que se tratam de categorias administrativas. Dizer isolados ou de recente contato não tem a ver com a condição desses povos, mas sim com como o Estado vai lidar com eles. Tem a ver com o fato de a política do Estado para aqueles grupos se dar dentro dessas categorias administrativas.
Os povos isolados são os que recusam a relação com o Estado brasileiro, não só com a sociedade nacional. O Estado olha para eles como aquele povo no qual se vai respeitar a decisão de não manter relações constantes conosco. Eles demonstram isso de variadas formas: às vezes são tapagens no mato, às vezes colocam o que chamamos de estrepes, que são espinhos para que as pessoas não se aproximem, ou pela fuga mesmo. Chega um grupo não-indígena e aquele povo considerado isolado imediatamente vai para outro lugar. Então, eles vão expressando esse desejo do não-contato e aí o Estado respeita essa decisão, que interpreta por esses atos de recusa.
Os de recente contato são aqueles que já iniciaram uma relação constante com o Estado ou com os não-indígenas, com a burocracia estatal também, então eles são atendidos pela Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), são atendidos pela própria Funai, só que se pensa uma série de políticas específicas para esses povos, de maneira a respeitar a autonomia que eles impõem, que eles querem ter. Em termos práticos: você precisa discutir como vai prestar uma assistência, por exemplo, a eles. Vamos supor que seja um povo que não tenha a relação com a comida que a gente tem, então não se vai lá para distribuir cesta básica. É uma forma de o Estado tratar de forma diferenciada um povo que está em um processo próprio de relação com o próprio Estado, com os não-indígenas.
Mongabay: No ano passado, chegou à imprensa a morte do “índio do buraco”, o último sobrevivente da etnia Tunaru, que vivia sozinho, isolado. O que é possível extrair dessa história, e o que poderia ter sido feito para evitar que essa etnia deixasse de existir?
Beatriz Matos: O que vimos foi o fim de um povo. A gente viu um genocídio acontecendo na nossa frente ano passado, mais um. Agora a gente está vendo outro aqui que estamos tentando remediar e ficou público, o dos Yanomami.
O que poderia ter sido feito para evitar? Isso teria que ter sido feito na década de 1970, quando o povo dele foi exterminado por uma frente expansionista. Através de uma restrição de uso. Através de monitoramento, de vigilância, de gente lá, de Polícia Federal. Hoje tem Força Nacional, enfim… tem de ter força de segurança para impedir que as pessoas mal-intencionadas entrem nesses territórios e promovam o genocídio.
A morte de um último homem, o último indivíduo de um povo, é algo que deveria fazer todo mundo parar para pensar de alguma maneira. É por isso que a gente ainda quer que aquele lugar se torne um memorial, que tenha sempre a lembrança desse genocídio, para que não se repita. Algo tem que ser feito pela memória do Tanaru.
Mongabay: O que muda, na prática, no trabalho junto a esses povos, com a criação do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato?
Beatriz Matos: Na verdade, o que muda é a criação do Ministério. O Ministério dos Povos Indígenas coloca a pauta, a questão indígena – e aí a questão dos isolados e dos de recente contato vai junto – no centro dos fóruns de decisão do país. Se tem uma reunião interministerial, você tem uma ministra indígena. Antes, essa pauta era repassada ao Ministério da Justiça, que é uma árvore com milhões de instituições. A Funai era mais uma. Agora, ela está em um centro de tomada de poder de decisão em um nível muito mais alto e de importância do que antes, que é como tem de estar.
Não se trata de uma questão subsidiária, uma questão pequena. É uma questão central no país, como a da igualdade racial. Isso muda completamente o lugar das pautas e dos indígenas na história do país. A gente está estruturando o ministério para que isso aconteça de fato. Está criado o espaço, agora precisamos fazê-lo acontecer concretamente. É isso que a ministra, as secretárias – que são mulheres indígenas em sua maioria –, pessoas de muito tempo de luta, que têm histórias com seus territórios, estão comprometidas a fazer.
Mongabay: O que representa para você, na sua história com o Bruno, ocupar esse cargo?
Beatriz Matos: É muito forte, porque se ele estivesse vivo talvez ocupasse esse cargo. Eu sinto que é uma continuidade do trabalho dele, porque a gente era parceiro, a gente trabalhava junto. A gente se conheceu lá no Javari. Quando eu tive os filhos, que eu tive dois meninos dele um atrás do outro, assim, foi meio na sequência, era parceria. Ele ia para campo e eu ficava com as crianças. Ele voltava e a gente discutia o que ele viveu lá e eu falava com ele o que eu vivi antes, quando eu estava indo para campo.
A gente andava discutindo a minha volta, como seria o revezamento – já que os filhos estavam maiores, não acordavam a noite inteira, tinham desmamado. Daria, inclusive, para levar eles, a gente tem uma casa lá, né, então nosso sonho era ir para o Javari com os meninos. Os dois têm nomes de indígenas lá do Javari. A nossa ideia era ir lá na casa, ficar lá, como intervalo de campo, ir para as aldeias, voltar cada um para o seu trabalho, mas ter nossas férias para fazer isso, sabe, esse era o nosso plano de vida. Foi interrompido, mas é uma forma dele não morrer, né? Dar uma continuidade a isso. Eu estou sozinha mas eu estou com ele, e com nossos filhos.
E estou, também, com um monte de gente de quem ele se cercava, que trabalhava com ele, que respeitava ele, que tinha uma parceria muito profunda com ele, também dessa vivência no mato, na luta. Eu sinto que eu estou com muita gente, meio que representando essa história, esse trabalho, e é um trabalho que tem que ser feito, então também é uma alegria muito grande ter a oportunidade desse ministério estar acontecendo para a gente fazer um monte de coisas que a gente sempre quis fazer. Tem um pouco esse espírito.
Eu acredito que os indígenas que estão nesses cargos também estão com esse espírito. A gente tem um lugar agora que conquistamos e que a gente vai fazer valer. Vai fazer o que a gente quer fazer. Tem muito desse espírito aqui no ministério, isso é muito bonito. É muito trabalho, são muitos desafios, claro, ainda não tem orçamento próprio, a gente está estruturando, tem todas essas questões… É um ministério novo, mas é muita força de trabalho e muita vontade. E muita gente de luta. O pessoal é aguerrido, não está de brincadeira, não.
Este texto foi originalmente publicado pela Mongabay Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.