Produto foi aplicado em tanques de criação de peixes com alto número de larvas em localidade no Acre entre 2017 e 2019, quando a região era uma das mais atingidas pela doença no País
Por Valéria Dias em Jornal da USP — Matar as larvas é mais fácil que dar fim aos mosquitos, pois é possível identificar onde estão os criadouros. Com isso em mente, pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP investigaram o uso de biolarvicidas para o combate à malária em uma região com alta ocorrência da doença. Os estudos revelaram o produto como estratégia eficiente para eliminar as larvas do mosquito vetor, o Anopheles, em Cruzeiro do Sul, no Acre. Além de ajudar a reduzir o número de casos na região, o biolarvicida também combateu outros insetos, como o Aedes aegypti e o Culex (o popular pernilongo).
Os dados estão no artigo Monthly biological larviciding associated with a tenfold decrease in larval density in fish farming ponds and reduced community-wide malaria incidence in northwestern Brazil, publicado no último mês de setembro na revista científica Parasites & Vectors.
Os biolarvicidas foram aplicados em tanques de criação de peixes na Vila Assis Brasil, entre setembro de 2017 e outubro de 2019. “Atualmente, a região apresenta de baixa a moderada transmissão da malária, porém, na época em que o projeto foi realizado, era uma das mais altas do Brasil”, informa ao Jornal da USP o pesquisador Pablo Secato Fontoura, o autor principal do estudo.
A malária é uma doença parasitária causada pelos protozoários Plasmodium vivax e P. falciparum. Há ainda outros dois tipos: P. ovale, que não é transmitido no Brasil; e o P. malariae, que existe no País, mas é raro. A doença é transmitida aos seres humanos através da picada da fêmea infectada do mosquito Anopheles. Porém, ao nascer, os mosquitos não carregam em si os plasmódios. Eles se infectam ao picar uma pessoa já infectada e que não está em tratamento. Os sintomas da doença são calafrios, febre alta e tremores. Entretanto, a malária assintomática já é uma realidade no Brasil: a pessoa infectada sente-se completamente saudável e não apresenta sintomas, mas pode transmitir a doença se for picada.
Fontoura explica que os tanques de piscicultura haviam sido criados a partir de uma política pública do Estado do Acre no início dos anos 2000 como uma alternativa de atividade econômica para a população local. Porém, com o passar dos anos, muitos tanques foram abandonados. Sem manutenção e com vegetação ao redor, eles se transformaram em um local perfeito para as fêmeas de Anopheles colocarem seus ovos.
A pesquisa de Pablo Fontoura integra o Projeto Temático da Fapesp Bases científicas para a eliminação da malária residual na Amazônia Brasileira, coordenado pelo professor Marcelo Urbano Ferreira, do Departamento de Parasitologia do ICB.
Desde 2018, a cada seis meses, Marcelo Urbano vai até o Acre com um grupo de pesquisadores para realizar inquéritos na população de Mâncio Lima, cidade próxima a Cruzeiro do Sul, a fim de identificar a prevalência de malária. As amostras passam por sequenciamento genético, que poderá fornecer dados sobre os protozoários da malária da região. Os resultados serão comparados com os encontrados em outras populações do Brasil, das Américas e de outras partes do mundo.
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Aplicação do biolarvicida
A primeira etapa da pesquisa de Pablo Fontoura consistiu em um projeto piloto, realizado no início de 2017, em tanques de criação de peixes na cidade acriana de Rodrigues Alves, que também apresentavam muitas larvas de Anopheles. Na ocasião, foram testados dois biolarvicidas que não causam nenhum mal à biodiversidade dos tanques. De acordo com o estudo, ambos foram eficientes em matar essas larvas. Esse projeto piloto gerou o artigo científico Field Efficacy of VectoMax FG and VectoLex CG Biological Larvicides for Malaria Vector Control in Northwestern Brazil, publicado em 2020 na revista Journal of Medical Entomology.
Para o projeto da Vila Assis Brasil, os pesquisadores acabaram optando pelo biolarvicida VectoMax FG, que, no estudo piloto, eliminou as larvas com mais rapidez e apresentou uma residualidade maior. No início, eles começaram trabalhando com 140 tanques. Ao longo do projeto, outros 30 foram adicionados à pesquisa, chegando, ao final do projeto, ao número de 170 tanques.
Nos 14 meses seguintes, os pesquisadores fizeram uma pré-intervenção, coletando larvas mês a mês e analisando a densidade delas na área dos tanques. A ideia era entender o comportamento desses insetos sem nenhum tipo de intervenção. Depois disso, o biolarvicida foi aplicado mensalmente, durante 11 meses, em todos os 170 tanques. A aplicação foi feita por meio de pulverizador costal.
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Fontoura conta que caracterizou os 170 tanques em três tipos: os naturais da região, que não passaram por muitas intervenções humanas para serem usados na piscicultura; os mistos, que tinha água natural mas sofreram algum tipo de intervenção para servirem de criadouro de peixes, e os artificiais, que foram escavados no terreno da propriedade e depois abastecidos com água.
O pesquisador analisou características como sombreamento, limpeza e densidade de larvas antes e depois da aplicação do biolarvicida. O produto foi aplicado nas bordas dos tanques no 21⁰ dia de cada mês. Nas duas semanas seguintes, eles fizeram o monitoramento e a coleta das larvas que iam surgindo. No 21⁰ dia do mês seguinte, faziam uma nova aplicação e uma nova coleta até o final do projeto. O pesquisador conta que encontrou uma diferença de residualidade do biolarvicida de acordo com cada tipo de tanque. E que os sombreados apresentaram um maior número de larvas. Atualmente, os pesquisadores estão realizando a análise molecular dessas larvas e, em breve, deve sair um novo artigo descrevendo os achados.
Para Fontoura, o uso de biolarvicida foi uma medida eficiente de combate ao mosquito vetor da malária, porque agiu nas formas imaturas. E além de matar as formas primárias do Anopheles, principalmente da espécie darlingi, o biolarvicida também foi capaz de eliminar outros mosquitos como o Aedes aegypti e o Culex (o popular pernilongo).
Inquérito populacional
Ao longo do projeto, foram realizados três inquéritos que mensuraram a prevalência de malária em 1.700 pessoas dentre a população local: um antes, outro durante e o último ao final da aplicação do biolarvicida nos tanques, para verificar qual foi o efeito da intervenção no número de casos da doença. Os dados foram comparados com a área controle, que não sofreu nenhum tipo de intervenção. Antes da aplicação do biolarvicida, o inquérito com 1.700 pessoas detectou 40 casos positivos para malária por meio do exame de gota espessa, comumente usado pelo Sistema Único de Saúde e preconizado pelo Ministério da Saúde para detectar a doença. Durante o período de aplicação do produto, eles encontraram oito casos positivos. No final do projeto, foram apenas dois casos. Para todos os casos positivos, a pessoa recebia a medicação padrão para a doença. Esses resultados comprovam que o biolarvicida foi capaz de exterminar as larvas do mosquito transmissor da malária.
Além do exame de gota espessa, os pesquisadores também realizaram nos participantes o exame PCR, que detecta a doença por via molecular. As amostras para ambos os testes foram coletadas simultaneamente.
O exame de gota espessa é disponibilizado nos postos de Cruzeiro do Sul e o resultado sai no mesmo dia. Já as amostras para o exame de PCR foram congeladas e encaminhadas para o laboratório do professor Marcelo Urbano Ferreira, no ICB, em São Paulo, pois exigem uma infraestrutura maior, o que acaba limitando sua realização na cidade acriana.
“A ideia de usar o PCR era apenas para visualizar o quanto a gente poderia estar perdendo na detecção da doença, porque a malária vivax, principalmente, tem um número alto de assintomáticos, pessoas que estão com malária, não apresentam sintomas, mas transmitem a doença”, informa Fontoura. Ele explica que 90% da estratégia de busca da doença leva em conta que a pessoa procure o sistema de saúde mediante a apresentação de sintomas. Se não há sintomas, ela não busca ajuda médica e o caso não é notificado.
Outro ponto é que a malária vivax tem carga parasitária baixa no sangue e, muitas vezes, o exame de gota espessa não consegue detectar a doença e o diagnóstico sai negativo. “O PCR consegue apontar essas lacunas”, elucida o pesquisador, antecipando que está para sair um outro artigo científico a respeito.
No primeiro inquérito do PCR, foram encontrados 169 casos positivos para malária. No segundo, 147. E, no terceiro, 55 casos. “O método molecular sempre vai apresentar mais casos. Então, podemos levantar uma discussão: até que ponto o exame de gota espessa consegue detectar toda a massa parasitária?”, questiona o pesquisador.
Algumas limitações
Sobre o uso desse biolarvicida como alternativa de combate à malária, Marcelo Urbano aponta que uma das limitações é o alto custo do produto testado para uma prefeitura do interior da Amazônia. “Mas, em outros países, como em Dar es Salaam, capital da Tanzânia, há grandes programas de aplicação regular de biolarvicidas para controlar a malária urbana”, informa o professor.
Pablo Fontoura acrescenta que, no caso da malária, as ações de controle são focadas no tratamento das pessoas infectadas e no combate aos mosquitos adultos (borrifação nos domicílios e uso de mosquiteiros impregnados com produtos inseticidas). Segundo o pesquisador, municípios e estados têm autonomia para usar biolarvicidas, desde que adquiram o produto. Mas há o problema do custo e da dificuldade de importação, dependendo da empresa fornecedora. “Manaus, por exemplo, é um município que utiliza em algumas áreas como medida complementar de controle do Anopheles”, diz.
Fontoura explica que, apesar de não fornecer o produto, o Ministério da Saúde indica a estratégia como uma medida complementar e eficaz de controle, considerando as áreas específicas de uso, como tanques de piscicultura e áreas de pequenas coleções de água. “Certamente há uma necessidade de estudos, com um bom delineamento, sobre a utilização dessa estratégia em diferentes cenários de transmissão, além de uma maior discussão sobre o tema conciliando a academia (dados científicos) e o Programa Nacional de Controle da Malária”, finaliza.
De segunda a segunda – e até debaixo de chuva!
Por fim, Fontoura destaca a importante contribuição das secretarias de Saúde de Mâncio Lima, Rodrigues Alves e Cruzeiro do Sul para a pesquisa e, principalmente, da equipe de funcionários municipais que acompanhou o pesquisador durante todos os dias de realização do projeto, inclusive aos domingos e feriados – e até mesmo debaixo de chuva -, tanto para coletar as larvas nos tanques da Vila Assis Brasil, como para a aplicação do biolarvicida. São eles: Anderson da Costa, Francismar Ribeiro e Marcílio Ferreira.+ Mais
Fontoura, que atualmente trabalha no Ministério da Saúde, em Brasília, atuando na área de arboviroses (doenças transmitidas por mosquitos), ressalta a importância do período de um ano em que esteve na Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, trabalhando com a professora Márcia Castro, uma das colaboradoras da pesquisa.
Além da Fapesp, o projeto tem financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Saúde do Brasil e do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Institutos Nacionais de Saúde (NIAID/NIH), dos Estados Unidos.
Em 2018, a jornalista Valéria Dias e a fotógrafa Cecília Bastos viajaram ao Acre para acompanhar a pesquisa do professor Marcelo Urbano e do pesquisador Pablo Fontoura. Veja mais no vídeo abaixo:https://www.youtube.com/embed/bxw8kqdwOgQ?controls=1&rel=0&playsinline=0&modestbranding=0&autoplay=0&enablejsapi=1&origin=https%3A%2F%2Fjornal.usp.br&widgetid=1
Mais informações: e-mails pablo.fontoura@saude.gov.br, com Pablo Secato Fontoura, e muferrei@usp.br, com Marcelo Urbano Ferreira