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Roupas feitas por bactérias já podem ser encontradas no Brasil. Pioneirismo cabe à startup carioca Biotecam, incubada na UFRJ

Amostra do biotecido Microsilk, criado pela empresa Bolt Threads. Imagem: Bolt Threads/Divulgação

Um grupo de micro-organismos vem se destacando nos últimos anos em uma aplicação inusitada na indústria da moda. Eles têm sido usados para a fabricação de biotecidos, material oriundo de processos biotecnológicos que surge como alternativa sustentável, embora pequena, às fibras vegetais, animais ou sintéticas usadas pelo setor têxtil. As biovestimentas já podem ser encontradas no Brasil. O pioneirismo cabe à startup carioca Biotecam, incubada no Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ). A mesma bactéria do gênero Acetobacter encontrada no vinagre é utilizada pelos engenheiros da empresa para formar um filme de celulose que ganha o aspecto de couro e transforma-se em roupas e acessórios.

Wim Degrave, químico de origem belga e um dos fundadores da Biotecam, explica que o biotecido Texticel é, por enquanto, direcionado a um segmento de mercado, formado por consumidores com maior preocupação ambiental. A produção da startup ainda é muito pequena, de apenas 4 metros quadrados (m2) por mês, mas Degrave já prevê um aumento de escala, graças a um projeto aprovado recentemente para automação do processo produtivo.

“Teremos financiamento da Embrapii [Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial] e do Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] e fizemos uma parceria com o Polo de Inovação do IFF [Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense], no município de Campos [RJ]”, informa o engenheiro químico Ricardo Amaral Remer, também sócio da Biotecam. O valor do financiamento não foi revelado pela empresa.

Nos Estados Unidos, a empresa californiana Bolt Threads já lançou dois diferentes biotecidos. O primeiro é uma microsseda feita com fios similares aos de teias de aranha, só que produzidos por leveduras bioengenheiradas com genes de aranha. Batizado de Microsilk, o biomaterial foi usado pela estilista inglesa Stella McCartney para a produção de várias peças, entre elas um vestido apresentado no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, em 2017. O outro tecido é uma espécie de couro biofabricado a partir de células de micélio, cujo nome comercial é Mylo, usado para fazer roupas, cintos e sapatos. Micélio é a parte do sistema de filamentos de alguns tipos de fungos, como os cogumelos, que crescem debaixo do solo.

Criada em 2009 por três cientistas norte-americanos com doutorado em química, bioengenharia e biofísica – Dan Widmaier, David Breslaeur e Ethan Mirsky, respectivamente –, a Bolt Threads foi eleita em 2019 uma das companhias mais inovadoras do mundo pela revista norte-americana de negócios Fast Company. Com 96 funcionários, sendo 45 pesquisadores e engenheiros, ela já captou US$ 123 milhões (cerca de R$ 615 milhões) de fundos de investimento.

Biotecido
Mylo é um tecido com aparência de couro produzido a partir de fungos. Imagem: Bolt Threads/Divulgação

Para a engenheira química especialista em biotecnologia industrial Silgia Aparecida da Costa, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Têxtil e Moda da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), o desafio de trabalhar com biotecidos é a ampliação de escala – obstáculo que a Biotecam tenta transpor. “A indústria têxtil demanda produção de altos volumes. Hoje, os biotecidos podem ser aplicados em acessórios e na produção de roupas em pequena escala, mas creio que ainda não são viáveis para fabricação de vestuários”, diz. “Trata-se de um produto de nicho.”

Biotecidos que simulam couro são pesquisados pelo menos desde a década de 2000 pela designer de moda londrina Suzanne Lee. A estilista já criou jaquetas, saias, camisas e sapatos com o material. À frente do projeto de pesquisa chamado BioCouture, financiado pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanidades, do Reino Unido, Lee trabalhou com cientistas dos setores de biotecnologia e nanotecnologia para desenvolver tecidos com a celulose bacteriana.

Ela defende que a biofabricação será a protagonista da próxima revolução industrial. E que as novas fábricas serão células vivas, formadas por bactérias, algas, fungos e leveduras. “Por meio da biofabricação, substituímos muitas atividades intensivas desenvolvidas pelo homem por uma atividade biológica”, defendeu Lee em um TED Talk de julho de 2019. “Com a biologia, sem nenhuma intervenção minha além de estabelecer as condições iniciais de crescimento, produzimos um material útil e sustentável.”

No Brasil, a Biotecam, cuja atividade principal é a construção de sistemas de purificação de água para estações de tratamento e para lagos e rios usados na piscicultura, passou a investir no ramo dos tecidos bacterianos há três anos, ao ser convidada para participar de uma iniciativa do Museu do Amanhã, também na capital fluminense. “Eles tinham um projeto para fazer wearables [dispositivos vestíveis], inserindo microeletrônica em peças de roupa. Daí, nos pediram que colaborássemos com a elaboração de um tecido celulósico à base de bactérias que seria a matéria-prima para os experimentos”, contou Degrave.

A nova área cresceu e ocupa hoje quase 50% do espaço físico da empresa. Os sócios querem expandir a atual produção mensal para 30 m2. Entre os clientes da startup está a marca de roupas sustentáveis Movin, do Rio de Janeiro, que já produziu algumas peças com o material. “Vendemos nosso tecido bacteriano para estilistas e artistas que fazem um trabalho mais experimental”, conta o engenheiro químico Hugo Vidaurre Mendes, o terceiro sócio do negócio. “Já participamos com eles de algumas feiras de moda e o produto sempre chama a atenção pela semelhança com o couro.” Além de exigir um volume muito menor de água para a fabricação, em comparação com o algodão, o Texticel é biodegradável e compostável, segundo Mendes.

A produção do biotecido gira em torno de um mês e depende de sua espessura e da cor com que será tingido, que vai de palha até um marrom mais escuro. O preço da folha de tecido, cuja placa padrão mede 30 por 50 centímetros (cm), varia entre R$ 80 e R$ 180. Conforme ganhar escala, o preço deverá baixar.

A pesquisa feita em universidades também contribui para aprimorar a celulose bacteriana voltada à fabricação de tecidos. Após investigar, durante a graduação e o mestrado na Universidade do Porto, em Portugal, como nanopartículas de sílica conferiam novas propriedades a tecidos de algodão, a química portuguesa Andreia Sofia de Sousa Monteiro mudou-se para o Brasil e passou a trabalhar com celulose bacteriana.

Em 2019, concluiu o doutorado no Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (IQ-Unesp), em Araraquara (SP), com apoio da FAPESP, no qual recorreu à nanotecnologia para incorporar novas propriedades às membranas de celulose bacteriana. Ela modificou quimicamente a superfície do material para torná-lo repelente a água e a outros líquidos. “Trabalhei nas propriedades de autolimpeza e de facilidade de limpeza, conhecidas no meio como self-cleaning e easy cleaning, respectivamente”, disse a pesquisadora.

“Na membrana com a propriedade de facilidade de limpeza, líquidos, como o suor humano, ou outras sujidades são repelidos pelo tecido”, explica Monteiro. Para obter esse resultado, ela adicionou nanopartículas de sílica ao material. Já a membrana com poder autolimpante foi elaborada com um compósito de nanopartículas de sílica com dióxido de titânio. Nesse caso, a sujeira é inicialmente absorvida pelo tecido para, em seguida, ser degradada ao ser exposta a uma fonte de luz ultravioleta (UV).

Por conta dessas características, Andreia Monteiro defende que o tecido bacteriano possa vir a ser usado para confecção de jalecos autolimpantes de profissionais da saúde. “No período de descanso, o médico pode colocar o jaleco em uma estrutura com luz UV, e a roupa ficará livre de micro-organismos”, exemplifica.

A pesquisa de Monteiro foi feita sob a orientação do químico Sidney José Lima Ribeiro, que há 15 anos promove estudos no IQ-Unesp de Araraquara com celulose produzida por bactérias, especialmente pela espécie Gluconacetobacter xylinus. “A bactéria produz uma manta de celulose pura e, dependendo do tratamento que recebe, de secagem principalmente, vira um tecido de celulose”, conta Ribeiro.

Ribeiro estuda atualmente o emprego das membranas de celulose para a produção de substratos para telas flexíveis de LED, biossensores, embalagens inteligentes, entre outros produtos. Com o uso conjunto de outros polímeros, o pesquisador já conseguiu elaborar filmes de celulose transparentes e biodegradáveis, adequados a essas aplicações. “Esses são alguns dos dispositivos multifuncionais baseados em celulose bacteriana que estamos desenvolvendo e estudando em nosso laboratório”, conta Ribeiro, eleito no ano passado membro da Academia Europeia de Ciências.


Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.

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