Contrariando teorias da primatologia, estudo revela que, em um hábitat com alta pressão de caça, o risco de predação pesa mais no deslocamento dos primatas do que a disponibilidade de alimentos. Os animais passam menos tempo em áreas percebidas como “mais perigosas”, ainda que mais ricas em biomassa vegetal e invertebrados
Karina Ninni | Agência FAPESP – Pesquisa realizada na Reserva Biológica de Una (BA) revela que, em um hábitat com alta pressão de caça, o risco de predação tem forte impacto sobre o comportamento de macacos-prego-do-peito-amarelo (Sapajus xanthosternos), fazendo até mesmo com que os animais evitem áreas ricas em biomassa vegetal e invertebrados, suas principais fontes de alimento.
As observações do estudo foram divulgadas no American Journal of Primatology.
“Muitas teorias na área da primatologia partem do princípio de que a pressão para encontrar alimentos é mais importante do que a pressão da predação. Neste trabalho conseguimos mostrar que, em Una, o risco de predação, inclusive pelos humanos, é mais importante para os macacos decidirem onde ficar. A pressão de caça faz com que esses animais fiquem menos tempo nos lugares onde há mais comida”, resume Patrícia Izar, professora do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP).
O artigo é fruto do doutorado de Priscila Suscke, primeira autora do trabalho, realizado em Una, onde há “um mosaico de hábitats” incluindo três diferentes ambientes florestais predominantes: floresta madura, floresta secundária e um sistema agroflorestal denominado cabruca (no qual cacaueiros plantados substituíram as árvores mais baixas e crescem à sombra das mais altas).
“Não é que o alimento não influencie o uso da área, mas nesse contexto da reserva do Una, em que há diferentes ambientes de paisagem florestal, cada um desses ambientes contribui com diferentes quantidades de alimentos – e a cada um deles se atribuem níveis de risco diversos [no caso, o risco de predação e de caça]. Pesamos o que estava influenciando o grupo de macacos a usar esses três ambientes. E o que encontramos é que o grupo deixou de ir à área que ofertava uma boa quantidade de alimentos por conta do risco”, esclarece Suscke.
A pesquisa teve apoio da FAPESP por meio de Bolsa de Doutorado no Brasil, concedida à Suscke, e de Auxílio à Pesquisa Regular, concedida a Izar. “Toda a minha pesquisa com primatas, que já tem 20 anos, foi fundamentalmente financiada pela Fundação, embora eu tenha tido também apoio de outras agências”, diz a primatóloga.
Coleta de dados
Para recolher as informações no campo, Suscke e mais três observadores treinados monitoraram um grupo de macacos-prego que variava entre 32 e 37 indivíduos. Eles seguiram o grupo simultaneamente e começaram a coletar dados somente após a concordância entre suas observações atingir 85% de precisão. O período de treinamento durou cerca de três meses. Todas as observações de ocorrências foram registradas com o auxílio de um GPS e, portanto, todas as ocorrências relatadas foram georreferenciadas.
“Para estimar a porção de terra utilizada de fato pelos macacos para sobrevivência, a área de vida, que é menor do que a área da unidade de conservação, nós levamos em conta todos os pontos georreferenciados, incluindo os pontos de alimentação e de dormida dos macacos”, explica a geógrafa Andrea Presotto, segunda autora do artigo e professora do Departamento de Geografia e Geociências da Universidade de Salisbury (Estados Unidos).
O grupo avaliou ainda a disponibilidade de alimento com “armadilhas” para frutos (bandejas retangulares de alumínio fixadas no chão) e para invertebrados (cavidades no chão, nas quais se coloca um recipiente para a coleta do invertebrado; o animal cai no buraco e não consegue sair).
Para obter os dados comportamentais, foi realizada uma amostragem de varredura: a cada intervalo de 15 minutos, os observadores registravam o que cada indivíduo estava fazendo e as atividades foram divididas em categorias (descansando, se locomovendo, se alimentando, interagindo com outros, em vigilância ou outras atividades). E, para estimar a percepção de risco, foram registrados os alarmes vocalizados e a ocorrência de comportamento de vigilância em cada tipo de hábitat, também devidamente georreferenciado (bem como as reações dos animais após os alarmes, que foram usadas para investigar o risco de predação percebido e sua influência no comportamento animal).
“Dessa forma, temos o comportamento dos macacos com relação ao alimento, ao predador e ao local em que eles se encontram. E temos também as medidas objetivas da área de vida deles: as características dos diferentes ambientes, o quanto eles têm de comida e o risco de predação absoluto, que é a medida de densidade dos predadores na área”, ressalta Izar.
Paisagem do medo
Com base nos dados coletados em campo, Presotto gerou mapas para cinco variáveis de risco de predação espacial: pressão de caça, de predadores terrestres, de predadores aéreos e a ocorrência de comportamentos de vigilância e de silêncio dos macacos-prego, de acordo com os três diferentes ambientes florestais predominantes na Reserva Biológica. Tal abordagem é conhecida pelo termo “paisagem do medo”: um modelo visual que ajuda a explicar como o medo pode alterar o uso de uma área por um animal que tenta reduzir sua vulnerabilidade à predação.
“A intensidade de cada variável coletada foi calculada no GIS, por meio do método de densidade de kernel, que contabiliza, para uma determinada área, quantas vezes uma ocorrência aconteceu. Por exemplo: cada vez que um ataque de predador aéreo era observado, marcava-se o ponto no GPS. Como todas as ocorrências foram anotadas, o modelo diz onde elas aconteceram mais”, explica a geógrafa.
Os mapas e o modelo estatístico espacial gerados por Presotto com a representação das variáveis de risco de predação espacial confirmam as hipóteses iniciais do grupo. “A evidência de caça humana foi maior na cabruca, mas também encontrada nas matas maduras e secundárias, nas zonas de transição para a cabruca. E os macacos ficaram mais em silêncio na cabruca do que nas duas outras paisagens. A percepção de risco de predadores terrestres foi maior na floresta secundária e a de predadores aéreos foi maior na cabruca e em locais dentro de florestas maduras e secundárias, principalmente nas zonas de transição para a cabruca. E os macacos ficaram frequentemente mais vigilantes na cabruca e dentro de uma grande área de floresta secundária”, resume a pesquisadora, que vem trabalhando em um grande banco de dados georreferenciado sobre o tema.
Suscke chama a atenção para as diferenças na reação dos macacos aos predadores. “O que importa é o risco percebido de predação: como a presa percebe, na paisagem, onde há mais ou menos risco de ser predada. E à medida que o trabalho foi se refinando, percebeu-se que diferentes predadores afetam diferentemente a percepção e o comportamento da presa. Assim, conseguimos fazer medidas separadas para predadores aéreos, terrestres e caçadores. E conseguimos mostrar que a caça é importante na determinação do padrão de uso da área pelos macacos. Ou seja: que o risco da caça afetou negativamente o uso da área por eles.”
O grupo também estuda macacos-prego em duas outras localidades: a Fazenda Boa Vista, no Piauí, e o Parque Estadual Carlos Botelho, em São Paulo. “Como temos estudos comparativos, podemos afirmar que os macacos da Rebio do Una têm maior percepção de risco de predação pela ocorrência maior de comportamentos de alarme para predador, como silenciar ou congelar, e estas parecem ser reações específicas para a caça”, complementa Izar, lembrando que os macacos-prego são, naturalmente, extremamente barulhentos. “Nosso artigo mostra mais um efeito negativo da pressão antrópica sobre o comportamento animal.”
Macaco não é pet
Para Suscke, o artigo estimula também uma reflexão sobre políticas públicas. “A caça tem um efeito negativo importante. Durante muitos anos, foram criadas Unidades de Conservação, uma política louvável, mas os nossos resultados reforçam que é preciso cuidar bem delas, fiscalizar. E também fazer um trabalho de conscientização junto à população em geral, pois existe todo tipo de caça, infelizmente: caça oportunista, caça esportiva, caça para alimentação, para o tráfico de animais. Não é incomum ver macacos transformados em pets. Nesse caso, geralmente, se caça a mãe e se vende o filhote. No caso do macaco-prego-de-peito-amarelo, estamos falando de uma espécie criticamente ameaçada de extinção, então é uma questão difícil de ser resolvida e tem de ser objeto de políticas públicas mais rígidas.”
Izar lembra que o recente reflorescimento da discussão sobre a “lista pet”, norma do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que estipula as espécies de animais silvestres que podem ser comercializados como animais de estimação, é uma ameaça aos primatas. “Existe hoje uma pressão forte no país, tanto que a Sociedade Brasileira de Primatologia lançou a campanha ‘Macaco não é pet’. A legalização da criação comercial de animais silvestres, nós sabemos, leva a um aumento do tráfico ilegal de animais capturados no hábitat natural, pois o animal criado comercialmente é muito mais caro.”
O artigo The role of hunting on Sapajus xanthosternos’ landscape of fear in the Atlantic Forest, Brazil pode ser lido em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ajp.23243.