Por Matheus Lopes Quirino em Mongabay – Sinatra está inquieto. Dá voltas em torno de uma amostra de algodão enquanto ladra, cava e funga. O tufo não foi parar ali por acaso, e também não é a primeira vez que o cão se comporta assim. Vira-latas malhado, forte, de olhos atentos, ele recebe treinamento para farejar vestígios do novo coronavírus. No sítio em que vive, no município de Campo Limpo Paulista, no interior do estado de São Paulo, Sinatra é um aluno avançado de uma escola de “sommeliers” de coronavírus. Ele faz parte de uma dupla pronta para identificar a peste que agora assola os humanos, enquanto outros onze caninos recebem treinamento.
Além de serem imunes à covid-19, cães possuem superfaro. De focinhos a postos, ostentam cerca de 300 milhões de receptores olfativos, enquanto os humanos têm 5 milhões. Ganhando de 60 a 1 no campo nasal, cachorros têm quarenta vezes mais capacidade de assimilar odores a partir de suas sinapses. Não por acaso, estão sendo recrutados ao redor do mundo por cientistas que buscam métodos rápidos e práticos para identificar os humanos que hospedam o vírus.
Diversos estudos comprovam a vocação. Na Universidade de Medicina de Hannover, na Alemanha, pesquisadores avançam nos testes com cães farejadores para detecção de compostos orgânicos voláteis. Em outros países da Europa os resultados também são promissores. Em outubro, foi no aeroporto de Helsinque, na Finlândia, que uma matilha bem comportada foi flagrada por fotógrafos em horário de trabalho. Os cães estavam desde setembro sendo testados na terceira fase do estudo.
No Brasil, quem chefia as pesquisas com os cachorros é o professor Anísio Francisco Soares, da Universidade Federal Rural de Pernambuco. “É importante lembrar que o coronavírus não tem cheiro. São os compostos voláteis que evaporam com o suor que vão exalar determinado odor, diferente de quem não está contaminado”, conta ele. Coordenador de uma heroica equipe de professores, estudantes e colaboradores, Soares faz o meio de campo com a Escola Nacional de Alfort, na França, parceira da UFRPE nas pesquisas com os cães.
Os cientistas começaram a avançar na pesquisa com os cães ainda em abril, quando a pandemia já tomava dimensões irreversíveis. “[A pesquisa] passou por comissões de ética, não só na instância humana, mas também na comissão animal. Foi até tranquilo conseguir as licenças para treinar os cachorros”, explicou Soares. Cães não contraem coronavírus, ao contrário do que acha uma parcela da militância nas redes sociais. “É importante deixar claro, para evitar boatos de gente inocente no Facebook: nós não colocamos nenhum animal em risco”, frisa o biólogo.
Iniciada a pesquisa, enquanto em Pernambuco o professor arregaçava as mangas organizando o laboratório, no Rio de Janeiro os imbróglios gerais passavam pela batuta dos doutores Dominique Grandjean e Clothilde Lecoq Julien, responsáveis pelas operações da Amarante, instituição que gere projetos de risco, e que fornece os animais para Jorge Pereira, o treinador dos cães, entre eles Sinatra, com base em um sítio em Campo Limpo Paulista.
Em parceria com a Secretaria de Saúde do Município de Paudalho (PE), o professor Anísio Soares se surpreendeu com a boa vontade dos voluntários com a pesquisa. “Pedimos para o pessoal que sentisse determinados sintomas — febre, calafrios, tosse, — pegasse uma bolinha de algodão e passasse por 20 minutos em cada axila”. Com duas amostras, uma para a UFRPE, outra diretamente enviada ao canil no interior de São Paulo, a técnica era aparentemente simples. “Todos os voluntários faziam o teste RT-PCR de covid [teste padrão-ouro, com 99% de eficácia, que detecta o RNA do vírus nas secreções nasais e da garganta]. Às vezes até repetíamos a coleta em outra oportunidade, pois a boa vontade era tanta do pessoal que alguns até tomavam banho, passavam perfume para fazer parte da experiência… e não pode!”, explicou Soares.
“É necessário seguir os protocolos, e todos os voluntários que colaboraram não podiam estar em nenhum tipo de tratamento para covid. Eu brinco que o odor do sabonete interfere, mas interfere o dos remédios também, seja ele qual for. Fomos rigorosos com isso, mas mesmo assim problemas inesperados surgem…”. Com as amostras viajando pelo país até os cachorros, a pesquisa ia de vento em popa até um obstáculo que intrigou: “As coisas iam bem, os testes avançavam, com a eficácia de 90%, e aí que surgiu o paciente de número 41”, disse o professor.
“Ele tinha dado negativo para o teste RT-PCR, mas, em contato com a amostra, o cachorro latiu”. O faro habilidoso do cão sentiu que na amostra ainda existiam vestígios do vírus. “O paciente 41 já tinha desenvolvido anticorpos. No final das contas, o cachorro acertou”. Depois de 15 dias, já tendo criado anticorpos no sistema imunológico, o teste de RT-PCR não era mais eficaz, naquele caso. Foi pelo suor do contaminado que o cão identificou os compostos orgânicos.
Cães farejadores ficaram famosos por integrarem a Polícia Federal, fazendo pente fino nos aeroportos e fronteiras na busca de entorpecentes e armas. Mas, além de sentir o cheiro de drogas e pólvora, os cachorros também identificam alguns tipos de diabetes, malária e alguns cânceres, como o de próstata. Na fase dois, a matilha treinada em Campo Limpo Paulista seguirá para Paudalho, onde a UFRPE firmou parceria com a secretaria de saúde do município.
Contente com o avanço nos estudos, enquanto vislumbra o cenário internacional, o professor Anísio Soares trava outra luta em seu laboratório: o alto custo de equipamentos para a pesquisa. Embora seja financiada por universidades do Brasil e da França, os pesquisadores trabalham sempre no limite das possibilidades. “Os equipamentos são caríssimos, tem máquina que custa centenas de milhares de dólares”, diz. Embora cada vez mais perto do sonho da patrulha canina, no Brasil ainda há quem fique com o rabo entre as pernas com a ciência, crendo em negacionismos que não levam a nada, principalmente quando se está em um mato sem cachorro.
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