Carne cultivada, carne de laboratório ou carne artificial é a carne produzida em laboratório por meio de técnicas de bioengenharia – ou seja, sem abate. Este setor emergente visa desestabilizar as formas convencionais de produção de produtos de origem animal, com o objetivo de reduzir o número de animais mortos para alimentação e criar um sistema alimentar global mais sustentável e ético.
A carne cultivada é produzida a partir de células animais, começando com a retirada indolor de uma amostra de tecido muscular de um animal vivo, que é então transformada em massas de células. Amostras de vacas, galinhas, coelhos, patos, camarões e até atuns foram levadas a laboratórios na tentativa de recriar partes de seus corpos sem ter de criar, confinar ou abater os próprios animais.
Em 2013, Mark Post, professor da Universidade de Maastricht, apresentou o primeiro “hambúrguer de laboratório”, ou seja, produzido a partir de carne cultivada. A experiência, financiada por Sergey Brin, co-fundador do Google, foi resultado de 5 anos de pesquisa e surgiu a partir da reprodução de células-tronco bovinas, cultivadas e alimentadas com nutrientes em laboratório.
Desde então, o sonho de poder produzir carne a partir da “agricultura celular”, sem a pecuária, ganhou apoio tanto de ativistas dos direitos dos animais quanto, principalmente, de atores do setor. Um grande número de start-ups foi criado, muitas delas patrocinadas por grandes nomes da indústria de alimentos.
Com esse objetivo em mente, em 2018 a Food And Drug Administration dos Estados Unidos estabeleceu um marco regulatório e abriu caminho para a comercialização desses produtos. Mas a carne cultivada seria uma revolução alimentar ou uma utopia impossível? Quais os dilemas éticos, econômicos e psicossociais que seu processo de produção envolve? E, para além das questões teóricas, quais são os riscos e os benefícios que a criação de carne cultivada implica?
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) estima que a demanda por carne vai aumentar em mais de dois terços nos próximos 40 anos – e o problema é que os métodos de produção atuais não são nada sustentáveis.
A pecuária contribui para o agravamento das mudanças climáticas por meio da liberação descontrolada de metano, um gás de efeito estufa 20 vezes mais potente do que o dióxido de carbono. O aumento da demanda aumentará significativamente os níveis de metano, dióxido de carbono e óxido nitroso e causará perda de biodiversidade.
Outro grande problema causado pela indústria agropecuária é o elevado consumo de água. Cultivar plantas para a alimentação animal representa 56% de toda a água consumida nos EUA. O cultivo de grãos consumidos pelos animais demanda uma quantidade enorme de água, que, somada ao consumo direto dos bichos, representa, segundo um estudo, faixas de consumo de água de 34-76 trilhões de litros por ano.
Além disso, a pecuária é a principal causa da extinção de espécies, zonas mortas nos oceanos, poluição da água e destruição de habitats. O uso disseminado de pesticidas, herbicidas e fertilizantes químicos utilizados na produção de culturas para alimentação animal interfere nos sistemas de reprodução dos animais e na saúde do consumidor final. E, segundo um relatório da organização Mercy for animals e um estudo publicado na revista científica Nova Economia, ela também é a principal causa direta de desmatamento na Amazônia.
Diante deste cenário, a carne de laboratório surge como uma opção sustentável que mudará para sempre a maneira como comemos e encaramos os alimentos. Uma pesquisa realizada em 2011 por pesquisadores da Universidade de Oxford sugere que a produção de carne bovina cultivada poderia usar até 99% menos espaço do que o necessário para os métodos atuais de criação de gado.
O estudo também aponta que as emissões de gases de efeito estufa e outros prejuízos ao meio ambiente são substancialmente menores quando se produz carne cultivada, em comparação com os métodos utilizados para produzir carne de verdade.
Apesar dos resultados positivos revelados pela pesquisa da equipe de Oxford, estudos mais recentes sugerem que, no longo prazo, o impacto ambiental da carne cultivada em laboratório poderá ser maior do que o da pecuária. Ao contrário da investigação anterior, estes estudos consideraram não só a natureza dos gases emitidos, mas também os custos energéticos das infraestruturas necessárias à cultura de células.
Os animais têm um sistema imunológico que os protege naturalmente contra infecções bacterianas e outras. Este não é o caso da cultura de células e, em um ambiente rico em nutrientes, as bactérias se multiplicam muito mais rápido do que as células animais. Para evitar a produção de um bife com mais bactérias do que carne, é essencial evitar a contaminação – e isso requer um alto nível de esterilidade.
Na indústria farmacêutica, por exemplo, as culturas de células são realizadas em “salas limpas” altamente controladas e higienizadas. A esterilidade é geralmente garantida pelo uso de materiais plásticos descartáveis.
Isso reduz significativamente o risco de contaminação, mas gera resíduos plásticos, cujo nível nos ecossistemas já é alarmante. Alguns dos materiais de cultura são feitos de aço inoxidável e, portanto, podem ser esterilizados a vapor ou lavados com detergentes, mas esses tratamentos também têm um custo ambiental.
Embora poucos estudos tenham sido feitos sobre o impacto ambiental da indústria farmacêutica, os dados disponíveis sugerem que sua pegada de carbono pode ser 55% maior do que a da indústria automotiva.
A carne de laboratório é mais saudável do que a carne tradicional? Segundo especialistas, ela pode ser. Se você se preocupa com a contaminação da carne pelas fezes, a carne cultivada pode ser uma boa alternativa, uma vez que a E. coli pode ser totalmente eliminada no laboratório e nas instalações de produção.
O uso de antibióticos, um problema grave associado à produção de carne, também seria eliminado. A Organização Mundial de Saúde apontou, em um relatório, que cerca de 700 mil pessoas morrem de doenças resistentes a medicamentos a cada ano, com esse número subindo para potencialmente 10 milhões até 2050. Por isso, eliminar a necessidade do uso de antibióticos na produção de carne não é apenas mais saudável: é urgentemente necessário.
Os níveis de gordura e colesterol na carne cultivada também podem ser controlados, levando a resultados potencialmente positivos para a saúde, uma vez que níveis elevados de colesterol no sangue podem levar a condições como doenças cardiovasculares. A carne de laboratório também pode ser fortificada com vitaminas e minerais para fornecer nutrição máxima, assim como certos produtos são hoje, como leite, cereais e pão.
Segundo o biólogo Eric Muraille, em artigo publicado no periódico The Conversation, o volume muscular dos animais aumenta lentamente e leva tempo para que as células musculares satélites se multipliquem.
Para obter o que um animal produz ao longo de vários anos em apenas algumas semanas de cultivo in vitro, é necessário estimular continuamente a proliferação das células satélites com fatores de crescimento, incluindo hormônios sexuais anabólicos.
Esses hormônios estão presentes em animais e humanos, bem como em carnes convencionais. Eles estimulam a síntese de proteínas nas células, resultando em aumento da massa muscular. No entanto, a superexposição a eles estabeleceu efeitos deletérios.
Na Europa, a utilização de hormônios de crescimento na agricultura está proibida desde 1981 pela Directiva 81/602. Esta proibição foi confirmada em 2003 pela diretiva 2003/74 e validada pela Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) em 2007. Mas qual será a concentração final desses hormônios na carne cultivada?
Além disso, um número crescente de estudos documentou a toxicidade de produtos plásticos comumente usados. Os disruptores endócrinos, compostos que podem interferir no sistema hormonal e desorganizá-lo, podem ser transferidos das embalagens plásticas para os alimentos. Sem surpresa, o mesmo fenômeno foi documentado em culturas de células cultivadas em recipientes de plástico por fertilização in vitro.
A menos que o uso de plástico na produção de carne por cultura de células seja rigidamente controlado, a carne pode ser contaminada com disruptores endócrinos e outras substâncias antes mesmo de ser embalada.
Existem algumas considerações éticas para a carne cultivada em laboratório. Um dos benefícios principais e inegáveis é a redução drástica no abate necessário. No entanto, as células iniciais sempre precisarão de amostras colhidas de animais vivos, que nunca poderão dar seu consentimento.
A carne de laboratório também falha em derrubar o mito de que os animais são apenas recursos para serem explorados pelos humanos. Disponibilizar carne cultivada em laboratório também reforça a ideia de que as pessoas podem e devem continuar a comer carne, apesar do fato de ser biologicamente desnecessário para uma boa saúde, como revelam bilhões de pessoas em todo o mundo que seguem dietas à base de vegetais.
O mercado potencial total endereçável para carne cultivada em laboratório é enorme e, à medida que a tecnologia melhora, os investidores estão ganhando confiança no setor. Em janeiro de 2020, a Memphis Meats arrecadou 161 milhões de dólares em uma rodada de arrecadação de fundos da Série B – uma soma que excede todos os investimentos divulgados publicamente em carne cultivada em laboratório até o momento. O investimento foi saudado como um ponto de inflexão para a indústria de carnes.
Contribuindo para essa confiança estão os grandes nomes que investem em empresas de carnes cultivadas em laboratório, incluindo Bill Gates e Richard Branson, e as próprias empresas de carnes convencionais, como Tyson Foods e Cargill.
Para além dos desafios ambientais, éticos e econômicos que a produção de carne cultivada envolve, uma questão cultural e psicossocial se destaca: a resistência do consumidor. De um lado, defensores do consumo de carne alegam que alimentos produzidos em laboratório não são comida de verdade e que, portanto, a carne artificial não seria carne de verdade.
De outro, vegetarianos argumentam que é possível viver bem, e de maneira saudável, sem a ingestão de proteína animal. Além disso, a aceitação do consumidor está associada a fatores morais e éticos mais amplos, que muitas vezes envolvem convicções políticas, culturais e até mesmo religiosas.
Com tantos obstáculos, é difícil prever quando a carne cultivada deverá chegar ao supermercado mais próximo – e, principalmente, se o produto encontrará espaço na mesa das pessoas. Por enquanto, é um mistério.
Fontes: Bioscience, Mercy for Animals, Nova Economia, The Conversation, Sentient Media, The Guardian e Cultured Beef
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