Por Karla Mendes em Mongabay | Célia Xakriabá lembra como, durante sua campanha no ano passado para ser eleita deputada federal, as pessoas sempre lhe perguntavam como poderiam ajudar os povos indígenas. Ela respondia com outra pergunta: “Quantos de vocês já votaram em candidaturas indígenas?”.
Ao ninguém responder que sim, diz Célia Xakriabá, as pessoas usavam como desculpa “infelizmente, eu não tenho dois votos”. Mas, se eles estivessem verdadeiramente comprometidos com o meio ambiente e com o planeta, ela diz: “não existe outra hora”.
“Infelizmente, a gente não tem dois planetas. Então, a hora de apostar na nossa candidatura é agora”, ela diz à Mongabay. “O contexto que nós estamos vivenciando de um ecocídio, de um genocídio, é agora! Não dá para adiar, não dá para adiar a luta pela vida, não dá para adiar uma luta que tem compromisso com a humanidade”.
Eleita deputada federal por Minas Gerais, Célia Xakriabá diz que “foi esse constrangimento que ajudou mobilizar” os eleitores e a ajudou a angariar votos mesmo entre eleitores de partidos com ideologias completamente distintas. “Depois das eleições do primeiro turno, eu voltei no segundo turno, [fazendo campanha para] o presidente Lula. E quando em Uberlândia eu fiz essa pergunta, mudou o cenário”, conta Célia Xakriabá. “No sul de Minas, onde o presidente Lula não ganhou, eu tive mais de 8.000 votos”.
Ela diz ter recebido muitos depoimentos de mães dizendo: “Eu nunca votei na esquerda. Eu ia votar em outro candidato, mas meu filho de oito anos que falou: ‘Mãe, ela cuida da natureza, ela cuida das águas, ela cuida dos rios’”.
“Nós não fomos eleitos só com [votos das] pessoas progressistas. É a questão ambiental, a questão pela vida, a questão do direito à água, a questão do direito a alimento sem veneno”. Essas questões, diz Célia Xakriabá, devem ir além dos partidos progressistas.
E isso a levou a uma reflexão importante: por que pessoas de pensamento tão adverso têm ponto de convergência?
“Porque a questão da emergência climática, da emergência da humanidade e da emergência e da ameaça aos povos indígenas tem pontos de convergência”, ela diz. “Se esse ponto de convergência não te toca, existe algo de errado. Não é com lugares de partido, esquerda e direita. Existe algo de errado com o plano de humanidade. Nós precisamos pensar em transição econômica, transição política e transição humanitária”.
Nascida no município de São João das Missões, em Minas Gerais, Célia Xakriabá comemora ser “a deputada federal indígena mais jovem do mundo” aos 32 anos. Ela foi a primeira a obter o título de doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), experiência sobre a qual ela diz “não me sinto mais importante, eu me sinto solitária”. Segundo ela, o mesmo sentimento é compartilhado por Sonia Guajajara, a primeira ministra do histórico Ministério dos Povos Indígenas, e Joenia Wapichana, primeira advogada indígena e primeira mulher indígena eleita deputada federal em 2018 e, agora, primeira presidenta da Federação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
“Um país que tem 523 anos e nós somos vítimas não somente do racismo da presença, [mas também] do racismo da ausência, quando, mesmo sendo únicas, as pessoas perguntam se somos de verdade”, Célia Xakriabá diz à Mongabay em uma entrevista em vídeo em sua casa um dia após os ataques terroristas por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro aos três poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro.
Célia Xakriabá fala sobre suas prioridades no Congresso e seu papel ativo na denúncia de Bolsonaro por crimes contra a humanidade e genocídio perante o Tribunal Penal Internacional de Haia.
Assista a entrevista no vídeo abaixo.
Em 2021, a Mongabay publicou uma série de reportagens multimídia guiadas por dados sobre os indígenas que vivem em áreas urbanas que, apesar de sua forte presença nas cidades e sua diversidade étnica, enfrentam dificuldades de acesso à educação, saneamento e outras necessidades básicas, além do forte preconceito.
Célia Xakriabá diz que essa invisibilidade “me doeu muito” durante sua campanha em Minas Gerais. “Quando eu chegava nas universidades e eu perguntava para as pessoas: quantos de vocês sabem uma palavra indígena e seu significado? Ninguém. Quantos de vocês sabem uma palavra inglês e seu significado? Todo mundo”.
Para ajudar a sanar essa “dívida histórica”, ela diz que uma de suas prioridades no Congresso é buscar, via emenda parlamentar, a criação da Secretaria de Educação Escolar Indígena no Ministério da Educação, algo que nunca existiu antes, e também o estabelecimento de cotas para os povos indígenas em vários níveis, desde professores indígenas em universidades às embaixadas.
“Se a gente realmente quer romper com o racismo da ausência, a gente tem que falar em saldar dívidas históricas. E saldar dívidas históricas é pensar cotas, tanto nas universidades, cotas nas embaixadas, cotas no ministério, cotas em vários lugares, não como lugar de favor, mas como lugar de reparação histórica”, ela diz. A série da Mongabay de 2021, com financiamento do Pulitzer Center on Crisis Reporting, mostrou como as cotas para indígenas fizeram com que seu acesso ao ensino superior aumentasse substancialmente na última década, ajudando-os a obter melhores oportunidades e a combater o preconceito nas áreas urbanas.
Outra prioridade da deputada é a revisão do Estatuto do Índio, que ela diz ainda estar escrito “de forma racista e retrógrada”, para o Estatuto dos Povos Indígenas. Essa mudança está alinhada com outras medidas adotas pelo presidente Lula no dia de sua posse: a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a mudança do nome da Funai de Fundação Nacional do Índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
“Se em pleno século XXI, só agora estamos chegando a esse lugar, significa que o Brasil demorou tempo demais para reconhecer de onde ele começa. Se ele começa por nós, por que nós chegamos por último?”, questiona Célia Xakriabá.
Seu maior sonho, diz ela, é “ter direito de voltar a dormir tranquilamente, porque os povos indígenas há 523 anos não têm um direito de voltar a dormir na tranquilidade que merecem”, referindo-se ao mais de meio milênio desde a chegada dos portugueses ao país em 1500.
Célia Xakriabá diz que outra medida importante é fazer com que o decreto que instituiu a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), implentado pela ex-presidenta Dilma Rousseff, vire lei para ser implementado pelo Ministério dos Povos Indígenas e pela Funai.
“Todos os territórios indígenas no Brasil que eu conheço só foram demarcados depois da morte de alguma liderança indígena. Você sabe o que é isso? É como se para ter um apartamento, cada pessoa que tivesse uma casa na cidade tivesse que matar alguém da sua família”, diz Célia Xakriabá.
Para executar as devidas mudanças e reconstruir o Brasil, ela diz, “a política precisa ser pensada com cor e com diversidade”.
“Ela precisa ter a cor preta. Ela precisa ter a cor indígena. Ela precisa ter a cor da terra e da diversidade e das populações que estão em estado de vulnerabilidade”, diz Célia Xakriabá. “Hoje, pensar a nossa contribuição para esse Brasil é assumir também e reconhecer a nossa potência ancestral”.
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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