Por Tabita Said em Jornal da USP — Em uma das travessas labirínticas da Cidade Universitária, o prédio cinzento do Centro Interdisciplinar em Tecnologias Interativas (Citi) da USP contrastava com as camisetas coloridas de estudantes, docentes e colaboradores correndo de um lado a outro. A movimentação tinha mil motivos, literalmente: caixas e mais caixas do Inspire, um ventilador de baixo custo projetado e desenvolvido na Escola Politécnica (Poli) da USP, utilizando tecnologia nacional e de licença aberta. Único capaz de transmitir dados de qualquer lugar do mundo em tempo real, o Inspire passou de aparelho de uso emergencial a plataforma tecnológica. E o uso do 5G, combinado com seus dados, pode dar novos rumos à pesquisa científica para responder, por exemplo, à pergunta: por que 80% dos pacientes intubados por covid-19 morreram no Brasil?
Marcelo Knorich Zuffo, recém-nomeado coordenador do Centro de Inovação da USP (Inova USP) e líder do Citi, recebeu o Jornal da USP, mostrando o atalho entre os respiradores até o que ele chamou de “fábrica”. Dentro do prédio, um pulmão artificial chamava a atenção. O equipamento simulava as condições de um órgão humano com covid, utilizando o Inspire como suporte respiratório. Do outro lado da grande sala, separado por um vidro, estava o “berçário”, uma linha de montagem para fabricação própria das placas eletrônicas usadas nos projetos.
“Aqui é uma fábrica de plataformas abertas. A gente fabrica inovação a partir de tecnologias abertas”, define Zuffo, nomeando o centro como um Think-tank. Na fábrica-laboratório, o grupo trabalha com “Interação Humano-Computador” (IHC) e com “Meios Eletrônicos Interativos” (MEI). Campos de pesquisa que concentram alguns dos maiores desafios científicos e tecnológicos atuais, propiciando verdadeiras transformações para a sociedade.
Caminhando até o café da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, no prédio vizinho, ele contou a trajetória do Citi, que, representando a USP, acaba de assinar um acordo de colaboração com a Claro, a Embratel e a Ericsson para o desenvolvimento de soluções 5G com foco em Cidades Inteligentes (Smart Cities) e Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês para Internet of Things).
O acordo consolida um longo percurso da USP para transformar seus campi em laboratórios de experimentação aberta, articulando a produção científica gerada na Universidade e integrando projetos e ações de sustentabilidade da USP com a cidade.
A rede 5G implementada na USP pela Claro – com tecnologia Ericsson – utiliza elementos de uma solução comercial ativados com licença científica cedida pela Anatel, na frequência 3,5 GHz, uma das faixas que foram adquiridas pela operadora em leilão recente. A estrutura busca oferecer um ambiente para que pesquisadores possam criar, prototipar e testar produtos e serviços. O 5G está em funcionamento no entorno da Escola Politécnica desde a última quinta-feira, 3.
O CITI tem como um dos pilares o conceito da manufatura avançada de plataformas abertas. O que são elas? Começam a se constituir no mundo comunidades de desenvolvedores que se agrupam, normalmente tendo a universidade como protagonista e catalisadora. Muitas dessas plataformas têm origem em ideias seminais cultivadas por universidades, mas elas não têm, necessariamente, o percurso da inovação privada para chegar à sociedade. Novos arranjos institucionais, como comunidades abertas de desenvolvedores, vão sendo formados. É o exemplo da Mozilla Foundation, que desenvolve o navegador.
O Citi-USP captura esse movimento e começa a militar nessa área. A USP foi pioneira em estruturar FabLabs e isso migrou depois para os Inova Labs da Escola Politécnica, ou seja, convergimos a fabricação aberta, com ensino, pesquisa e inovação. Então, sob o conceito de laboratórios de inovação, a gente entrou em regime e começou a fabricar uma série de coisas. O ápice disso é a pandemia, em que chega um professor que eu não conhecia bem, que era o Raul (Gonzalez Lima), e diz: “Zuffo, a gente precisa fazer ventiladores. Precisamos fabricar ventiladores”. E eu disse: “Pois é, Raul, eu nunca vi um na vida”. Ele respondeu: “Não? É fácil. Você sabe fabricar, eu sei projetar… vai dar certo!”. Um ano e seis meses depois (risos), mil ventiladores distribuídos e homologados na Anvisa no conceito de plataformas abertas.
Concomitante a isso, nós que somos membros do Instituto de Engenheiros Eletrônicos e Eletricistas (IEEE), que é uma sociedade científica internacional muito atuante, estávamos acompanhando com uma certa atenção o movimento de normatização e desenvolvimento do 5G, que tem algumas peculiaridades em relação às tecnologias de geração anterior. A cada uma década, incrementalmente, vem uma nova geração de tecnologias de comunicação móvel. Então, 3G, 4G apresentaram inovações incrementais; ou seja, comunicação melhor e mais rápida. Com este legado, não pode ter uma ruptura tecnológica.
Mas no caso do 5G, houve duas singularidades: a primeira singularidade é o afloramento desse contexto de disputa entre nações detentoras de tecnologia, a denominada “Guerra Fria 2.0” e uma polarização, mesmo, entre EUA e China – que concentram, hoje, 80% das patentes na área, com as consequentes nuances geopolíticas. E a outra singularidade, de natureza tecnológica, que, como membros da comunidade, nós estávamos trabalhando com 5G pensando que seria mais uma ferramenta de conectividade humano-humano. Então se você já faz WhatsApp, Google Meet, videoconferência com o colega, você ia fazer ainda mais. Mas aí veio a singularidade: porque, de forma silenciosa, a gente começou a pendurar “coisas” na internet.
Coisas como: veículos, semáforos, ventiladores, relógios… Assim, a singularidade – que caiu a ficha lá por 2016 – foi a Internet das Coisas (IoT). Então, como a gente define, canonicamente, IoT? Uma infraestrutura global, dotada de capacidade de conexão, computação local e inteligência. É justamente isso que chamamos de plataforma aberta. O Citi está fabricando, até porque é uma linha de pesquisa do nosso grupo. Então eu chamei meu grupo de pesquisadores, chamei conselheiros, politécnicos, e disse: “Gente, e se a Poli fizesse um projeto de 5G na USP, com inovação aberta?”. Duas semanas depois, fui convidado pelo Congresso Nacional para participar de um painel sobre 5G; sobre a nossa visão de quais seriam os espaços que o Brasil teria para ocupar, para não ficar numa posição meramente de consumidor de tecnologia. Falei de inovação aberta, do papel da Universidade e isso repercutiu muito bem. Eu fiz umas oito palestras com essa ideia de que, sim, o Brasil pode; nós temos que fazer pilotos, fazer projetos de larga escala e, especificamente, a Cidade Universitária (Armando de Salles Oliveira, no Butantã) , que tem quase quatro milhões de metros quadrados – é um bairro em São Paulo -, seria o local ideal para a gente propiciar esse tipo de inovação.
Entre 2001 e 2006, nós tivemos um papel fundamental em um processo muito importante aqui no Brasil, que foi o processo de digitalização da TV. A Escola Politécnica, através do nosso departamento (de Engenharia de Sistemas Eletrônicos), teve muito êxito, trazendo contribuições fundamentais no campo da codificação multimídia do sinal de TV. Então, se hoje a gente assiste TV em alta definição, foram decisões coletivas mas encaminhadas pela Poli, pelo nosso grupo, no campo do áudio, do vídeo e dos receptores. Nós projetamos e fabricamos receptores de TV digital na Poli que serviram de referência para toda a indústria, já dentro dessa ideia de inovação aberta.
Com todo esse legado da TV digital e com um aporte muito grande de instrumentos e equipamentos oriundos de agências de fomento, a gente resolveu criar uma central multiusuários, em 2008. E ela culmina com a constituição do Citi, em 2011. Na época, tínhamos interação com o MIT (sigla em inglês para Instituto de Tecnologia de Massachusetts), especialmente com o grupo que fundou o MIT Media Lab, que foi o professor Nicholas Negroponte. Ele falou: “A USP tem que estar preparada para ter esse tipo de centro”. Aí, em 2010, a Pró-Reitoria de Pesquisa lançou o edital dos Núcleos de Apoio à Pesquisa (NAPs) e nós geramos um NAP de instrumentação. Desde então, o NAP começou a desenvolver o que a gente chama de pilotos de larga escala, que é a inovação aberta.
Então a gente se declara um Think and Do Tank, que é um conceito emergente e que, em modelos e de inovação aberta, a Universidade tem protagonismo. Inclusive desenvolvendo de forma pioneira e dentro do maior espírito público pilotos de demonstração, buscando uma maior neutralidade em relação à relevância de uma tecnologia para a sociedade. Desde que a Universidade não tem, per si, o interesse econômico, mas entendendo a importância dos modelos de sustentação. Se a gente não tivesse feito análise técnico-econômica, a TV Digital não teria dado tão certo como deu.
Esse é o plano, porque está muito represado; a desindustrialização do Brasil foi muito forte em anos recentes e a pandemia mostrou que isso foi um equívoco. É só fazer, desde que não se politize. Mas com o 5G na USP, a gente terá infraestrutura de forma antecipada na sociedade, justamente para desenvolver essas soluções abertas. Nosso foco tem sido usar o 5G para IoT inteligente, com ênfase em cidades digitais e atuando em três frentes urbanas: mobilidade, segurança e meio ambiente.
Olha, veio a norma do 5G mas ninguém sabe bem o que fazer com isso, do ponto de vista de aplicações 5G. O campo de experimentação científico, tecnológico e social é muito grande. Ninguém testou 5G com IoT, em larga escala, no mundo. Ou seja, na largada, a USP chega um pouquinho atrasada mas ingressa com força, neste contexto.
E aí o limite é a criatividade da nossa comunidade científica; ou seja, não tem limite! De cara, a gente começa com três aplicações em cidades digitais; vamos começar pela cobertura da Poli, mas a ideia é espalhar pelo campus todo.
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