Estudos levantam questões éticas sobre criação de consciência em laboratório, a partir de minicérebros chamados de organoides
O laboratório do neurocientista brasileiro Alysson Muotri, na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, acompanha o desenvolvimento de centenas de minicérebros cultivados a partir de células-tronco humanas. Há anos sua equipe estuda como esses cérebros em miniatura, chamados de “organoides”, podem auxiliar na cura de doenças neurológicas, como o autismo. No ano passado, no entanto, um artigo publicado pelo grupo de Muotri na Cell Stem Cell reacendeu a polêmica em torno de uma questão que intriga a humanidade há muito tempo: cérebros produzidos em laboratório podem se tornar conscientes?
O artigo, publicado em agosto de 2019, relata a criação de organoides do cérebro humano capazes de produzir ondas coordenadas de atividade cerebral, semelhantes às observadas em bebês prematuros. Esse tipo de atividade elétrica é uma das propriedades de um cérebro consciente. A descoberta da equipe levou cientistas a levantarem uma série de questões morais e filosóficas sobre o assunto.
Os organoides devem de fato atingir esse nível de desenvolvimento? Organoides conscientes têm direito a tratamento especial e direitos não concedidos a outros grupos de células? A consciência pode ser criada em laboratório?
Há décadas essas questões têm mobilizado cientistas e diversas esferas da sociedade há décadas, provocando discussões a respeito da legitimidade da consciência artificial. Para além da ciência, a pauta também tem servido como inspiração para filmes e obras literárias, como o clássico Eu, robô, de Isaac Asimov, publicado em 1950. Somente esse fato isolado já mostra que o debate moral, ético e filosófico a respeito do assunto está longe de ser novidade.
Nas áreas de neuorciência e bioética, a ideia de cérebros sem corpo e autoconscientes já é praticamente uma realidade. Poucos meses antes da publicação do artigo de Muotri e sua equipe, um grupo de cientistas da Universidade de Yale, nos Estados unidos, anunciou que havia restaurado, pelo menos parcialmente, a atividade cerebral de porcos que haviam sido mortos poucas horas antes. Ao remover os cérebros dos crânios dos porcos e infundi-los com um coquetel químico, os pesquisadores conseguiram dar reavivar as funções celulares dos neurônios e sua capacidade de transmitir sinais elétricos.
Agora, os pesquisadores estão solicitando um conjunto de diretrizes, semelhantes às usadas na pesquisa com animais, para orientar o uso humano de organoides cerebrais e outros experimentos que possam atingir a consciência. Em junho, as Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos iniciaram um estudo, com o objetivo de delinear as possíveis questões legais e éticas associadas aos organoides cerebrais de humanos e animais.
Outros experimentos, como esforços para adicionar neurônios humanos ao cérebro de camundongos, também têm sido responsáveis por suscitar questões éticas. Alguns cientistas e especialistas em ética argumentam que esses experimentos não deveriam ser permitidos. No laboratório de Muotri, entretanto, eles estão cada vez mais próximos de corresponder à realidade.
Em seus experimentos, Muotri conectou organoides a robôs ambulantes, modificou seus genomas com genes de Neandertal, lançou-os em órbita a bordo da Estação Espacial Internacional e os usou como modelos para desenvolver sistemas de inteligência artificial semelhantes aos humanos. No momento, Muotri estuda como utilizar os organoides do cérebro humano em testes de desempenho para drogas contra o coronavírus.
Tema envolve questões éticas e filosóficas
Esses estudos prepararam o terreno para um debate entre aqueles que querem evitar a criação da consciência e aqueles que veem os organoides complexos como um meio para estudar – e, eventualmente, curar – doenças humanas devastadoras. Muotri e muitos outros neurocientistas acreditam que os organoides do cérebro humano podem ser a chave para entender as condições exclusivamente humanas, como autismo e esquizofrenia, impossíveis de serem estudadas em detalhes com testes em camundongos. Para atingir esse objetivo, Muotri defende que ele e outros pesquisadores possam criar consciência em laboratório.
As pesquisas com cérebros cultivados em laboratório também destacam um ponto cego: os neurocientistas não compartilham um conceito consensual para definir e medir a consciência. Sem uma definição funcional, bioéticos se preocupam com a impossibilidade de interromper um experimento antes que ele cruze os limites eticamente aceitáveis.
Anil Seth, neurocientista cognitivo da Universidade de Sussex, no Reino Unido, acredita que o surgimento desses novos estudos pode forçar os cientistas a encontrarem rapidamente uma solução, caso eles se convençam de que um organoide de fato ganhou consciência. Para ele, essa questão depende muito da teoria em que cada cientista acredita. Assim, se a teoria preferida de uma pessoa considera o organoide consciente, mas a de outra não, qualquer garantia de que essa consciência foi alcançada desaparece.
Os estados senscientes
Criar um sistema consciente pode ser muito mais fácil do que defini-lo. Pesquisadores e médicos definem a consciência de muitas maneiras diferentes para vários propósitos, mas é difícil sintetizá-los em uma definição operacional limpa que possa ser usada para estabelecer o status de um cérebro desenvolvido em laboratório.
Os médicos geralmente avaliam o nível de consciência em pacientes em estado vegetativo com base no fato de a pessoa piscar ou recuar em resposta à dor ou a outros estímulos. Usando leituras de eletroencefalograma (EEG), por exemplo, os pesquisadores também podem medir como o cérebro responde quando é eletrocutado por um pulso elétrico. Um cérebro consciente exibe uma atividade elétrica muito mais complexa e imprevisível do que um cérebro inconsciente, que reage com padrões simples e regulares.
No entanto, esses testes podem não estabelecer adequadamente se uma pessoa tem de fato consciência. Estudos de imagens cerebrais de pessoas em coma ou estado vegetativo mostraram que indivíduos sem resposta podem exibir alguma atividade cerebral que remeta à consciência – como uma atividade em áreas motoras quando solicitados a pensar em andar.
Em qualquer caso, os testes médicos padrão para a consciência são difíceis de serem aplicados a células cerebrais cultivadas fora de um corpo humano. Quando Muotri sugeriu que os padrões de disparo de seus organoides eram tão complexos quanto aqueles vistos em bebês prematuros, não houve consenso científico sobre o que deveria ser feito a partir dessa informação. Alguns pesquisadores não consideram a atividade cerebral em um bebê prematuro complexa o suficiente para ser classificada como consciente. Além disso, os organoides não podem piscar ou recuar diante de um estímulo doloroso – ou seja, eles não passariam no teste clínico de consciência.
Por outro lado, é muito mais provável que um cérebro intacto de um porco morto há pouco tempo tenha as estruturas necessárias para desenvolver consciência, bem como uma fiação criada por memórias e experiências que o animal teve enquanto estava vivo. Trazer um cérebro morto de volta a uma “aparência” de vida, como fez a equipe de Yale, tem o potencial de restaurar um certo grau de consciência – embora os cientistas tenham se esforçado para evitar isso, usando agentes bloqueadores químicos para impedir a atividade de todo o cérebro.
Em um ponto os pesquisadores concordam: é preciso levar a sério as possibilidades levantadas por esses estudos. Em outubro de 2019, a UCSD realizou uma conferência com diversos neurocientistas e filósofos, com a intenção de estabelecer e publicar uma estrutura ética para experimentos futuros. O artigo, entretanto, foi adiado por meses, em parte porque vários dos autores não chegaram a um acordo sobre os requisitos básicos para definir a consciência.
Complexidade do tema impede definição da consciência
Quase todos os cientistas e especialistas em ética concordam que, até agora, ninguém criou a consciência no laboratório. Mas há um debate a respeito da relevância de algumas teorias. quais teorias da consciência podem ser mais relevantes. De acordo com a teoria da informação integrada, por exemplo, a consciência é um produto da densidade das redes neuronais conectadas ao longo do cérebro. Quanto mais neurônios interagem entre si, maior o grau de consciência – uma quantidade conhecida como phi. Se phi for maior que zero, o organismo é considerado consciente.
Outras teorias concorrentes da consciência exigem informações sensoriais ou padrões elétricos coordenados em várias regiões do cérebro. Uma ideia conhecida como teoria do espaço de trabalho global defende que o córtex pré-frontal do cérebro funciona como um computador, processando entradas sensoriais e interpretando-as para formar uma sensação de ser. Como os organoides não têm córtex pré-frontal e não podem receber informações, eles não podem se tornar conscientes.
Conectar organoides a órgãos, no entanto, pode ser uma tarefa bastante simples. Em 2019, a equipe de Lancaster desenvolveu organoides do cérebro humano ao lado da coluna vertebral e do músculo das costas de um rato. Quando os nervos do organoide humano se conectaram com a coluna vertebral, os músculos começaram a se contrair espontaneamente.
A maioria dos organoides é construída para reproduzir apenas uma parte do cérebro: o córtex. Mas, se se desenvolverem por tempo suficiente e com os tipos certos de fator de crescimento, as células-tronco humanas recriam espontaneamente diversas partes diferentes do cérebro, que passam a coordenar sua atividade elétrica. Em um estudo publicado em 2017, a bióloga molecular Paola Arlotta, da Universidade de Harvard, persuadiu as células-tronco a se desenvolverem em organoides cerebrais compostos de vários tipos de células.
Quando expostos à luz, os neurônios nos organoides começaram a disparar. Mas a pesquisadora ressalta que o fato de essas células estarem ativas não significa que os organoides pudessem ver e processar informações visuais. Isso significa, simplesmente, que eles podem formar os circuitos necessários.
Pesquisadores pedem regulamentação sobre o assunto
Alguns pesquisadores acreditam que seja inútil tentar identificar a consciência em qualquer tipo de cérebro cultivado em laboratório. Steven Laureys, neurologista da Universidade de Liège, na Bélgica, afirma que é impossível dizer coisas significativas sobre o que representam esses grupos de células, uma vez que ainda não entendemos a consciência. Ele e outros apontam que a experiência de um organoide é, provavelmente, bastante diferente da experiência de um bebê prematuro, um ser humano adulto ou um porco.
Além disso, as estruturas em um organoide podem ser muito pequenas para que sua atividade seja medida com precisão, e as semelhanças entre os padrões de EEG nos organoides e nos cérebros de bebês prematuros podem ser mera coincidência. Outros cientistas que trabalham com organoides cerebrais concordam com Laureys que pode não haver a possibilidade de saber se um sistema é de fato consciente. E muitos rejeitam completamente a ideia.
Muotri, por outro lado, quer que seus sistemas organoides sejam comparáveis, pelo menos em alguns aspectos, aos cérebros humanos, para que ele possa estudar distúrbios humanos e encontrar tratamentos. Para ele, os organoides podem ajudar os pesquisadores a descobrir como os cérebros produzem estados de consciência. O matemático Gabriel Silva, UCSD, por exemplo, está estudando a atividade neural nos organoides de Muotri para desenvolver um algoritmo que descreve como o cérebro gera consciência, a fim de criar um sistema artificial que funcione como a consciência humana.
No momento, não há regulamentos nos Estados Unidos ou na Europa que impeçam um pesquisador de criar consciência em laboratório. O painel das Academias Nacionais planeja divulgar um relatório no início do próximo ano, descrevendo as pesquisas mais recentes e propondo um julgamento sobre a necessidade de regulamentações a respeito do assunto. Os membros planejam ponderar sobre questões como a obtenção do consentimento das pessoas para desenvolver suas células em organoides do cérebro e como estudar e descartar os organoides de maneira humana.
Uma regulamentação ativa ajudaria os pesquisadores a pesar os custos e benefícios da criação de entidades conscientes. E muitos pesquisadores enfatizam que esses experimentos têm o potencial de produzir descobertas importantes. Os tratamentos ainda poderiam ser testados em organoides cerebrais feitos com células-tronco de camundongos ou em modelos animais regulares.
Muotri afirma que vê pouca diferença entre trabalhar com um organoide humano ou um rato de laboratório. Ele diz que, particularmente, não defende nenhuma definição específica para decidir se um organoide atingiu a consciência ou não. Para ele, entretanto, os estudos devem continuar – com base em organoides humanos ou com animais –, como um auxílio no tratamento e na cura de doenças que afetam a saúde humana.
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