Por Cristiane Betemps, da Embrapa | No Rio Grande do Sul, um estudo coordenado pela Embrapa Clima Temperado e realizado por especialistas de diversas instituições gerou dados e estabeleceu procedimentos para o emprego seguro do lodo de estações de tratamento de água (Leta) em solos agrícolas. O trabalho científico subsidiou a elaboração da Resolução Normativa nº 461/2022, do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema-RS), a primeira relacionada ao uso desse tipo de resíduo. O Leta é um grande problema de destinação para as companhias de saneamento e costuma ser disposto somente em aterros sanitários.
Participaram da pesquisa profissionais da Embrapa Clima Temperado, Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal do Rio Grande (FURG), com o apoio técnico e financeiro da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) e o acompanhamento da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam-RS) e do Ministério Público Estadual (MP-RS).
A pesquisa mostrou que, se devidamente tratados, os Letas podem condicionar solos agrícolas arenosos e que, sob diversas condições de aplicação, preservam a qualidade do solo e até promoveram pequenos aumentos da produtividade de lavouras experimentais de milho e azevém, em circunstâncias específicas. Além disso, quando utilizados na formulação de substratos, apresentaram benefícios como incremento de altura, de volume radicular e precocidade das plantas.
“Os lodos de estações de tratamento de água eram considerados um passivo; agora são convertidos em matérias-primas para fabricação de insumos e produtos para uso seguro na agricultura”, ressalta o gestor do Departamento de Inovação Tecnológica da Companhia, Jonas Kneip Araújo. “Essa realidade eleva a Companhia a outro patamar, tanto na sustentabilidade financeira, monetizando o que antes era despesa, além de promover uma economia circular, retroalimentando o sistema com menor impacto ambiental”, declara.
A Corsan realiza serviços de água e esgoto para 317 dos 497 municípios gaúchos. A companhia registra a produção de, aproximadamente, 51 mil metros cúbicos (m3) de lodos de estações de tratamento de água (ETAs) e cerca de 32 mil m3 de lodos de estações de tratamento de esgoto (ETEs), anualmente.
Os especialistas contam que a geração dos Letas tende a aumentar, no mínimo, em uma taxa proporcional ao crescimento da população humana. “Por isso, é urgente a introdução de novas soluções para sua destinação segura e eficiente”, defende o pesquisador Adilson Bamberg, da Embrapa, que coordenou o estudo.
A pesquisa mostrou que os Letas são resíduos constituídos, predominantemente, de partículas naturais de silte, argila e matéria orgânica presentes na água bruta captada de rios, lagos, barragens e poços. Essas partículas são removidas por meio de tecnologias tradicionais como a floculação, a decantação e a remoção com filtros para obtenção da água tratada e os resíduos podem ser aplicados em solos de forma segura, sem riscos ao meio ambiente. “Os Letas avaliados não apresentaram concentrações significativas de metais pesados, organismos patogênicos nem contaminantes orgânicos, não sendo potencial fonte de risco para o meio ambiente”, conta a pesquisadora Rosane Martinazzo, da Embrapa.
Os solos brasileiros são, em sua predominância, ácidos, com pH menor que 6 e naturalmente pobres em nutrientes, apresentando concentrações significativas de elementos como alumínio, ferro e manganês. “Quando aplicados aos solos, os Letas podem apresentar concentrações de alumínio, ferro e manganês em níveis que vão limitar o pleno desenvolvimento das culturas agrícolas”, ressalta Bamberg. Ele explica que isso ocorre, principalmente, devido à origem dos lodos e a fatores naturais, mas também ao processo de tratamento com agente floculante à base de sulfato de alumínio, sem um processo de correção de pH. Ou seja, o dano deve-se em parte ao tratamento aplicado e, principalmente, à origem dos sedimentos que formam esses lodos, que chegam aos mananciais pela erosão dos solos e por fatores naturais.
“No entanto, isso não impossibilita a destinação dos Letas em solos de forma adequada, desde que acompanhada também da costumeira correção da acidez do solo”, pondera o cientista, afirmando que o procedimento preconizado mantém a proteção do meio ambiente e a manutenção da qualidade dos solos.
O uso de Letas tem se mostrado promissor em solos de textura arenosa e de áreas degradadas. Apesar de não aportar quantidades significativas de nutrientes para as plantas, os Letas têm potencial de incrementar o teor de matéria orgânica e a aplicação pode trazer benefícios por meio da melhoria da agregação, da retenção de água e de nutrientes em solos mais frágeis.
“Outra possibilidade para os Letas é a sua utilização como matéria-prima para substratos para plantas, em combinação com os materiais comumente utilizados neste tipo de produto”, afirma Martinazzo. A pesquisadora, a doutoranda Mariana Teixeira da Silva, o pesquisador Sérgio dos Anjos e Silva, da Embrapa, e a pesquisadora Maria Helena Firmino, do Departamento de Diagnóstico e Pesquisa Agropecuária, antiga Fepagro, desenvolveram estudos utilizando diferentes proporções de lodo de estação de tratamento de esgoto (Lete), lodo de estação de tratamento de água (Leta), cinza de casca de arroz e vermiculita. Os substratos à base de Lete apresentaram desempenho agronômico similar ou superior ao substrato comercial utilizado como referência. O Leta teve como principal destaque a elevada capacidade de troca de cátions, porém a formulação do substrato contendo essa matéria-prima ainda requer ajustes quanto à granulometria e proporção na mistura, o que será definido em estudos futuros.
No início de 2015, a Corsan e a Embrapa Clima Temperado, sediada em Pelotas (RS), celebraram o Termo de Cooperação Técnica “Pesquisa e desenvolvimento do potencial do uso agrícola de lodos de estações de tratamento de água e de esgoto”.
No período de 2015 a 2020, a equipe de pesquisadores envolvida no projeto, com o apoio de instituições parceiras (principalmente da UFPel, FURG e UFSM), acompanhada também pela Fepam, Ministério Público Estadual e Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), desenvolveu uma série estruturada de análises e de experimentos em condições laboratoriais, em ambiente controlado e em condições de campo. Em todos os casos, foram avaliados os Letas provenientes de três municípios gaúchos: Rio Grande, Santa Maria e Gravataí, coletados durante as quatro estações do ano.
Os Letas são resíduos sólidos gerados continuamente pelas companhias de saneamento, em estações de tratamento de água que abastecem grande parte das residências que possuem água tratada. A partir da separação de sedimentos formados por partículas minerais e orgânicas presentes na água bruta coletada nos pontos de captação hídrica (rios, lagoas, barragens, poços etc.), as estações geram os lodos, um material pastoso, composto por cerca de 75% de água e 25% de sólidos.
Estima-se que no Rio Grande do Sul sejam geradas, anualmente, entre 60 mil e 100 mil toneladas em base seca desse resíduo, o qual, invariavelmente, segue para aterros sanitários, onde acaba sendo inutilizado ao ser misturado com outros resíduos sólidos dispostos no mesmo local, causando elevados custos ambientais e econômicos de destinação, sem possibilidade de reaproveitamento. No entanto, a pesquisa identificou que, apesar de não apresentarem concentrações significativas de nutrientes, após serem secos e terem seu pH corrigido, os Letas possuem características benéficas para solos arenosos e para emprego na formulação de substratos para mudas.
Coordenada por Bamberg, a pesquisa contou com apoio de uma equipe multidisciplinar e multi-institucional. “O trabalho foi um grande desafio. Foram cinco anos de pesquisas em diversos níveis, desde a revisão bibliográfica, ensaios especializados em laboratórios e em casa de vegetação, até experimentos de campo. Dessa forma, foi construído todo um arcabouço de conhecimento que embasou a Resolução Normativa”, explica o engenheiro-agrônomo Ivan dos Santos Pereira.
Ele conta que foram abordados três grandes desafios: o elevado teor de umidade dos Letas, a identificação neles de elementos que pudessem limitar o desenvolvimento dos cultivos e a realização de um estudo que representasse bem os Letas do Rio Grande do Sul.
Para responder à questão da representatividade, foram coletadas amostras em três ETAs localizadas em regiões estratégicas e com grande geração de lodo no estado. Essas estações também possuíam diferentes formas de desidratação do lodo, como a centrifugação e a secagem em bags. “A partir dessas amostras, foi realizada uma ampla caracterização desses lodos, com a avaliação de contaminantes inorgânicos, orgânicos e patogênicos, bem como uma detalhada avaliação de parâmetros agronômicos”, relata Pereira.
De acordo com o agrônomo, os resultados indicaram que há grande similaridade entre os lodos, e as pequenas variações encontradas na composição de cada um se devem aos tipos de solos e seus materiais de origem, além do uso da terra em que se localizam os corpos d’água dos quais é retirada a água bruta.
Ele chama a atenção para outro aspecto importante, do ponto de vista prático e de viabilidade da adoção da tecnologia: a redução do teor de água dos Letas em geral é superior a 75%. Nesse quesito, uma das alternativas mais promissoras é a utilização de centrífuga associada ao leito de secagem com cobertura plástica. A remoção do excesso de umidade viabiliza o transporte do material a distâncias maiores.
“É necessário, também, neutralizar alguns elementos que podem causar a restrição do desenvolvimento dos cultivos, como o alumínio, por exemplo. Nesse sentido, foram realizados ensaios com diversos tipos de corretivos de acidez e determinadas as concentrações necessárias para que esses elementos fossem neutralizados. Segundo Pereira, a calagem realizada adequadamente no solo ou a elevação do pH do Leta foi eficiente para viabilizar sua utilização segura em áreas agrícolas.
Outros aspectos vantajosos do uso dos Letas em solos são os benefícios econômicos e ambientais, quando comparados a outras práticas de destinação final, como o seu retorno aos mananciais ou a disposição em aterros sanitários. “É impensável que hoje ainda se pratique a reintrodução desses lodos nos próprios mananciais de origem. A disposição de Letas em aterros sanitários é onerosa e desnecessária, por ser material de baixo risco ambiental, além de representar problema para os próprios aterros sanitários, pois se trata de material com baixa estabilidade quando incorporado a outros resíduos sólidos e depositado em pilhas e taludes”, destaca Pereira.
“Um detalhe na aplicação do Leta em solos é a oportunidade de manutenção dos princípios da economia circular, ou seja, pela reutilização desses resíduos de forma ambientalmente adequada, devolvendo-se os Letas ao seu local de origem, os próprios solos”, diz Bamberg.
A aplicação de Letas até a dose de 60 toneladas por hectare (t/ha), seguida de incorporação no solo e combinada com corretivo de acidez (calcário), mantém a qualidade do solo. Além disso, a incorporação de Letas corrigidos na dose de 30 t/ha manteve ou até mesmo promoveu leves aumentos (até 10%) da produtividade de massa de parte aérea de milho e azevém. Os resultados da aplicação de Letas em solos foram publicados nas revistas Geoderma, Land Degradation and Development, e Analytica Chimica Acta, todas de elevado fator de impacto para as Ciências Agrárias.
A pesquisa busca agora a geração de novos produtos derivados de Letas e a validação de insumos avaliados no âmbito da parceria conduzida por meio do Termo de Cooperação Embrapa-Corsan, especialmente os substratos para plantas. O trabalho também deve originar outros produtos, podendo ser classificados como insumos agropecuários: condicionador de solos arenosos à base de Letas; e substratos para plantas à base de Letas, com formulações eficientes e seguras, ajustadas para diferentes espécies vegetais.
“A parceria Embrapa-Corsan se mostrou amplamente proveitosa, pois gerou caminhos e soluções consistentes e tecnicamente viáveis para o uso sustentável de lodos de estações de tratamento de água e esgoto na agricultura”, enfatiza Bamberg.
A pesquisa com Letas contou com o apoio de estudantes de graduação e pós-graduação vinculados às universidades federais do Rio Grande do Sul: Ivan dos Santos Pereira, Alex Becker Monteiro, Mariana Teixeira da Silva, Pablo Lacerda Ribeiro, Mariana da Luz Potes e Natiele Kleemann.
Pela Embrapa Clima Temperado, participaram os pesquisadores Adilson Luís Bamberg, Adalberto Koiti Miura, Rosane Martinazzo, Carlos Augusto Posser Silveira, Sérgio Delmar dos Anjos e Silva e Clenio Nailto Pillon.
Pela Corsan, os principais profissionais envolvidos foram os engenheiros Moisés Benvegnú, Karla Cypriano Pieper, Jonas Kneip Araújo e Sérgio Pereira.
Este texto foi originalmente publicado pela Embrapa de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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