Para além da pobreza, estudos passam a analisar gargalos no caminho que o alimento faz do cultivo até a mesa do consumidor
Por Christina Queiroz em Pesquisa Fapesp | Terceiro maior produtor de alimentos do mundo segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil provê comida para cerca de 800 milhões de pessoas, conforme a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Tamanha fartura não impede que 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população do país, enfrentem algum nível de insegurança alimentar. A definição inclui não apenas ingerir comida em quantidade insuficiente, mas também de baixa qualidade, de acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan). Como resolver esse paradoxo? Pesquisas em diferentes campos do conhecimento propõem que a chave está em abordar o problema da fome analisando gargalos em sistemas alimentares, que abarcam a trajetória do cultivo até a mesa do consumidor, além de passar a considerar os impactos da crise climática nesse cenário.
Pesquisas pioneiras feitas no Brasil, como as do médico pernambucano Josué de Castro (1908-1973), estabeleciam relações diretas entre fome e pobreza, explica o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPS-FGV). “Nos últimos anos, estudos passaram a indicar que a erradicação da pobreza monetária é condição necessária, mas não suficiente, para reduzir a insegurança alimentar no Brasil”, afirma.
Em 2021, o contingente de pessoas pobres, ou seja, com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais, atingiu 62,9 milhões de brasileiros, cerca de 29,6% da população total do país, conforme o Mapa da Nova Pobreza, publicado pela FGV no ano passado. Em 2022, o país registrou diminuição nesse contingente, retornando a patamares de 2020, de cerca de 53 milhões de pessoas nessa faixa de renda. Desde 2020, o governo federal multiplicou por três os benefícios pagos pelo Bolsa Família/Auxílio Brasil e aumentou a quantidade de pessoas contempladas pela iniciativa de 14 milhões para 21 milhões. Apesar disso, no mesmo recorte temporal, a insegurança alimentar caiu de 36% para 34%, queda considerada pequena. “É surpreendente notar que, durante a pandemia, houve um descolamento entre medidas para reduzir a pobreza monetária e a insegurança alimentar”, destaca.
Neri avalia que, na pandemia, o fechamento de escolas – alvo de uma das principais políticas contra a insegurança alimentar, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), responsável por oferecer comida para 40 milhões de estudantes – pode ter causado mais impactos na insegurança alimentar do que a pobreza. De acordo com o pesquisador, a falta de reajuste, durante seis anos, em valores repassados pelo governo federal para a alimentação escolar, e a extinção, em 2019, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que auxilia o governo na definição de políticas públicas relacionadas à segurança alimentar e nutricional, também colaboraram com o agravamento do panorama. “Estamos olhando muito para renda e pouco para fome”, argumenta o economista.
Partindo do problema da fome no mundo, o conceito de segurança alimentar surgiu depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) com a proposta de identificar diferentes situações envolvendo o acesso à comida e com a percepção de que era necessário produzir alimentos em quantidade suficiente para uma população global em franca expansão. “Hoje, além de assegurar a ingestão de calorias suficientes, o conceito brasileiro de segurança alimentar abrange dimensões nutricionais e de sustentabilidade do alimento, ampliando a perspectiva para além da produção”, observa a nutricionista Elisabetta Recine, da Universidade de Brasília (UnB) e presidente do Consea, que foi recriado em 2023. Como parte do processo de alargamento do conceito de segurança alimentar, a também nutricionista Dirce Maria Lobo Marchioni, da Universidade de São Paulo (USP), relata que recentemente ele também passou a abranger o princípio da preservação ambiental, isto é, a noção de que as dietas devem ser saudáveis para conservar o planeta.
Outro conceito que tem balizado estudos sobre a insegurança alimentar nos últimos cinco anos é o de sistema alimentar. Ele abarca a jornada da comida do cultivo até a mesa, isto é, as etapas em que alimentos ou grupos de alimentos são cultivados, pescados, caçados, processados, empacotados, transportados, distribuídos, negociados, comprados, preparados, ingeridos e descartados. Seguindo essa abordagem, pesquisadores procuram identificar os gargalos de cada um dos elos dos sistemas, que apresentam características específicas em cada país ou cidade, para a partir deles propor soluções para o problema da fome. Nessa perspectiva, um objetivo pode ser identificar, por exemplo, se as dificuldades no acesso à comida estão na falta de disponibilidade de produtos saudáveis em determinada região ou são relacionados a altos níveis de desperdício. A engenheira-agrônoma Sílvia Helena Galvão de Miranda, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, explica que estudos sobre agropecuária elaborados nas décadas de 1950 e 1960 já apontavam para a necessidade de se olhar para cadeias produtivas e seus ambientes, e não apenas à produção. “Essa perspectiva ampliada permitiu identificar, por exemplo, que era preciso melhorar normas sanitárias no abate de animais e as condições de transporte de frutas para aprimorar a produtividade e a qualidade de produtos”, diz.
Durante a Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência (WCSJ), que aconteceu em Medellín, na Colômbia, no final de março, a socióloga Jenny Wiegel, coordenadora regional do Centro Internacional de Agricultura Tropical (Ciat), trouxe resultados de estudos que vem desenvolvendo sobre sistemas alimentares em cidades do Sul Global. Elaborado em 2019, um deles analisou o sistema da cidade colombiana de Cali. O estudo partiu da observação de que 51,3% das famílias viviam em situação de insegurança alimentar e que crianças e adolescentes do município registravam mais sobrepeso e obesidade do que a média de populações na mesma faixa etária da região do Pacífico. Por outro lado, foi constatado que Cali apresentava os valores mais altos de desperdício de comida de todo o país. “Diante desse panorama, nossa hipótese foi de que a redução da insegurança alimentar passa, necessariamente, pela busca por estratégias para reduzir o descarte inadequado de comida”, disse a socióloga durante a conferência. Wiegel também desenvolveu pesquisa em Nairóbi, no Quênia. Com cerca de 4,55 milhões de pessoas, 60% da população da cidade vive em favelas e 65% dos negócios que comercializam comida são mercados ao ar livre. No estudo, foi constatado que 9% da população tinha deficiência de vitamina A, 21% de ferro e 83% de zinco. “Observamos que 70% das frutas ingeridas pela população de baixa renda da cidade eram bananas, o que sugere que a melhoria em seu quadro nutricional deve considerar o aumento na variedade de frutas disponíveis em feiras livres, além da criação de políticas para permitir que o valor desses outros alimentos seja acessível à população de baixa renda”, propôs Wiegel.
Mas o que caracteriza os sistemas alimentares de um país continental como o Brasil e quais os seus gargalos? Conhecer essas especificidades é, justamente, um dos objetivos centrais do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Combate à Fome, criado no final do ano passado com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sob coordenação de Marchioni, da USP, o centro terá o conceito de sistema alimentar como base para articular distintos campos do saber. Em linhas gerais, ela explica que o sistema agroindustrial, que produz matérias-primas voltadas ao mercado externo, predomina na agricultura do país. Dados de 2022 da FAO indicam que, nos últimos anos, o país se manteve como o quarto maior produtor mundial de grãos e o segundo maior exportador. Assim, ela considera que o país enfrenta desafios envolvendo a produção de alimentos saudáveis e variados, como frutas, legumes e verduras para atender ao mercado interno. “Porém precisamos sistematizar e aprofundar o conhecimento sobre nossos gargalos. O Brasil dispõe de múltiplos sistemas alimentares, que tornam o combate à fome um desafio ainda mais complexo”, observa. O sistema alimentar dos Yanomami, por exemplo, baseia-se no cultivo de roças, caça, coleta de frutos e insetos, sendo distinto da situação de populações urbanas, que costumam adquirir comida em mercados e feiras livres.
O INCT nasceu a partir do Grupo de Trabalho (GT) Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome, criado pelo então reitor da USP, o engenheiro civil Vahan Agopyan, atual secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado de São Paulo. “O GT unificou a experiência de mais de uma dezena de grupos de pesquisa da universidade que trabalhavam com alimentação, insegurança alimentar, economia e políticas públicas”, diz Agopyan. Como resultado, o grupo, que foi coordenado por Miranda, da Esalq-USP, elaborou um documento com 39 propostas para orientar a formulação de políticas públicas, entre elas a criação de programas de renda mínima e educação alimentar e nutricional, a construção de plataformas on-line para articular iniciativas da sociedade civil voltadas à mitigação da insegurança alimentar, o fortalecimento da política federal de estoque de alimentos básicos, entre outras ações. “Uma das surpresas trazidas pelo relatório é que grande parte das recomendações não demanda altos investimentos para se materializar”, comenta Agopyan. Algumas dessas diretrizes são desenvolver medidas integradas entre instituições públicas do estado de São Paulo, como universidades e escolas do Centro Paula Souza, para buscar respostas às demandas da sociedade relacionadas com a fome, e criar mecanismos para formalizar o trabalho de agricultores familiares e favorecer sua inserção no sistema de comercialização e distribuição de alimentos. O secretário defende que universidades e pesquisadores se empenhem em traduzir informações científicas em propostas para políticas públicas. “Sintetizar achados de pesquisa em recomendações para o gestor público é um processo complexo. Sem esse trabalho, legisladores podem ter dificuldade para compreender resultados e incorporá-los na legislação”, alerta.
Além do conceito de sistemas alimentares, outro fator que tem balizado estudos recentes sobre a fome é a crise climática. Marchioni recorda que, em Geografia da fome (1946), Josué de Castro (ver Pesquisa FAPESP n° 324) reflete sobre as relações entre fome e ecologia, mas as mudanças climáticas globais trouxeram elementos novos e desafiadores para o cenário acadêmico.
Marcos para essas novas abordagens de investigação foram dois dossiês publicados pela revista médica The Lancet, em 2019, que sistematizam o argumento de que a ciência precisa buscar respostas articuladas para três grandes desafios que, até recentemente, eram tratados de forma isolada: subnutrição, obesidade e crise climática. Os relatórios mostram que a má nutrição em todas as suas formas, incluindo obesidade e desnutrição, causa 19% das mortes prematuras no mundo. Cunhado pelo antropólogo e médico norte-americano Merrill Singer na década de 1990, sindemia foi originalmente um termo usado para explicar uma situação em que duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a soma das doenças. Nos últimos anos, ele ganhou novos significados e começou a ser usado por pesquisadores para dar conta da complexidade do problema da fome no mundo. Assim, a subnutrição, a obesidade e a crise climática passaram a ser consideradas sindemias que compartilham um determinante comum: os sistemas alimentares. “Esses sistemas são, hoje, os principais impulsionadores da saúde precária e da degradação ambiental. Por isso, são necessários esforços globais urgentes para transformar coletivamente as dietas e a produção de alimentos”, sustentam os autores de um dos relatórios.
Desenvolver políticas que permitam reduzir em 50% o consumo global de alimentos como carne vermelha e açúcar e aumentar em 100% a ingestão daqueles considerados saudáveis, como nozes, frutas, verduras e legumes, são algumas recomendações trazidas pelos documentos da Lancet, que, segundo a publicação, poderiam evitar de 10,8 a 11,6 milhões de mortes anuais. Além disso, os dossiês indicam que é preciso reorientar a agricultura para o cultivo de alimentos voltados para o consumo interno de países, mas incorporando práticas para preservar a biodiversidade, reduzir o consumo de água e as emissões de dióxido de carbono. Cortar pela metade perdas de comida em toda a cadeia de abastecimento, desde a produção até o consumo, é outra diretriz. Com pesquisa financiada pela FAPESP para elaborar estratégias para reduzir o desperdício, Andréa Rossi Scalco, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Tupã, explica que no Brasil se estima que 30% do alimento produzido é jogado fora, valor considerado alto. Nesse cenário, ela indica a necessidade de se desenvolver legislação específica para regular o descarte de produtos que não podem ser vendidos, mas estão aptos ao consumo. “Argentina, Colômbia e México, por exemplo, dispõem de leis que obrigam estabelecimentos comerciais a doarem esses alimentos, estipulando as condições necessárias para que isso aconteça”, informa.
Apesar da falta de legislação específica, o avanço tecnológico pode colaborar para melhorar o aproveitamento de alimentos. A nutricionista Eliana Bistriche Giuntini, do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, dá como exemplo uma técnica desenvolvida para produzir farinha de banana verde. “A banana é uma fruta sensível e o produtor que trabalha com a fruta registra perdas significativas em toda a cadeia de abastecimento. A possibilidade de vender o produto ainda verde para elaboração de farinha é uma forma de mitigar esse desperdício”, destaca. Uma patente com a metodologia foi depositada pelo FoRc. O segredo é manter o amido da fruta resistente durante a produção de farinha, evitando perdas nutricionais causadas por seu processamento inadequado.
Outros aliados na busca por soluções para mitigar o problema da fome são recursos de inteligência artificial (IA). Também mediante o uso de IA, imagens de satélite de pastagens de gado espalhadas pelo território brasileiro têm sido analisadas em projeto desenvolvido desde 2008 por um grupo de pesquisadores do MapBiomas, rede colaborativa formada por organizações não governamentais (ONG), universidades e startups de tecnologia. Doutor em sensoriamento remoto, Laerte Guimaraes Ferreira, da Universidade Federal de Goiás (UFG) e atual diretor de Programas e Bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), afirma que a área de pastagem, que ocupa hoje cerca de 20% do território nacional, pode contribuir para que o país dobre a produção de alimentos sem aumentar o desmatamento. Para tanto, segundo Ferreira, é preciso investimentos na recuperação de pastagens degradadas e na intensificação da pecuária, o que pode liberar áreas de pasto para outros usos.
Integrante do INCT Combate à Fome, o engenheiro Antonio Mauro Saraiva, da USP, elabora pesquisas para compreender como a IA pode colaborar com o desenvolvimento do pequeno agricultor que comercializa produtos voltados ao consumo local. Considerando a complexidade de sistemas alimentares, Saraiva sustenta que a IA é fundamental nas pesquisas e elaboração de políticas públicas, na medida em que os dados sobre alimentação estão espalhados por diferentes bases, como Embrapa, Instituto Agronômico (IAC), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), secretarias estaduais e municipais, dentre outras. Ainda sobre as recomendações da Lancet, pesquisadores sugerem que ações de combate à insegurança alimentar devam impactar dois ou três elos de sistemas alimentares simultaneamente. “Não mitigamos o problema da fome mexendo em apenas um peão e a IA é fundamental para articular todas essas dimensões”, conclui o engenheiro, que também faz parte do Centro de Inteligência Artificial financiado pela FAPESP por meio de convênio com a IBM.
Brasil ocupa 5º lugar em ranking de pesquisas
Levantamento da editora Elsevier para analisar a produção científica mundial relacionada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) identificou que o Brasil foi o quinto país do mundo com mais estudos realizados sobre fome e agricultura sustentável, entre 2019 e 2022. Com 10 mil artigos publicados no período, a produção científica nacional ficou 110% acima da média mundial.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) alcançaram o 3º e o 4º lugares, respectivamente, entre as agências de fomento que mais financiaram pesquisas relacionadas com os ODS 2, que preveem erradicar a fome no mundo. Os dados do estudo são provenientes da plataforma SciVal, que abriga resultados de pesquisas de mais de 20 mil instituições de 230 países.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.