Aerossóis gerados dificultam movimento de massas de ar e limitam congelamento da água em nuvens, o que pode afetar chuvas
Pesquisa com participação do Instituto de Física (IF) da USP revela como as queimadas interferem no desenvolvimento de nuvens de chuva na Amazônia. Os pesquisadores usaram imagens de satélite e medições da quantidade de partículas formadas pelas queimadas e constataram que elas tornam a atmosfera mais estável e dificultam os movimentos verticais das massas de ar. Isso impede que as nuvens ganhem altura e limita o resfriamento que leva ao congelamento das gotas de água, possivelmente reduzindo a ocorrência de chuvas e aumentando a incidência dos raios solares no solo. Os resultados do trabalho são descritos em artigo publicado na revista Communications Earth & Environment, do grupo Nature.
Os pesquisadores estudaram a temperatura na qual as gotas de nuvens convectivas da Amazônia congelam, procurando entender quais elementos mais importantes que controlam esse fenômeno. “Nesse caso, a temperatura de congelamento não é zero graus Celsius (°C). Dependendo de condições diversas, essa temperatura pode variar entre alguns graus abaixo de 0 °C até um mínimo de -38 °C que, na natureza, é o limite de congelamento para a água”, relata ao Jornal da USP o professor Alexandre Correia, do IF, um dos responsáveis pela pesquisa. “Assim, o objetivo do trabalho foi justamente estudar quais os principais fatores que controlam a temperatura na qual as gotas de nuvem congelam.”
As nuvens convectivas se formam quando o vapor de água é transportado verticalmente e sofre condensação sobre aerossóis, que são partículas microscópicas sempre presentes na atmosfera. “Nuvens convectivas se desenvolvem muito na vertical, atingindo altitudes elevadas, com topos acima de 10 quilômetros”, descreve o professor. “Durante o caminho entre a base e o topo das nuvens, as gotas de água vão esfriando e congelam a uma certa temperatura, uma vez que, em geral, quanto maior a altitude na atmosfera, menor a temperatura, até chegar na estratosfera.”
Os pesquisadores avaliaram 15 anos de imagens de satélite, entre 2000 e 2014, para obter a temperatura de cada pixel identificado como nuvem sobre a região amazônica. “Também usamos dados da Nasa [National Aeronautics and Space Administration] sobre a quantidade de aerossol presente na atmosfera. Essas medidas de aerossol foram realizadas em solo usando fotômetros solares em cinco localidades: Alta Floresta e Cuiabá, no Mato Grosso; Rio Branco, no Acre; e Ji-Paraná e Ouro Preto Do Oeste, chamada no trabalho de ‘Abracos Hill’, em Rondônia”, descreve o professor. A base de dados também contou com dados atmosféricos do European Centre for Medium-Range Weather Forecasts (ECMWF), que permitiram avaliar o estado da atmosfera em cada situação analisada.
Os resultados da pesquisa mostram que a temperatura média de glaciação ou congelamento de nuvens na Amazônia depende de três principais fatores: a umidificação da atmosfera, partículas de aerossol e a radiação solar. “Esses fatores agem em associação, o que é chamado de modo ‘acoplado’”, destaca Correia. “Fora da época de queimadas na Amazônia, a ação combinada da umidificação da atmosfera e a presença de aerossóis faz com que a temperatura de glaciação decresça quanto mais aerossol e umidade estiverem presentes.”
Influência das queimadas
Por exemplo, a temperatura média de glaciação pode variar entre -10 °C e -18 °C à medida que a quantidade de aerossol aumenta, mas ainda dentro de condições limpas, com pouco aerossol, explica o professor. “Isso acontece porque num ambiente natural não poluído, quanto mais aerossol, em geral, menores são as gotículas de nuvem que se formam, e menos eficiente é o processo de congelamento.”
Já em condições de poluição intensa devido às queimadas na Amazônia, o efeito sobre o congelamento depende da umidade na atmosfera, observa Correia. “Para uma atmosfera úmida, a temperatura média de glaciação diminui quanto mais aerossol estiver presente, podendo chegar próximo do limite de -38 °C. Se a atmosfera estiver relativamente seca, primeiramente deve-se considerar que a formação de nuvens é dificultada”, afirma. “Isso se deve em parte ao sombreamento que o aerossol causa sobre a superfície, que contraria o movimento de convecção de massas de ar. As nuvens que conseguem se formar não se desenvolvem muito na vertical, e a temperatura de glaciação permanece em níveis como -15 °C a -16 °C em média, resultado que ainda não tinha sido descrito na literatura científica.”
Segundo Correia, na Amazônia há um período do ano em que a atmosfera é extremamente limpa, na qual a quantidade de aerossóis é mínima, e essas partículas são de origem natural. Mas também há todos os anos um período em que a atmosfera é altamente poluída devido às queimadas, que ocorrem entre agosto e outubro. “A fumaça de queimadas contém uma quantidade gigantesca de partículas de aerossol que, também estando presentes na atmosfera, podem influenciar como as gotas de nuvens são formadas e o processo de congelamento subsequente”, aponta.
A presença de gelo nas nuvens influencia seu desenvolvimento, como por exemplo seu “tempo de vida” médio, isto é, o intervalo de tempo médio em que elas estão presentes na atmosfera. “Quanto maior a duração média de nuvens, mais radiação solar é refletida de volta ao espaço, contribuindo para o resfriamento do planeta”, observa o professor. O gelo presente em nuvens também afeta a formação de precipitação, um elemento crucial do sistema climático. Propriedades físicas de nuvens e seu papel sobre o clima são temas atuais de pesquisa.
O pesquisador enfatiza que ao trazer conhecimentos sobre a física de nuvens e sua dinâmica de desenvolvimento, os resultados do trabalho podem ser utilizados futuramente em modelos e outros estudos que procurem aprimorar a quantificação do impacto climático de nuvens. “Ao se compreender melhor a dimensão desses efeitos, a necessidade de preservação dos ambientes naturais, em particular da Amazônia, torna-se claramente urgente”, ressalta. A pesquisa contou com a participação das professoras Maria Assunção Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, Elisa Sena, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), além de Ilan Koren, do Weizmann Institute of Science (Israel).
Mais informações: e-mail acorreia@if.usp.br, com o professor Alexandre Correia