Pesquisadores do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), entidade vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), criaram um catálogo com cerca de 100 plantas da Caatinga tradicionalmente usadas pelas comunidades do sertão de Pernambuco no combate a doenças. O poder medicinal das plantas foi comprovado cientificamente em laboratório. A ideia é fazer um e-book desse catálogo e colocá-lo na internet para o acesso de toda população. O estudo, no valor de R$ 750 mil, foi financiado pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
Para coletar informações, um grupo de 30 cientistas de diferentes universidades e institutos de pesquisa do país, incluindo o Núcleo de Prospecção e Conservação da Caatinga do Insa, viajou cerca de 30 mil quilômetros. Foram aplicados mais de 200 questionários etnobotânicos sobre o uso das plantas em 50 comunidades tradicionais e quilombolas, localizadas nos municípios de Lagoa Grande, Santa Maria da Boa Vista, Petrolina, Buíque, Tupanatinga e Ibimirim – os três últimos no Parque Nacional do Catimbau.
“O perfil dessa população é frágil porque são mulheres, idosas e analfabetas. A gente tem questionários respondidos por senhoras de 80, 90 e 102 anos. É um saber idoso que está se perdendo. A situação é preocupante porque o jovem pouco sabe e nem tem interesse nesse conhecimento”, alertou a pesquisadora Márcia Vanusa da Silva, coordenadora do Núcleo de Bioprospecção e Conservação da Caatinga e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Segundo ela, 60% do mercado farmacêutico mundial produzem medicamentos de base biológica, movimentando uma soma de aproximadamente US$ 60 bilhões. A comprovação do uso terapêutico dessas plantas, até mesmo na fabricação de defensivos agrícolas, poderá gerar toda uma cadeia de produção no semiárido brasileiro. “Essas plantas do bioma Caatinga são as menos estudadas na sua biodiversidade. Ele é o menos protegido legalmente. O que a gente quer mostrar é que existe uma riqueza de compostos bioativos ainda não explorada”, disse.
No questionário, é apresentado o nome da planta nativa, os benefícios e o uso pela comunidade. Depois, a planta é recolhida pelos pesquisadores e levada para análise em laboratório. Os cientistas tiveram dificuldade para encontrar algumas delas, que estão localizadas em florestas e ambientes locais. “Em alguns casos só existe o saber, mas não há a planta para comprovar.”
No laboratório, é feita a identificação botânica da planta no herbário do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA) por especialistas em espécies de Caatinga e catalogado o nome científico. “Depois que a planta é identificada, a gente tem um ‘know-how’ de pesquisadores e, dependendo do uso da comunidade, é escolhido o especialista. Ele comprova se existe a atividade biológica e em que dosagem, se há toxicidade ou se o uso é seguro”, explicou Márcia.
O projeto busca o desenvolvimento de novos fármacos; de cosméticos a partir espécies que apresentam características antioxidantes para eliminação de radicais livres; defensivos agrícolas naturais em substituição ao uso dos agrotóxicos; além da segurança alimentar com o estudo de espécies frutíferas e do seu valor nutricional. “Verificamos junto com o curso de gastronomia, por exemplo, se a planta poderia ser utilizada em uma preparação alimentar até mesmo para a própria comunidade, como no Programa Nacional de Alimentação Escolar. No caso dos cosméticos, as plantas podem ser usadas em protetores solares e cremes antissinais”, observou a pesquisadora.
O catálogo em construção vai reunir plantas usadas como anti-inflamatórios, cicatrizantes e antibióticos. A ameixa do Brasil, cujo nome científico é Ximenia americana, é muito usada pelas comunidades em processos inflamatórios, pós-partos e banhos de assento. Para comprovar a eficácia, os pesquisadores usaram um anti-inflamatório comercial e o extrato da planta para depois medir a atuação dos dois produtos na inflamação.
Outras plantas que tiveram comprovação científica foram o jatobá e o angico do caroço, utilizados como expectorante em xaropes. “No primeiro caso, pegamos diferentes bactérias de vias aéreas e fizemos o potencial antimicrobiano. No caso do angico, foi uma das primeiras moléculas que a gente isolou e comprovou o uso antibiótico em bactérias do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco. O que nos chamou mais atenção foi a resistência das bactérias a antibióticos. Estamos estudando os mecanismos de ação e a segurança disso, e ela poderia ser um novo antibiótico para Staphylococcus aureus – bactéria muito comum em infecções no ambiente hospitalar e que já desenvolveu resistência a antibióticos.”
Os pesquisadores estão desenvolvendo estudos para comprovar o uso de algumas plantas no combate a doenças sexualmente transmissíveis, mais especificamente o Trichomonas vaginalis – parasita de maior incidência no mundo. “Hoje apenas um fármaco – o metronidazol – é utilizado no mercado, e muitos parasitas já desenvolveram resistência a esse remédio. Quatros plantas da caatinga conseguiram matar esses parasitas, o vicky (Polygala decumbes), a massaranduba (Manilkara rufula), a braúna (Schinopsis brasiliensis) e o cedro (Cedrela odorata)”, ressaltou Marcia.
Ainda há estudos sobre o uso de plantas contra vetores como o Aedes aegypti, transmissor do vírus zika, chikungunya e dengue. Os cientistas usaram o óleo essencial das plantas Commiphora leptophloeos (umburana de cambão), Eugenia brejoensis (cutia) e Hymenaea courbaril (jatobá) para comprovar o efeito larvicida, repelente e ovicida, o que pode ajudar no controle do vetor. Eles também constataram que a umburana de cambão pode ser usada contra a bactéria que causa a tuberculose.
Com potencial cosmético, o umbu (Spondias tuberosa) pode ser utilizado em cremes antissinais e antienvelhecimento, assim como para controle de diabetes. Segundo a pesquisadora Márcia Vanusa, qualquer parte dessa planta tem alto potencial antioxidante. “Ela poderia ser investigada para diferentes preparações cosméticas, sendo ingrediente bioativo de antissinais ou antienvelhecimento. Nos chamou tanta atenção essa ação antioxidante do umbu, que começamos a fazer experimentos com outra patologia em que a ação antioxidante é importante: a diabetes. Começamos a induzir em ratos diabéticos para ver se havia a redução da glicemia. Esse trabalho ainda não foi publicado, mas foi positivo e reduziu a glicose“, comemorou.
O próximo passo é conseguir a patente dos produtos desenvolvidos. No Brasil, a patente da biodiversidade é proibida, mas é possível patentear o produto e a tecnologia, como um novo cosmético, fármaco ou inseticida. Já estão em estudo as patentes de uma pomada ginecológica, um inseticida contra o mosquito da dengue e um novo antibiótico contra bactérias hospitalares. Para a pesquisadora Márcia Vanusa, é preciso ter políticas públicas de desenvolvimento de viveiros dessas espécies, porque esse bioma tem um potencial inesgotável.
“O trabalho que estamos fazendo é só uma pequena mostra disso. Que sejam desenvolvidos arranjos produtivos, para que a gente tenha possibilidade de desenvolvimento na região com empresas interessadas em explorar essas plantas nessas comunidades.”
Ela também destacou a necessidade de avançar com esse trabalho em outros estados do semiárido até para comprovar se o uso das plantas é feito da mesma maneira pelas comunidades ou se elas são utilizadas para outras finalidades, que ainda não foram descritas.
O projeto também foi apresentado para a uma empresa de cosméticos, já que existem muitas plantas com potencial hidratante. “Seria extremamente vantajoso para a indústria cosmética, que teria um selo de exclusividade de utilização da flora brasileira. Mostramos alguns potenciais dessas plantas, com destaque para o licuri ou ouricuri, que é um coquinho endêmico da Caatinga. Comprovamos que o óleo extraído dessa planta é hidratante, anti-inflamatório e antimicrobiano.”
Desde janeiro de 2017, os pesquisadores estão retornando às cidades visitadas para fazer oficinas nas escolas e apresentar o resultado das pesquisas. “Isso é muito importante para trazer para população essa educação pela conservação, para que eles não destruam essas plantas. O alvo principal é a educação dos mais jovens, para que a criação de empregos seja gerada com o conhecimento deles mesmos. Atualmente, não há transferência desse conhecimento para os mais jovens por diversas razões, porque a farmácia está muito perto, pela falta de interesse, ou por achar que o conhecimento popular não tem grande importância”, lamentou a pesquisadora do Insa.
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