Por Cícero Pedrosa Neto, Sam Schramski, Adriana Abreu em Mongabay – “Minha família ficou em isolamento [por] dois meses no território”, diz Sônia Castro, referindo-se ao isolamento social realizado para reduzir a transmissão do novo coronavírus. Mesmo assim, seus filhos adoeceram e ela relata seu sofrimento para conseguir assistência médica. “[Eles estavam] um em cada casa, e depois de trinta dias não havia como eles ficarem mais lá. Foi quando tive que chamar uma ambulância e eles foram transferidos para Belém”.
Sônia fala na frente de sua casa de madeira, pintada de verde e com detalhes brancos, localizada na comunidade da Ribeira, no Território Quilombola de Jambuaçu, no Pará. Quilombolas, como Sônia e seus filhos, vivem em todo o país, incluindo nas vastas extensões da Bacia Amazônica, onde seus antepassados, escravos de origem africana fugitivos, se estabeleceram. Mas mesmo vivendo em localidades mais afastadas na floresta, os quilombolas não encontram sossego: já cercados por atividades de extração e processamento de minérios, além de grandes empreendimentos do agronegócio – que acumulam um histórico de poluição no Pará e em outras partes do Brasil e do mundo –, sua situação foi agravada com a chegada do novo coronavírus.
Sônia conta sua jornada quando precisou levar seus filhos para serem atendidos em Belém, a capital do estado. Saíram da comunidade em uma rabeta – como são chamadas as pequenas canoas motorizadas que cortam os rios da Amazônia – e navegaram por cerca de uma hora pelo Rio Moju até conseguirem uma ambulância que os levasse ao hospital mais próximo de sua comunidade, na cidade que leva o mesmo nome do rio. A logística foi para evitar o contágio de outras pessoas da comunidade, rito muito diferente ao do tratamento solidário e afetuoso que uma comunidade quilombola, como a de Ribeira, estava acostumada a dar aos seus doentes. “Foi desesperador pra mim, porque eu pensei que eu ia perder meus filhos e eu senti, inclusive, até discriminação de algumas pessoas por conta disso, porque não queriam mais ter contato comigo. Gerou um certo comentário: ‘Ah os filhos dela estão mal, vão contaminar outras pessoas’”, relata.
A experiência de Sônia é como a de outras pessoas infectadas com o novo coronavírus, mas a doença é particularmente preocupante em quilombos como o de Ribeira, que está conectado a uma rede de outras 15 comunidades quilombolas que, juntas, formam o Território Quilombola de Jambuaçu. Com 400 quilômetros quadrados de área, o território é quase do tamanho da cidade paranaense de Curitiba; no entanto, embora Jambuaçu tenha sido o abrigo dos quilombolas desde o final do século 19, a região sofre com a falta de assistência à saúde por parte do Estado, algo que tem se mostrado letal durante a pandemia. Ali existe apenas um posto de saúde e uma única ambulância para o atendimento de todos os comunitários. Em meio à pandemia, faltou até mesmo o básico para a prevenção das famílias que vivem no território.
A região já foi lar de prósperos igarapés e de uma rica biodiversidade, marca registrada da Amazônia Oriental. No entanto, esses ecossistemas estão cada vez mais ameaçados pela agressiva exploração de empreendimentos minerários e do agronegócio, trazendo riscos para quem sempre se relacionou de forma sustentável com a floresta. Os quilombolas criticam a ascensão da atividade comercial em grande escala em seus territórios: minerodutos, plantações de dendê e uma série de linhas elétricas cortando centenas de quilômetros de floresta e igarapés. Todos esses fatores trazem seus próprios riscos à saúde ambiental e humana. Mas, com a chegada da pandemia de covid-19, seus efeitos foram potencializados.
Elias Silva, um morador antigo da comunidade de Nossa Senhora das Graças de Jambuaçu, relata a ameaça representada por uma grande empresa que produz e beneficia dendê para a produção de óleo de palma, nas fronteiras do território, a Marborges Agroindústria S.A. Com forte presença no estado do Pará, a operação multimilionária do agronegócio possui quase 7 mil hectares de plantação de dendê, e outros 10 mil hectares para o restante de suas operações. O cultivo industrial dos dendezais é conhecido por seu potencial de desmatamento, mas seu papel na poluição da água também foi destacado nos últimos anos em todo o mundo. Segundo João Santos Nahum e Cleison Bastos dos Santos, autores do estudo “Impactos Socioambientais da Dendeicultura em Comunidades Tradicionais na Amazônia Paraense”, a produção industrial de óleo de palma faz uso intensivo de produtos químicos como fertilizantes, herbicidas, raticidas e inseticidas para o controle das pragas; com a localização das plantações próximas a rios e igarapés, há o alto potencial de contaminação dos corpos hídricos por esses produtos químicos.
“Os igarapés que passam pela empresa Marborges são os mesmos que chegam ao nosso território. Eles lançam seus dejetos, seus venenos pelo caminho e chegam aqui pela água. A água aqui é o nosso sustento, onde pescamos, onde coletamos água potável. E hoje estamos cavando poços porque os igarapés estão contaminados”, diz Elias.
Além da Marborges, também existem outras empresas que impactam diretamente o território quilombola. Parte dos 245 km de minerodutos da transnacional Norsk Hydro cortam toda a extensão territorial de Jambuaçu, transportando o minério de bauxita (matéria-prima do alumínio) desde a cidade de Paragominas, sudeste paraense, que será processado pela refinaria Hydro Alunorte, no Parque Industrial de Barcarena, município do nordeste paraense.
O grupo de origem norueguesa, do qual o governo norueguês é dono de cerca de 35% dos ativos financeiros, acumula processos no Ministério Público Federal por danos ao meio ambiente e à população barcarenense, causados por dois episódios de extravasamento de lama vermelha tóxica do Depósito de Resíduos Sólidos (DRS1), ocorridos nos anos de 2014 e 2018. Os crimes ambientais da Hydro em Barcarena afetaram, sobretudo, as cinco comunidades quilombolas que estão localizadas a jusante do DRS1: Sítio São João, Gibrié de São Lourenço, Sítio Conceição, São Sebastião do Burajuba e Cupuaçu.
Em Jambuaçu, segundo o Ministério Público Federal, desde 2014 o mineroduto da Hydro opera sem licenciamento ambiental, o que levou o MPF a propor um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) no ano 2019, que orientava a indenização de todas as famílias residentes no território por conta dos impactos causados pela mineradora. Segundo o MPF, porém, a Hydro rejeitou o acordo. Em nota, o MPF diz considerar a postura da empresa ofensiva “aos direitos da população e aos ditames constitucionais e legais, uma vez que o Território Quilombola de Jambuaçu se trata de uma coletividade única culturalmente considerada”. A nota diz ainda que esse é o maior ponto de discordância entre o MPF e a empresa, uma vez que “a posição da Hydro e sua postura perante o território está provocando ainda mais conflitos internos e disputas entre os próprios quilombolas”.
Procurada pela reportagem, a Hydro afirma que mantém um diálogo frequente com os moradores das comunidades de Jambuaçu e que atualmente está desenvolvendo um Estudo de Componente Quilombola (ECQ) com todas as 26 comunidades quilombolas impactadas pelo seu mineroduto e por suas linhas de transmissão, de Paragominas a Barcarena, sob orientação da Fundação Cultural Palmares (FCP) – órgão federal de apoio às comunidades quilombolas. Em nota, a empresa diz que o estudo servirá de subsídio para a criação do Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), que visa a “mitigação e a compensação” de possíveis impactos que tenham afetado essas comunidades do ponto de vista ambiental, econômico e cultural.
No entanto, Raimundo Magno, membro da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), e que tem acompanhado de perto este processo, afirma que nem o ECQ e nem o PBAQ de nenhuma das comunidades citadas pela Hydro na nota foram iniciados, e que em todas elas a empresa ainda se encontra no processo que chamam de “tratativas”, ou seja, estão em negociação com a empresa sobre os termos da realização dos estudos, assim como do formato da aplicação deles – considerando, inclusive, a pandemia.
“O fato do mineroduto da Hydro não ter sequer licenciamento mostra o quanto a empresa não está preocupada com a vida das pessoas que vivem no território do Jambuaçu, e esse é só um dos crimes cometidos pela Hydro contra a população quilombola; é só olhar o caso de Barcarena”, afirma Raimundo.
Além do mineroduto, a Hydro mantém ainda uma extensa rede de linhas de transmissão de energia, que acompanham o mesmo traçado. O medo de que essas estruturas possam colapsar a qualquer momento faz parte do cotidiano das pessoas que vivem nas comunidades do território. Os quilombolas de Jambuaçu já apresentaram queixas, oficiais e informais, sobre essa infraestrutura. Isso pode parecer estranho aos moradores de outras cidades amazônicas e de outros lugares do Brasil, mas as fileiras ininterruptas de enormes postes são elementos que invadem a paisagem e limitam o uso do território. “As linhas elétricas não servem para a nossa energia, sabe? Só tem como objetivo [servir] a empresa. A única função da linha de transmissão é gerar energia para os equipamentos da Hydro”, acrescenta Silva.
Outra mineradora atravessa com seus tubos subterrâneos o território de Jambuaçu: a Imerys Capim Caulim, empresa de capital francês que opera no estado do Pará desde 2010 na produção de caulim, produto importante na fabricação de cosméticos, tintas, papel, cerâmicas, entre outros. As mesmas queixas ouvidas por nossa reportagem a respeito da Hydro se aplicam à Imerys. Os relatos a respeito dos minerodutos são feitos sempre citando ambas as indústrias, e sempre carregados de incertezas, afinal, toneladas de minérios circulam diariamente sob os pés das famílias de Jambuaçu.
Mesmo que Jambuaçu tenha mais de 90% (14 comunidades de um total de 15) de suas terras tituladas pelo Instituto de terras do Pará (Iterpa), os quilombolas não deixam de mencionar a luta pela terra como uma marca do seu dia a dia. A balança tem pesado sempre para o lado dos grandes interesses do capital, enquanto a violação de direitos territoriais assola as comunidades quilombolas em todo o Brasil. Menos de 3% dos quilombos em todo o país (são quase 6 mil) têm pleno reconhecimento legal da posse de suas terras e os territórios titulados não escapam dos impactos e da pressão exercida por grandes empresas como a Hydro e a Marborges.
Os impactos da presença indesejada dessas empresas e de suas estruturas em Jambuaçu é sentido de forma direta pelos quilombolas. “Quando eu era criança a gente era farto de tudo, fartos das coisas da natureza… e agora tem as empresas que vieram pra cá, aí o peixe já não é mais farto, nós já não temos mais o peixe”, afirma Sônia, da comunidade Ribeira.
“A Convenção 169 da OIT diz que as populações quilombolas deveriam ser consultadas sobre tudo que esteja relacionado aos seus territórios, mas o que a gente percebe é que nós temos ‘consultas póstumas’, ou seja, querem saber da nossa opinião depois de terem destruído tudo”, afirma Magno, fazendo menção à convenção da Organização Internacional do Trabalho que prevê a obrigatoriedade da consulta prévia, livre e informada dos povos tradicionais.
A Hydro chegou a indenizar algumas famílias que considera terem sido “diretamente afetadas” por suas estruturas em Jambuaçu, desconsiderando os danos causados a outras, o que acabou gerando, inclusive, conflitos entre lideranças locais, segundo observa o próprio MPF. “[Nós] somos um só povo. Um só território. Não tem como o estado ou as empresas discutirem impactos isolados para cada comunidade, pois estamos interligados por diversos elementos”, explica John Cleber Santiago, quilombola, mestre em desenvolvimento sustentável e educador popular.
“Esses projetos historicamente causam diversos impactos socioambientais e socioterritoriais: redução do território coletivo, desmatamento, assassinatos de lideranças, poluição dos lençóis freáticos, interferência no modo de vida tradicional, violação e extermínio de sítios arqueológicos, entre outros”, afirma Santiago, que, além de morador da comunidade São Manoel, localizada em Jambuaçu, escreveu sua dissertação de mestrado acerca das “agroestratégias do capital” e da resistência popular do seu povo.
Com a chegada da covid-19 ao território do Jambuaçu, as ameaças se intensificaram e a sensação de abandono, já experimentada pela maioria das famílias, acabou ganhando proporções maiores, já que não houve nenhuma política específica por parte do governo federal e das secretarias estaduais de saúde para conter o avanço da pandemia nos territórios quilombolas de todo o país. Para Givânia da Silva, membro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), existe uma lógica por trás da falta de ação do poder público quando o assunto é a população quilombola no Brasil: “O intuito deles é e sempre foi nos exterminar. Deixar os quilombolas entregues à própria sorte no meio de uma pandemia é a maior prova disso”.
Questionadas pela reportagem sobre as questões envolvendo o Jambuaçu, a mineradora Imerys Capim Caulim e a agroindústria Marborges não se manifestaram até o momento.
José Cunha, conhecido como “Catirinha”, é um homem na casa dos sessenta, embora pareça bem mais jovem. Ele usa um boné onde se pode ler, em caixa alta, “Cultura da Mandioca”. Catirinha passou a maior parte de sua vida na comunidade do Poacê, no território quilombola de Jambuaçu, e fala sobre a incerteza da garantia dos direitos da comunidade à terra. Mesmo os quilombolas vivendo no território há séculos, o reconhecimento legal de titularidade da terra é recente e tem sido dificultado nos últimos anos. No caso de Poacê, como tantos outros da região, ainda não existe um reconhecimento oficial: as terras da comunidade continuam não tituladas.
“A terra não se acaba. A terra [que me permitiu] educar todos os meus filhos… tudo formado, né? Assim que eu vivo aqui, eu amo minha terra. Eu queria que eles respeitassem nossos direitos aqui e a gente não vivesse na mira deles [dos empresários], achando que daqui a pouco eles vão estar nos chamando de invasores”, explica seu Catirinha, em referência ao conjunto de empresas que impactam sua comunidade e ameaçam expandir suas fronteiras sobre o Jambuaçu.
A esperança de seu Catirinha contrasta com as ações implementadas ao longo dos anos pelas empresas que atuam no território, as quais ignoram as reivindicações territoriais quilombolas. “Eu vi eles subindo essa ladeira aqui e dizendo: ‘não tem nem casa aqui, esse povo tudo é vadio, nem roça tem”, explica.
Com todo esse contexto de negação de direitos e impactos da atividade comercial, a chegada da covid-19 trouxe mais uma ameaça mortal para os quilombolas. A Conaq afirma que os quilombolas estão morrendo a uma taxa quatro vezes maior que a população geral do Brasil, por isso uma das suas principais lutas é para que a população entre nos grupos prioritários de vacinas do país nos próximos meses.
Em setembro de 2020, a entidade entrou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742 no Superior Tribunal Federal para exigir que os direitos constitucionais de acesso à água, alimentos e serviços de saúde por parte da população quilombola fossem assegurados, já que o presidente Jair Bolsonaro havia vetado a maioria dos pontos propostos pelo Projeto de Lei 14.021, de autoria da Deputada Rosa Neide (PT/MT), que previa o atendimento imediato das comunidades tradicionais indígenas, quilombolas, ribeirinhas, de agricultores familiares e de pescadores por parte do Estado. A ADPF 742, ou “ADPF dos quilombolas”, como também está sendo chamada, pedia ainda a criação de um plano específico de combate à pandemia nos quilombos de todo o Brasil e que fossem suspensas todas as ordens de despejo contra comunidades quilombolas previstas para ocorrer no período em que durar a pandemia.
Após cinco meses de espera, o ministro Marco Aurélio, relator da ação, votou como parcialmente procedente o pedido da Conaq, negando que fossem suspensas as ordens de despejo. Entretanto, o ministro Luiz Edson Fachin abriu divergência e formou maioria para a aprovação das suspensões das ordens de despejo enquanto durar a pandemia (os Ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes seguiram o voto de Fachin). Ficou, portanto, determinado que o Governo Federal deve criar um grupo de trabalho interdisciplinar e paritário, para debater, aprovar e monitorar a execução de um plano particular de enfrentamento à pandemia em comunidades quilombolas. Também deve incluir o quesito raça/cor/etnia nos registros oficiais dos casos de covid-19 com publicidade periódica. No mesmo prazo, o tribunal determinou que a União restabeleça o conteúdo das plataformas públicas de acesso à informação ligadas às comunidades quilombolas de todo o país.
A luta atual é para que a vacinação chegue de forma prioritária às comunidades, já que no plano oficial do governo federal, os quilombolas figuram na mesma fila que professores, profissionais da segurança pública e outros, desconsiderando o contexto de vulnerabilidade do grupo que, segundo especialistas, só perde em falta de estruturas e problemas sanitários para os indígenas aldeados. Até agora, os únicos estados do país que colocaram a população quilombola nas primeiras filas de vacinação foram o Pará, o Amapá (por força de uma determinação do MPF) e São Paulo.
Até o dia 26 de fevereiro, o Brasil registrava um total de 4.962 casos confirmados de covid-19 entre quilombolas, incluindo 210 óbitos, segundo o observatório Quilombos Sem Covid-19, do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Conaq. No estado do Pará, no mesmo período, a Malungu e o Núcleo Sacaca, da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), a partir de um esforço coletivo envolvendo todas as comunidades quilombolas do estado do Pará com acesso à internet, registrou 2.238 casos confirmados da doença e 62 óbitos. O estado do Pará é recordista em número de quilombolas mortos pela covid-19.
Enquanto isso, embora não estejam evidentes os riscos de contaminação ambiental dos minerodutos – ou seja, não foi registrado oficialmente no sistema judiciário nenhum dano proveniente dessas empresas recentemente no território –, os resíduos das plantações de dendê são uma grande preocupação. Se a água é um elemento de extrema importância na prevenção e no combate ao coronavírus, pode-se dizer que as águas contaminadas de Jambuaçu não conseguiriam servir a estes propósitos.
“Como as comunidades podem se sentir seguras e protegidas contra as ameaças da covid-19 se não temos nem a garantia básica de que não estão contaminadas por outros elementos tóxicos presentes nas águas que utilizam para beber, cozinhar, escovar os dentes, etc?”, questiona Raimundo Magno.
Arlene Moraes, da comunidade São Sebastião, em Jambuaçu, destaca esse dilema, descrevendo a água do igarapé perto de sua casa em termos quase tóxicos. “Agora não posso descer nem pra juntar as folhas que caem do meu açaí, porque vou me atolar, que aquilo tá horrível mesmo. A água onde dava pra gente tomar banho não dá mais . Eu nunca mais tomei banho de igarapé. Nunca mais mesmo…”, conta.
Em certo sentido, a geografia de Jambuaçu é o ponto crucial: uma região que já foi um lugar para se proteger da brutalidade dos senhores de escravos – algo que resume a história de origem da maioria dos quilombos – agora se tornou um lugar onde a necessidade da “fuga” ganha uma nova dimensão. A situação é agravada pela presença de muitos não-quilombolas no interior ou nos arredores do território. Essas pessoas trabalham nas várias indústrias da região, ou simplesmente transportam bens e pessoas entre os centros locais, incluindo a cidade de Moju, distante cerca de 30 km – ou para outros destinos, já que uma via estadual está sendo construída no meio de uma das comunidades do território, a PA-252, que liga os municípios de Acará e Moju.
“Eu, como presidente da minha comunidade, fiz uma reunião rápida da diretoria da associação comunitária e a gente resolveu fazer um portão lá na estrada para impedir a vinda de muita gente de fora para cá”, observa Gilvanda Miranda da Silva, do quilombo Ribeira.
Moradores como Gilvanda lideraram esforços para controlar as idas e vindas de não-quilombolas em seus territórios. Em algumas comunidades, foram construídos portões improvisados e outras barreiras, mas essas proteções falharam depois de algum tempo devido a repetidas violações ou ao relaxamento dos moradores.
Em razão disso, muitas famílias se sentem tão vulneráveis quanto no início da pandemia, nos primeiros meses de 2020, quando quase 200 indivíduos das comunidades tiveram resultado positivo ou suspeita de ter contraído o vírus. Sete pessoas morreram e muitas outras ficaram doentes, mas não foram testadas. Todos esses números são levantados por grupos de defesa dos quilombolas, porque as estatísticas oficiais de saúde do governo – e, na verdade, as estatísticas dessa população em geral – são escassas. A falta de dados concretos acaba ofuscando os impactos da covid-19 entre os quilombolas.
É quase universal o sentimento de que a pandemia não acabou e que pode de fato se agravar para os quilombolas de Jambuaçu. Além disso, seus residentes ainda dependem das florestas, rios e igarapés, mesmo que estes estejam contaminados. Isso está presente no relato de Sônia, ao relembrar sua própria batalha contra a doença e o paradoxo de viver em um lugar que já foi próspero, mas que agora padece por conta dos múltiplos interesses comerciais que incidem sobre ele, somado ao completo abandono por parte dos governos.
“O pior é a pessoa contrair o vírus e não ter um leito disponível, e vermos que a pessoa está precisando de socorro e não ter como socorrer e ela acabar morrendo… porque para alimentação e outras coisas, como a gente mora numa zona rural, é bem mais fácil da gente pegar uma fruta, pegar um açaí, fazer uma farinha e ir sobrevivendo”, analisa Sônia, que acrescenta angustiada: “Mas, com o vírus, se a gente não tiver um socorro, a gente não sobrevive”.
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