Com trabalho exposto na sede da ONU, ascensão de Kobra reflete jornada do grafite em São Paulo

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Por Aline Vessoni em Jornal da Unesp | É possível que os brasileiros inspirem os demais povos a zelar pelo planeta e aprofundar as práticas de sustentabilidade? Se depender do artista plástico Eduardo Kobra, a resposta já está dada. Seu mais recente mural na cidade de Nova York, intitulado “O Futuro é Agora”  mostra, em suas próprias palavras, “um brasileiro comum que realiza a ação de entregar o planeta a sua filha”. “É responsabilidade de todos cuidar da nossa casa, que é o Planeta Terra”, disse Kobra, “e lá no epicentro [do mural], coloquei a América Latina, para reforçar a mensagem do cuidado que devemos ter em cuidar e preservar a nossa querida floresta amazônica.” E a mensagem se torna ainda mais poderosa quando se considera o lugar onde Kobra grafitou a imagem, que mede 336m2: a sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York, talvez o espaço mais nobre da comunidade internacional de nações.

“The Future is Now”, nome original do mural, foi inaugurado em setembro, e marcou a primeira vez que a ONU convidou um artista da chamada street art, ou arte de rua, para expor em suas instalações. A decisão se deu justamente porque o Comitê de Artes da ONU enxergou uma convergência entre os propósitos da instituição e os temas retratados por Kobra em sua obra. A vice-secretária geral das Nações Unidas, Amina Mohammed, disse ter ficado impressionada com o resultado por retratar tanto esta geração quanto as futuras, e conseguir “representar as cores das pessoas do mundo todo”. Além do mural, Kobra também expôs peças menores no interior da ONU a convite da missão brasileira no órgão, como parte das comemorações do bicentenário da Independência do Brasil.

Exposição de trabalhos de Kobra na ONU em homenagem ao aniversário de 200 anos da Independência do Brasil.

Antes mesmo que “The Future is Now” fosse pintado, Kobra já tinha mais de 20 obras expostas em espaços públicos de Nova York. Porém, produzir um mural nas instalações da ONU sob encomenda da própria instituição, com o propósito deliberado de chamar a atenção do planeta para um de seus desafios mais urgentes, sinaliza uma mudança de patamar em seu reconhecimento como um artista verdadeiramente global. Professores e pesquisadores do Instituto de Artes da Unesp comentam a trajetória do artista e explicam como ela reflete as mudanças que ocorreram na cena cultural da cidade de São Paulo, onde Kobra nasceu e se formou primeiro como pichador e depois como grafiteiro.

O grafite de Nova York a São Paulo

Nos anos 1970, Nova York emergiu como território símbolo da arte de rua. A cidade viveu um boom de pichação, e  imagens de edifícios, paredes e até trens cobertos de rabiscos rodaram o globo à época.  Turbinando o movimento estava a busca de autoexpressão por parte dos moradores de suas periferias. “Pichar prédios e metrôs  para colocar ali a sua assinatura é uma maneira de dizer que você existe”, explica Milton Sogabe, o professor aposentado do Instituto de Artes da Unesp, do câmpus de São Paulo.

Grafite de protesto em 1968 é considerado primeiro registro da pichação como arte no Brasil.

Nesse período o Brasil vivia na atmosfera sufocante da ditadura militar, que coibia a criatividade e as possibilidades de autoexpressão. Aqui e ali, viam-se algumas mensagens políticas rabiscadas nos espaços públicos, tais como “Abaixo a repressão”, mas o clima policialesco não favorece o desenvolvimento da arte de rua. Por isso, quando a pichação e o grafite começam a ganhar uma produção maior em nosso país, estavam inseridos em uma esfera artística — e a cidade de São Paulo revelava-se já então um palco privilegiado para este tipo de manifestação.

No início dos anos 1980, o próprio Sogabe, à época professor na escola de artes da FAAP, criou o grupo de artistas Tupynãodá que fez diversas intervenções artísticas na capital paulista. Em uma delas, os jovens artistas pichavam o verde-amarelo da bandeira do Brasil em outdoors sem propaganda e depois lançavam o preto por cima — em plena semana da pátria. Mas o nome que mais se destacou à época foi o do artista italo-etíope Alex Vallauri. Vallauri que já tinha pichado em Nova York e aos poucos começou a rabiscar nos muros paulistanos uma mesma imagem característica: botas.

Alex Vallauri ao lado de uma das botas que pintava. Crédito: Divulgação

O artista visual e professor Otavio Fabro explica que Vallauri já abriu espaço em São Paulo para uma visão diferente das potencialidades da arte de rua, diferente da produção do pichador comum. “Ele já tinha trânsito global numa época em que poucas pessoas viajavam. Vallauri passou por Nova York, viu a cena artística por lá e importou essa possibilidade para o Brasil. Trabalhava numa linguagem do pop art, sem tensionar relações sociais e questões de pertencimento”, diz Fabro. Aos poucos, Vallauri passa a grafitar também luvas, além de botas, até por fim conceber uma personagem intitulada a Rainha do Frango Assado. A personagem foi apresentada na 18ª edição da Bienal de Arte Contemporânea de São Paulo, em 1985. Mas anteriormente Vallauri havia participado da 11ª, 14ª e 16ª edições.  É neste período, mais especificamente em 1987, que o jovem Carlos Eduardo Fernandes Léo, o nome de registro de Kobra, então morador da periferia de São Paulo, ensaia seus primeiros passos como pichador autodidata, rabiscando os muros da cidade de forma clandestina.

Bota grafitada por Vallauri. Crédito: divulgação.

Para as gerações seguintes de artistas de rua, nos anos 1990 e 2000, Nova York continuava sendo o polo de inspiração. Mas, a pichação e o grafite circulavam o mundo integrados no conceito da cultura hip hop. Fabro explica que a cultura hip hop exibia “a força e a potência de ser um pensamento alternativo de arte”, articulando-se como um movimento contracultural com diversas frentes artísticas, da poesia à música, passando pela dança e a pintura. Isso se reflete também no Brasil. “O spray ocupa essa lacuna na vida dos jovens das periferias brasileiras, correspondendo ao desejo de pertencer à cidade. A preocupação é de ocupar a cidade de alguma forma e dizer que estamos vivos e que somos resistência. Tem algo juvenil no ímpeto de questionar a autoridade”, diz Fabro. A ocupação da cidade é levada tão a sério que os pichadores estão cotidianamente desafiando uns aos outros e sobretudo a lei da gravidade: se hoje alguém pichar o sétimo andar, amanhã o oitavo estará pichado também.

Separação entre pichação e grafite

Outro desdobramento peculiar do desenvolvimento do grafite no Brasil é a distinção entre este e a pichação, algo  que não existe em outros países. Criou-se uma separação entre arte de rua “boa” e “má”; a sociedade se propôs a aceitar o grafite, identificado com os desenhos mais elaborados e coloridos, mas manteve o picho como algo à margem. Sogabe explica que em São Paulo a arte de rua terminou por se estabilizar em três formatos: a pichação ou picho, que ainda é vista como algo proibido, o grafite e os murais, que são grafites de grande porte, às vezes cobrindo toda uma face de um edifício de vários andares. “O grafite tem um cunho mais social. Já os murais são permitidos, oficializados”, diz.

Essa separação das duas categorias incluiu até um período em que a pichação foi sistematicamente combatida pelo prefeito Jânio Quadros (1985 – 1988). O prefeito elegeu Juneca, um conhecido pichador da época, como exemplo de “delinquente” a ser neutralizado, e chegou a publicar no Diário Oficial da cidade uma foto de uma das suas pichações, feita em parceria com seu colega Bilão, e publicou em cima da imagem o título  “Juneca e Bilão vão pixar a cadeia”.

Capa do “Diário Oficial” de São Paulo em que o prefeito Jânio Quadros anunciou desejo de prender Juneca. Reprodução.

“O juneca era do meu bairro. Era o maior pichador de São Paulo, um dos pioneiros, tomou tiro por causa disso”, diz Fabro. “Ele teve um embate com o prefeito. Foi preso e depois serviu como uma espécie de cobaia da transformação de um pichador em um grafiteiro. Fez até universidade”, conta. Ele lembra que as autoridades à época começaram a fazer um trabalho de propagandear que “o grafite é legal, a pichação é ruim, e é o Juneca que está falando”. “Isso só gerou problemas para ele. Em vez de ser o cara mais valorizado no meio da cultura hip hop ele é muito questionado e não é tão lembrado porque fez essa transição. Porque foi a cobaia desse experimento, um experimento político”, conta. Para Fabro, essa separação aconteceu por uma questão claramente política, em que o país, recém-saído da ditadura militar, optou por fazer uma espécie de “limpeza” que resultou na exclusão de determinados grupos sociais, algo que continua até hoje.

O mercado abraça o grafite

Sogabe destaca que esse percurso artístico que se inicia na pichação nas periferias e depois migra para o grafite ou mesmo para o formato dos murais é hoje algo comum,  e está ligado também à recepção do grafite no circuito do mercado de arte. “Quando foram criadas as galerias especializadas em grafite, o mercado transformou essa produção em mercadoria. Acho que isso transforma o significado do que é o grafite, embora ainda exista o grafite mais marginal”, diz. E dificilmente um artista se recusa a entrar no mercado de arte, diz. “O Kobra fez essa transição e se tornou um grande muralista. Se continuasse a atuar como pichador não iria sobreviver artisticamente, mas trabalhando com grafite havia uma possibilidade”, analisa Sogabe.

Kobra embarcou nessa transição como autodidata, e tornou-se um mestre na estética realista, marco zero para o seu trabalho autoral. Em 2007, ganhou atenção da mídia e da sociedade paulistana com o projeto Muro das Memórias, em que reproduzia fotos antigas de São Paulo em tons de sépia ou preto e branco.  De lá para cá ganhou o mundo e hoje se denomina muralista.

Grafite do projeto Muro da Memória, de Kobra, em São Paulo. Crédito: Divulgação.

Para Fabro, a ascensão de trabalhos como os de Kobra no mercado de arte e sua posterior internacionalização eram algo já esperado. Ele diz que nos anos 1990 a arte seguia uma tendência muito conceitual. “Quase não se via mais pintura. O foco estava nas instalações, vídeos. A arte se afastava do fazer artístico com as mãos, o que importava era a ideia”, diz. Ao mesmo tempo, o movimento hip hop se espalhava pelo mundo com seus pilares contraculturais e “botava um monte de gente na rua com potência” e sedenta por produzir imagens com as mãos, num movimento no sentido inverso ao que se via nas galerias.

Nas décadas seguintes, os grafiteiros podiam oferecer exatamente os elementos que estavam em falta no mundo das artes, e isso serviu de gatilho para que as carreiras mais promissoras pudessem se projetar e alcançar espaço em galerias e  exposições.   Mas, ainda que estas análises das transformações na sociedade e no mercado de arte dos anos 1980 para cá possam ajudar a iluminar os caminhos que levaram a produção de Kobra do Jardim Martinica ao edifício da ONU, é preciso ressaltar também os pontos fortes da estética que ele desenvolveu, e que encanta tantos admiradores pelo mundo. “Seu trabalho tem muita qualidade. Ele atua numa linha quase hiper-realista que não causa choque no público, é uma imagem que é fácil de entender e agrada”, analisa Sogabe. “E continua trabalhando com temas sociais. Esse tipo de mensagem que ele se propõe a passar é interessante e importante”, diz.

Imagem acima: Painel “The Future is Now”. Crédito? Divulgação ONU.

Este texto foi originalmente publicado por Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Equipe eCycle

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